Marimba Ani — Yurugu — Uma Crítica Africano-Centrada do Pensamento e Comportamento Cultural Europeus

YURUGU CAPA yuguru capa

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YURUGU CAPA

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capa yurugu marimba em portugues

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YURUGU - CONTRACAPA 1

YURUGU - CONTRACAPA 2

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yurugu contra capaaa

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YURUGU - CONTEUDO - 1

YURUGU - CONTEUDO - 2

YURUGU - CONTEUDO - 3

YURUGU - CONTEUDO - 4

YURUGU - CONTEUDO - 5

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ÍNDICE

Notas do Autor ……………………………………………………… xi
Dedicatória …………………………………………………………… xiii
Introdução – John Henrik Clarke ……………………………… xv
Encantamento [Incantation] …………………………………… xix
Agradecimento ……………………………………………………… xxi
Glossário ………………………………………………………………. xxv

Gráficos [Charts]

A.   O Processo de Utamawazo Europeu …………………… xxix
B.   Utamawazo Europeu: Controle Mental para
Dominação Mundial (Capítulo 1) ………………………… xxx
C.   O Cristianismo como um Mecanismo Central da
Asili Européia (Capítulo 2) ………………………………….. xxxi
D.   Estética Européia e Dominação Européia
(Capítulo 3) ……………………………………………………… xxxii
E.   Ego Cultural Europeu e Dominação Mundial
(Capítulos 4-5) ………………………………………………….. xxxiii
F.   Comportamento e Ética Europeus em Dominação
Racial e Cultural (Capítulos 6-8) ………………………….. xxxiv
G.   A Ideologia de Dominação Mundial Européia
(Capítulos 9-10) ………………………………………………… xxxv
H.   O emaranhado da Patologia Cultural Européia Cria
O Sistema de Dominação Mundial Europeu
(Conclusão) ……………………………………………………… xxxvi

                                Introdução

Bolekaja! ……………………………………………………………….. 1
Tese e Processo ………………………………………………………. 3
Evidência ………………………………………………………………… 9
Conceitos e Termos ………………………………………………… 10
Perspectivas e objetivos ………………………………………….. 23

PARTE I – PENSAMENTO E ICONOGRAFIA
        Capítulo I – Utamawazo: A Estruturação
Cultural do Pensamento

Epistemologia Européia Arcaica: Substituição de
Objeto por Símbolo …………………………………………………. 29
Dicotomização e a Noção de Harmonia …………………….. 32
Reificação do Objeto: Desvalorização dos Sentidos ……. 36
Teoria da Humanidade [Theory of Humanness] ……….. 44
O Novo Modo Dominante ……………………………………….. 51
Linearidade e Causa: Cientificismo e “Lógica” …………… 56
Supremacia do Absoluto, o Abstrato, e o Analítico …….. 69
Dessacralização da Natureza: Desespiritualização do
Humano ……………………………………………………………….. 83
Modelos Alternativos ……………………………………………… 97
O Caráter do Utamawazo Europeu …………………………. 104

Capítulo 2 – Religião e ideologia

Um Ponto de Partida ……………………………………………… 109
A Influência Platônica …………………………………………….. 111
A Herança Judaica ………………………………………………….. 117
O Ideal Monoteísta:
Incipiente Chauvinismo Cultural Europeu ………………… 120
O Cisma Judaico-Cristão …………………………………………. 124
A Cooptação Romana: Duas Ideologias Imperialistas …. 129
O Ameaça do Cristianismo Não-Ortodoxo ………………….. 137
Agostinho [Augustine] e Conservadorismo Político …….. 143
Proselitização e Imperialismo:
“Salvando” e “Governando” ……………………………………. 149
Cristianismo, Colonialismo, e Imperialismo Cultural:
“Pagão”, “Nativo”, e “Primitivo” ……………………………….. 153
Cristianismo e Paganismo Europeu ………………………….. 162
Patriarcado e o Desenvolvimento da Religião Européia . 171
A Síndrome da Religião e Racionalidade …………………… 178
A Ordem Tecno-Social [The Techno-Social Order] …….. 183
O Registro Versus a “Apologia” ………………………………… 191
Conclusão: Religião e Poder …………………………………….. 194

    Capítulo 3 – Estética: O Poder dos Símbolos

O Significado de “Estética” ………………………………………. 199
A Tirania do Racionalismo ……………………………………….. 202
Uma Estética de Controle ………………………………………… 210
“Branco”, “Bom”, e “Bonito” ……………………………………. 219
O Mito de uma Estética Universal …………………………….. 222
O Fio Condutor: Estética, Utamawazo, e Utamaroho ….. 226

PARTE II – IMAGEM E CONSCIÊNCIA NACIONAL
Capítulo 4 – Auto-Imagem

Auto-Imagem e Utamaroho ……………………………………… 237
“Homem Racional” …………………………………………………. 239
O Europeu como “Masculino” [“Male”] …………………….. 242
O Problema do “Cientista Louco” ……………………………… 245
“Homem Civilizado” ………………………………………………… 246
“O Conquistador”: O Expansionismo no
Utamaroho Europeu ……………………………………………….. 248
“Salvador do Mundo” [“World Savior”] ……………………… 251
Raça e Identidade Nacional ……………………………………… 255
Mídia e Auto-Imagem ……………………………………………… 265
A Auto-Imagem Européia na Literatura de
Nacionalismo Branco ………………………………………………. 271

Capítulo 5 – Imagem dos Outros

O Complemento da Auto-Imagem Européia ………………… 279
Porque o “Outro” é Preto (“Não-branco”) ……………………. 282
Escravidão, Suas Conseqüências, e a Imagem dos Outros . 291
Mídia e a imagem dos Outros …………………………………….. 294
Exigências do Utamaroho Europeu ……………………………. 296
A resposta Européia ao Utamaroho “Não-Europeu” …….. 301
Imagem e Definições-de-Valor …………………………………… 306

PARTE III- COMPORTAMENTO E ÉTICA
Capítulo 6 – Retórica e Comportamento

O Que Há em uma Mentira [What’s in a Lie] ……………… 311
Hipocrisia como um Modo de Vida …………………………… 312
A Função Retórica da “Ética Cristã” ………………………….. 317
A Ética Retórica em Operação …………………………………. 324
“Teoria Ética” e a Ética Retórica ………………………………. 328
O Significado Etimológico da Ética Retórica ………………. 331

Capítulo 7 – Comportamento Intracultural

A Questão das Normas …………………………………………… 337
“individualidade”, “Liberdade”, e “Si-mesmo” [“Self”] .. 339
A “Ética Protestante” e Comportamento Europeu ……… 356
O Papel Cultural da Igreja Primitiva [Early Church] …… 358
Reforma: o Novo papel da Igreja ………………………………. 361
Protestantismo e o Ego Europeu ………………………………. 367
Temas na Interação Interpessoal: Sobrevivência,
Competição, Controle …………………………………………….. 375
Epistemologia e Comportamento …………………………….. 389
O “Si-mesmo” [“Self”] Europeu e o Problema do Amor .. 393
Intracultural Versus Intercultural ……………………………… 399

Capítulo 8 –
Comportamento Em Relação à Outros

Asili como Matriz [Asili as Matrix] ……………………………… 401
O Conceito do “Outro Cultural” …………………………………. 402
Europeu Versus “Não-Europeu” ………………………………… 404
O “Outro Cultural” e “Lei” Européia …………………………… 409
Violência Política:
“Achar e Destruir” [“Seek and Destroy”] …………………….. 416
Violência Cultural:
Destruir a Vontade [Destroying the Will] ……………………. 427
Comportamento Genocida:
“Exterminá-los” [“Wipe Them Out”] ………………………….. 433
Teorias do Comportamento Euro-Caucasiano:
A Questão de Causa ………………………………………………… 447
Ideologia Européia e o Conceito do Outro Cultural ……… 473
Utamawazo e Imperialismo …………………………………….. 479
Conclusão: A Lógica de Supremacia e Destruição ……….. 482
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     Capítulo 9 – Progresso como Ideologia

“Progresso” de quem? [Whose “Progress”?] …………….. 489
A Anatomia do “Progresso” …………………………………….. 490
A Inevitabilidade do “Progresso” ……………………………… 495
A Crítica do “Progresso” Europeu …………………………….. 497
Utamawazo, Utamaroho, e “Progresso” ……………………. 503
Uma Ideologia de Imperialismo ……………………………….. 507

      Capítulo 10 – Universalismo: A Sintaxe do
Imperialismo Cultural


A Tradição …………………………………………………………….. 511
O “Mito da Objetividade” e os Usos de Cientificismo ….. 515
Claude Henride Saint-Simon …………………………………….. 520
John Stuart Mill ………………………………………………………. 521
Emile Durkheim ………………………………………………………. 522
As Funções Políticas da “Objetividade” ………………………. 524
Implicações do Internacionalismo Europeu …………………. 528
O Chamado por uma “Cultura Mundial” ……………………… 535
Comportamento Humano Concreto Versus
“Humanismo” Europeu Abstrato ……………………………….. 541
Universalismo e a Asili Européia ………………………………… 550

CONCLUSÃO
            Yurugu: O Ser Incompleto

O Que Tudo Isso Significa ………………………………………….. 555
Os Trabalhos do Yurugu …………………………………………….. 556
Utamaroho em Desequilíbrio …………………………………….. 560
Poder como Logos ……………………………………………………. 563
As Formas de Expressão do
Nacionalismo Cultural Europeu ………………………………….. 568
Em Direção a uma Visão do Espírito Humano ………………. 569

Notas ………………………………………………………………………. 571

Bibliografia ………………………………………………………………. 603

Índex ……………………………………………………………………….. 621

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                                           Notas do Autor

De acordo com o povo Dogon do Mali, na África Ocidental; Amma, o Criador, ordenou que todos os seres criados deviam ser manifestações viventes do princípio universal fundamental de complementaridade ou “gemelaridade” [“twinness”]. Este princípio manifesta a si mesmo como a totalidade que é criada quando pares femininos e masculinos se juntam em todas as coisas. Tal pareamento estabelece equilíbrio, cooperação, balanço e harmonia. Amma, portanto, equipou cada ser com almas gêmeas [twin souls] – ambos feminino e masculino – no nascimento. Mas, em uma destas placentas primordiais, a alma masculina não esperou pelo período completo de gestação para nascer. Este ser masculino foi conhecido como Yurugu (Ogo), quem arrogantemente desejou competir com Amma e criar um mundo melhor do que aquele que Amma havia criado. Com sua placenta fragmentada ele criou a Terra; mas ela só podia ser imperfeita, uma vez que ele estava incompleto, ou seja, nascido prematuramente, sem sua alma-gémea fêmea. Percebendo que ele estava falho e, portanto, deficiente, Yurugu voltou a Amma, em busca de seu ser [self] feminino complementar. Mas Amma tinha jogado a sua alma feminina fora. Yurugu, para sempre incompleto, foi condenado a perpetuamente procurar a plenitude que nunca poderia ser sua. A Terra, que ele havia contaminado no ato de auto-criação, era agora habitada por seres de alma-individual [single-souled], impuros e incompletos como ele. Os descendentes de Yurugu, todos eternamente deficientes originaram-se em um ato incestuoso, uma vez que ele tinha procriado com a sua própria placenta, a representação de sua mãe.

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 Dedicatória
À minha mãe,
Delphene Douglas Richards
E à minha filha,
Delphene Djifa Atsufi Fumilayo Douglas Richards,
em quem o espírito dela foi renascido.

Na tradição de Comemoração Ancestral Afrikana,
Este livro é dedicado aos Egun do Maafa
Que confiaram em nós, seus descendentes, para realizar a Vitória
Para qual eles sacrificaram tanto.

É para todas as pessoas Afrikanas, portanto,
Que lutaram pela Verdade simples –
Raça Primeiro! [Race First!]

E é especialmente para aqueles que não entendem
o significado desta Verdade.

Para aqueles Afrikanos que seriam seduzidos para o
labirinto da academia,
este livro foi escrito para liberar suas mentes,
para que o seus espíritos possam soar,
e vocês possam se tornar Guerreiros e Fundi,
ao invés de professores de poder branco.

É por e para a nossa Juventude
que deve acreditar no poder da sua Africanidade
Pelo que eles serão capazes de destruir
E reconstruir com visão Africana.

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                   Introdução por

               John Henrik Clarke

Neste livro, a professora Dona Richards abriu uma caixa de Pandora chamada racismo que não vai ser facilmente fechada pelos criadores do racismo ou suas vítimas. O que ela está dizendo terá de ser seriamente considerado se o leitor das suas palavras está para alguma vez conhecer a paz.
Este é um trabalho pioneiro e inovador lidando com um aspecto negligenciado da cultura Européia. A maioria dos trabalhos lida principalmente com o que os Europeus pensam sobre outras pessoas. Neste livro a Professora Richards tem analisado a influência dos Europeus sobre o mundo com base sobre o que eles pensam de si mesmos e como este pensamento afeta a maior parte do mundo.

Sem o dizer, ela tem enfatizado que durante os últimos 500 anos o mundo tem sido controlado por uma forma de nacionalismo Europeu. Eles criaram um conceito chamado, “o outro cultural”, que tem influenciado a sua visão de si mesmos e de outras pessoas em seu contato com os Africanos, Asiáticos e pessoas das Ilhas do Pacífico. Eles declararam como primitivas a maioria das coisas que eles não podiam entender.
Eles riram dos deuses de outras pessoas. Esta crueldade foi agravada quando, através da propaganda e do mau uso da Bíblia, eles ensinaram outras pessoas a rir dos seus deuses escolhidos e adotar o deus do seu conquistador.

Eu já me referi a isso como a manifestação do gênio perverso da Europa [evil genius of Europe]. Eles foram o último ramo da família humana a surgir na arena chamada civilização. Na sua conquista das mentes da maioria da humanidade eles têm sido capazes de convencer a si mesmos e aos outros de que eles eram indispensáveis à civilização, e que sem eles ela não teria existido.

O que o Europeu se esqueceu e fez suas vítimas esquecer é que mais da metade da história humana já tinha passado antes que a maioria das pessoas da África e da Ásia soubesse que um Europeu estava no mundo. A emergência dos Europeus ou pessoas brancas [white people] como os manipuladores do poder mundial e sua capacidade para convencer milhões de pessoas que esta é a maneira como as coisas devem ser é o maior milagre de propaganda única na história [the greatest single propaganda miracle in history].

Nos séculos 15 e 16 os Europeus não apenas colonizaram a maior parte do mundo, eles colonizaram a informação sobre o mundo. Eles desenvolveram controle monopolista sobre conceitos e imagens. A marca registrada de sua colonização nesse sentido foi a colonização da imagem de deus. Após uma série de anos sob dominação Européia, os escravos e os subordinados coloniais dos Europeus não se atreveriam a mencionar a palavra deus em uma linguagem de sua própria criação ou a visualizar deus através da lente de sua cultura.

As ciências políticas e sociais e outras disciplinas acadêmicas utilizadas para explicar a existência humana e profetizar as possibilidades de progresso vieram sob controle Europeu. A igreja Cristã, em muitos aspectos, tornou-se a serva da dominação mundial Européia e, até certo ponto, ainda é.

     Quando em 1492 Colombo, representando a monarquia Espanhola, descobriu o Novo Mundo, ele colocou em andamento a longa e amarga rivalidade internacional sobre possessões coloniais, para a qual, depois de quatro séculos e meio, ainda não foi encontrada qualquer solução.
                                                                                                Capitalismo e escravidão
Eric Williams, University of North Carolina Press, 1944

A declaração acima indica a arrogância dos Europeus na expansão para além das suas margens sobre as terras de outras pessoas. Desde o ressurgimento da Europa nos séculos 14 e 15 até os dias atuais, parte do que eu chamo de seu gênio perverso é sua capacidade para drenar o pus doentio de suas feridas políticas nas terras de outros povos. Com consistência eles têm tentado resolver seus problemas à custa de outras pessoas. O Europeu tem um saco de justificativas para se apossar da terra e recursos de outras pessoas a fim de justificar sua dominação.

Antes do período a que Eu estou me referindo, as pessoas do mundo não eram referidas pela sua cor. Portanto, o conceito de um povo branco [white people] é uma criação;
o mesmo é verdadeiro para povo preto [Black people], para povo amarelo [yellow people] e povo marrom [brown people]. O conceito de raça que agora assola o mundo inteiro é uma invenção artificial Européia. O Professor Ashley Montagu se referiu a isto como o grande mito do homem [man’s great myth]. Embora a palavra raça e os conceitos em torno dela sejam artificiais, os efeitos de sua criação são reais. A aplicação deste conceito tem afetado a vida da maioria das pessoas do mundo. Ele foi parte da base do comércio de escravos e do sistema colonial que se seguiu.
Em seus livros didáticos [textbooks], relatos de viagens [travelogues], e às vezes, na sua interpretação da Bíblia, o Europeu disse ou inferiu que eles eram as únicas pessoas no mundo que criaram algo que merecesse ser chamado de uma cultura. Os Europeus destruíram mais cultura e civilizações do que construíram. Eles estudaram pessoas sem compreendê-las e interpretaram-nas sem conhecê-las. [They have studied people without understanding them and interpreted them without knowing them.]

A professora Richards em seu livro faz esta pergunta reveladora:

Qual é a relação entre o modo como os Europeus concebem o mundo e a forma como eles se relacionam com os povos majoritários? Dito de outra forma: Qual é a relação entre os modos dominantes do pensamento Europeu e os modos dominantes de seu comportamento para com os outros?

Se as pessoas na África e Ásia e nas ex-colônias Européias estão para emergir para plena independência, soberania e responsabilidade mundial, eles terão que responder à pergunta acima criativamente e em seu favor. Então, em um sentido coletivo, eles terão de participar com os outros em um mundo que possa ser livre, que possa reconhecer a influência Européia sem aceitar o domínio Europeu.

Na medida em que não há soldados suficientes na Europa para manter cinco impérios de povos que superam a população da Europa, as vítimas de agressão Européia precisam se perguntar, “Como é que eles fazem isso?”

A conquista Européia sobre a mente da maioria das pessoas da África e da Ásia é a sua maior realização. Com a ascensão de movimentos de independência e milhões de pessoas exigindo o direito de governar a si mesmos, o monopólio Europeu sobre as mentes da maioria da humanidade estava acabado. O imperialismo e o colonialismo não morrerão facilmente. Os ex-subordinados coloniais da Europa estão lutando para recuperar o que a escravidão e o colonialismo levaram –  principalmente a sua auto-confiança e a imagem de deus como eles originalmente conceberam ele ou ela para ser.

A fim de compreender a novas informação e revelações neste livro, os leitores poderão ter de abordá-las tão cuidadosamente quanto a escritora o tem feito. Esta será uma experiência intelectual que tem a sua própria recompensa.

John Henrik Clarke

Abril de 1992

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yurugu encantamento 1 R

yurugu encantamento 2 R

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                  Encantamento

(Ensinado a mim por Armah e Kambon)

Duas mil estações de sono inquieto
Sob a imagem fragmentada dos destruidores
Nós usamos as suas definições de nós mesmos
Para desconectar a nossa consciência
Linhas desenhadas em negação de almas profundamente texturizadas
Okra/ Ka/ Se
Vida /Força/Energia
Nyama.

Eles sabiam mesmo quando estávamos a dormir
Que o nosso espírito era mais poderoso
Do que a sua morte branca.

Em nosso sono sem-vontade
Nós permitimos que a Terra fosse contaminada.
O despertar de duas mil estações
De matéria sem-espírito …
Trabalho dos destruidores.

Confusão no resultado da Maafa
Dentro do nosso conhecimento perdido
Inimigos turvaram a linha
Entre nós e eles.
Será que somos destruidores nós mesmos?
,
Não – Nós somos a Água-de-Nascente
Compelida por consciência Ancestral
Egun/Nsamanfo
Brotando do ventre de Ani
Nós adivinhamos um destino vitorioso
Ifa/Odu.

Nós estamos despertando,
Anunciando a nós mesmos, auto-determinação
Com vontade Núbia
Visão de Cristal
Criando uma nova realidade
Antigo gênio redescoberto
So Dayi – O Mundo Claro.

Equilíbrio das escalas
Restaurando o espírito à matéria
O Integral completo
Feito cósmico novamente.

Ritmo é a chave para o Caminho
Alternando Morte com Vida
Juntando-nos uns com os outros.
Nós somos os Curadores.
A vitória é nossa!

Nós apelamos a Onyame, Olodumare, e Amma
Invocando o poder de Negritude do Nommo
Carregado nos genes de memória da Raça
Hesse!

Ancestrais e Crianças a nascer
Chaves para os círculos de conectividade
e clareza
África redimida
O universo em harmonia
Retornar e avançar
Para o Caminho
De uma ordem natural
Ordem Mundial Africana
Reflexão resplandecente de Ma’at.

Axé!

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                                                Agradecimento


Tiko Ba Si Igi Le Hin Ogba Ogba Ma Nwo
*

[* – “Se a cerca não tiver estacas ela irá cair.” (Provérbio Yoruba)]

Para Quem Elogios e Agradecimentos são Devidos:
Eu vivo perto de meus ancestrais, e mais particularmente de minha mãe. Agradeço-os todos os dias pelas bênçãos que eles continuamente concedem. A Minha responsabilidade para com eles é do que este livro se trata. Ela ajuda a cumprir o juramento que eu tomei, por ter nascido Africana, para vingar seus espíritos. Eu agradeço-os aqui por me dar a vida, pela minha conexão com a Força da Vida Universal [Universal Life Force] (Ntu), por ser a minha consciência coletiva, e pela espiritualidade com a qual Eu penso.

Este trabalho foi mandatado pelo Maafa * – [* – o Holocausto Africano], o grande sofrimento do nosso povo nas mãos de Europeus no hemisfério Ocidental. Ele é esperançosamente uma solução parcial para aquilo que o Professor John Henrik Clarke identificou como “o aprisionamento de um povo à imagem.” As mentes dos povos Africanos ainda continuam lotadas com a imagem dos Europeus como seres superiores. Esta é uma condição que bloqueia a nossa vontade e congela a nossa força-do-espírito.
O Professor Clarke disse que é preciso “incutir vontade na mente Africana para retomar a si mesma.” Isso é o que ele fez por mim. Em troca, eu tenho tentado aqui estabelecer uma base para a desmistificação da imagem Européia, para que a nossa vontade consciente coletiva possa voltar a ser ativada.

Eu devo o meu despertar e crescimento em direção a uma Consciência Nacionalista Pan-Africana ao Professor John Henrik Clarke, que permitiu a alguns de nós como jovens que trabalhavam com o SNCC para, literalmente, sentar-se a seus pés em seu apartamento no Brooklyn, em 1965-1966 e beber de sua sabedoria e conhecimento sobre a história do mundo Pan-Africano. Este contato estreito com o Professor Clarke tocou meu centro Africano e Eu desenvolvi uma paixão pela realização da visão Pan-Africana.

Depois da minha experiência com o SNCC (the Student Nonviolent Coordinating Committee) [Comitê Coordenador Não-Violento dos Estudantes ] no Mississipi, e algumas viagens na Terra-Mãe, Eu iniciei estudos de pós-graduação em antropologia. Esta contradição levou a uma dissertação destinada a revelar as raízes do anti-Africanismo e da consciência imperialista Européia na disciplina de antropologia. A pesquisa começou o que tem se tornado uma peregrinação de 20 anos através das entranhas do pensamento Europeu, levando às conclusões deste trabalho.

O Professor Clarke iria mais tarde voltar a minha vida como uma força mentora. Quando Eu terminei a escola de pós-graduação em 1975 ele levou-me para o Departamento de Estudos Negros e Porto-Riquenhos da Universidade Hunter [Hunter College]. Ele então me aconselhou a escrever artigos sobre aspectos da minha análise e me ajudou a tê-los publicados.

talvez, mais do que qualquer pessoa na comunidade mundial Africana, o Professor John Henrik Clarke tem estimulado os jovens de ascendência Africana a procurar por uma verdade Africano-centrada. Eu aproveito esta oportunidade para expressar meu amor e gratidão, e reconhecer o gênio deste mestre professor; este modelador de mentes. Pois um grande professor é aquele que pode apontar em seus anos de ocaso centenas de pessoas Africanas mais jovens que devam o seu compromisso ideológico e desenvolvimento político à sua inspiração. Axé!

O espectro de continuidade da pesquisa, na verdade, de desenvolvimento de um “paradigma Africano-centrado para dentro do qual colocar a Europa para a crítica, foi incrível. Eu certamente fui tentada a deixar este projeto de lado. E, então, em 1979, Molefi Kete Asante se apresentou a mim, pedindo que eu escrevesse um artigo para um livro que ele estava fazendo. A Minha aceitação dessa tarefa resultou em Let The Circle Be Unbroken [Deixe o Círculo Ser Ininterrupto]. Mas seu trabalho Afrocentricity em 1980 [Afrocentricidade], deu-me, e inúmeros outras, a afirmação que precisávamos para avançar ainda mais no sentido da visão. Foi a perspectiva Africano-centrada afirmada corajosamente em publicação por um autor Africano. Molefi articulou o que outros tinham Indicado e o que seus trabalhos tinham significado. Ele afirmou o que estávamos sentindo.

Foi esse mesmo Molefi Asante que, um dia, quando ele estava visitando Nova York, tirou um manuscrito empoeirado e começou a ler. Eu posteriormente enviei mais capítulos para ele. Ele leu todas as 686 páginas, escrevendo comentários nas margens. Quando terminou, ele foi entusiástico, dizendo: “Marimba, você deve publicar isso!” era a primeira vez que alguém tinha tido tempo de ler todo o trabalho, e ele me fez acreditar na necessidade de sua conclusão.

Eu reescrevi cada capítulo, fiz uma quantidade tamanho elefante de novas pesquisas, e desenvolvi uma formulação teórica que eu utilizei para fazer sentido daquilo que eu tinha encontrado. Foi um ritual doloroso e desgastante. Este foi um processo que eu não teria completado se não tivessem o meu irmão Molefi e o Professor Clarke estado no meu caso: O Professor Clarke dizendo, sempre que Eu ia vê-lo, “Quando é que você vai terminar esse livro!”

Asante Sana para minha filha, Djifa, que também tem sacrificado, sofrido, trabalhado, e pensado sobre este livro.
Mais do que ninguém, ela compartilhou esta experiência. Os seus 16 anos tem sido os anos deste manuscrito. Ela já coligiu páginas, processou palavras para a indexação, e ouviu enquanto eu explicava e trabalhava conceitos. Seus pensamentos e percepções foram inestimáveis. Ela sofreu longos fins de semana grudada em nosso apartamento enquanto Eu trabalhava. Mais perto de mim do que qualquer outra pessoa que eu conheça, ela “compartilha o meu espaço.” [she “shares my space”] E agradeço-lhe por perseverar. Sua fé e amor me mantiveram. Djifa, Nina Kupenda!

Meus alunos na Hunter, especialmente aqueles que participaram em nosso seminário sobre Teoria Crítica durante a primavera de 1993, foram expostos aos conceitos aqui apresentados. Suas idéias [insights], reações, comentários críticos e entusiasmo encorajaram-me a terminar. Estou em dívida com a relação nutridora que temos compartilhado.

Linda e Jessica começaram comigo a digitar versões “quase” finais. É a Herriot Tabuteau que eu devo tanto. ele “me salvou” quando eu não sabia como eu seria capaz de ter o manuscrito digitado. Um estudante pré-médico, que poderia trabalhar no computador (tendo escrito e publicou seu próprio livro com a idade de 16), ele processou o manuscrito inteiro eficientemente e com muito cuidado. Foi um momento crítico para mim. Herriot também me deu um retorno crítico [feedback] sobre as idéias e conceitos que ele continha. Agradeço aos Nsamanfo (ancestrais) por ter nos aproximado neste projeto.

Nichelle Johnson, uma jovem amiga, ex-aluna, e organizadora das Filhas de Afrika [Daughters of Afrika] na Universidade Hunter [Hunter College], trabalhou comigo nas notas, bibliografia, índice, e revisão. Seu espírito era exatamente o que eu precisava. Ela é cuidadosa, precisa e completa. Asante Sana, Nichelle!

Agradeço a Andre Norman por ser paciente o suficiente para me introduzir ao MacIntosh, como ele tem feito com muitos de nosso povo. Essa habilidade tornou a minha edição muito mais fácil. Agradeço-lhe por me permitir invadir o apartamento de sua família para a específica “ajuda de computador” que eu precisava. Seu é um espírito nutridor.

Adupwe aos Egun por enviar meu irmão espiritual, Amurá Oñaã, que é sempre capaz de se manifestar visualmente o que eu vejo e Amurá, Medasi por sua ajuda com as tabelas de explicação.

Nós agradecemos coletivamente os Ancestrais pelo gênio de Al Smith que trouxe discernimento Africano para este trabalho através do simbolismo da máscara. Al, muito obrigado pela sua apoiadora energia e amizade.

As seguintes pessoas ajudaram de diversas formas de valor inestimável; James Conyers, Carole Joy Lee, Persheen Maxwell, Geyuka Evans, Mark Staton, e Spencer Forte.

À Paricia Allen, minha editora, Eu tenho que dar mais do que graças. Eu ofereço a minha compreensão. Peço desculpas pelo volume deste trabalho. Ele requereu meses de trabalho laborioso. Eu sei que a tarefa foi exaustiva. Patricia ainda passou por isso várias vezes, fazendo extensivos, meticulosamente completos comentários editoriais. Ela me ajudou a buscar pela excelência na apresentação e na forma deste trabalho, mas Eu sou a responsável por qualquer problema de estilo que permaneçam.

Se não fosse pelo discernimento de Kassahun Checole este livro não seria de digno para se publicar, ele poderia nunca ter “visto a luz do dia.” Asante Sana, Kassahun.

Eu dou graças a minha prima, Sandra Lawrence, por manter nossa família unida enquanto eu mergulhei nesse projeto. Agradeço também ao meu pai, Franklin Richards, e os outros membros da minha pessoal família e linhagem, por seu apoio durante este empenho.

Medasi para minha irmã Gerri Price pela a nossa amizade. Ela me apoiou neste projeto sem mesmo saber sobre, porque ela me ensinou sobre a Vitória em confrontar o inimigo que é, em última análise, apenas o medo.

E, finalmente, eu quero que o mundo Africano saiba como sou grato à minha irmã e irmãos, Aziza (Claudia) Gibson-Hunter, Jawara Sekou (Keith Hunter) e Kobi Kazembe Kalongi Kambon (Joe Baldwin), por seu Africano-centrismo, por seu amor por mim e os pelos povos Africanos, e por seu consistente incentivo e Imani (fé) neste projeto. Eles compartilham a visão.

Para Vocês Todos, Asante Sana!

Marimba Ani
(Dona Richards)

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                   Glossário
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Asili   –   O logos de uma cultura, no âmbito do qual os seus vários aspectos concordam. É o germe/semente de desenvolvimento de uma cultura. É a essência cultural, o núcleo ideológico, a matriz de uma entidade cultural que deve ser identificada, a fim de fazer sentido das criações coletivas de seus membros.

Utamawazo    –   Pensamento culturalmente estruturado. É a maneira em que a cognição é determinada por uma Asili cultural. É a forma na qual o pensamento de membros de uma cultura devem ser modelados se o Asili estiver para ser cumprido.

Utamaroho   –   A força vital de uma cultura, posta em movimento pela Asili. É a fonte de confiança ou energia de uma cultura; o que lhe dá o tom emocional e motiva o comportamento coletivo dos seus membros. Tanto o Utamawazo quanto o Utamaroho nascem da Asili e, por sua vez, afirmam-na. Eles não devem ser pensados como distintos da Asili, mas, como as suas manifestações.

Outro Cultural   –   Uma construção conceitual/existencial que permite aos Europeus agir a partir de sua agressividade e destrutividade mais extrema enquanto, simultaneamente, limitando sua autodestruição coletiva em um nível consciente.

Ética Retórica   –   Hipocrisia Européia culturalmente estruturada. É uma declaração redigida em termos de comportamento moral aceitável em relação a outros que é destinada apenas para fins retóricos. A sua finalidade é desarmar pretendidas vítimas do imperialismo cultural e político Europeu. É destinada a “exportar” apenas. Ela não se destina a ter um significado dentro da cultura. Sua essência é o seu efeito enganoso no serviço do poder Europeu.

Primeiras Pessoas do Mundo   –   Primeiros descendentes Africanos em todo o mundo.

Povos Majoritários   –   Os membros do núcleo das culturas indígenas do mundo considerados coletivamente, excluindo a minoria Européia.

Nacionalismo   –   Compromisso ideológico para a perpetuação, avanço, e defesa de uma entidade cultural, político, racial, e modo de vida. Este uso do termo não é nem limitado a, nem determinado pelos limites de um “Estado-nação”, conforme definido Eurocentricamente.

Nacionalismo Europeu   –   Todas as formas de pensamento e comportamento que promovem Européia Hegemonia/supremacia branca global.

Nacionalismo Branco   –   Uma expressão de nacionalismo Europeu que identifica características raciais caucasianas com superioridade e características raciais Africanos com inferioridade.

Imperialismo Cultural   –   A imposição sistemática de uma cultura estranha na tentativa de destruir a vontade de um povo politicamente dominado. O mecanismo do imperialismo cultural provoca insegurança cultural e autodúvida dentro do grupo dominado. Separados de seu legado ancestral, eles perdem o acesso à sua fonte de resistência política.

Cientificismo   –   O uso ideológico da “ciência”, definida Eurocentricamente, como uma atividade que sanciona ttodo pensamento e comportamento, ou seja, a ciência se torna sagrada, o mais alto padrão de moralidade.

Objetificação   –   A modalidade cognitiva que designa tudo o que não seja o “eu” [“self”] como objeto. Esse processo exige um ego isolado, desespiritualizado, e facilita o uso do conhecimento como controle e poder sobre o outro.

Dessacralização   –   A alienação e objetificação da natureza. Nessa visão, a natureza se torna um adversário. Esta abordagem à realidade se origina na falta de naturalidade [unnaturalness].

Materialização   –   Esta começa com a separação entre espírito e matéria. Essa separação, por sua vez, resulta na negação do espírito (desespiritualização), a perda de significado, e a perda de cosmos (inter-relacionamento).

Desespiritualização   –   A negação da realidade espiritual. A incapacidade de experimentar o espírito. A Objetificação utilizada ideologicamente resulta na dessacralização e desespiritualização do universo.

Reducionismo   –   A redução dos fenômenos às suas manifestações mais simplistas. Isso ocorre quando a mente não é capaz de aperceber níveis mais profundos, mais texturizadas de significado. Como uma deficiência cognitiva, isto impede a compreensão das verdades metafísicas.

Reificação   –   Isso ocorre quando a teoria é usada como lei em vez de metáfora e quando o processo é substituído por manipulação factual. Reificação é o endurecimento da dinâmica, da verdade vital em dogma amortecido.

Linearidade   –   A interpretação de fenômenos como sendo compostos de unidades separadas, unidimensionais, dispostas em ordem seqüencial. Essa concepção é necessariamente secular e resulta em dessacralização. Ela nega a circularidade e a espiral de desenvolvimento orgânico. Ela impede a transcendência de tempo e espaço ordinário, negando assim a experiência ontológica ancestral.

Dicotomização   –   Um mecanismo que acompanha a objetivação. É a divisão do fenômeno em conflitantes partes de confronto. Ela facilita a perseguição do poder sobre outro, e, portanto, é adequada para a Asili Européia.

Espírito   –   A força criativa que une todos os fenômenos. É a fonte de toda a energia, movimento, causa e efeito. À medida que se torna mais denso, ele se manifesta como matéria. Ele é o nível significativo da existência.

Espiritualidade   –   A apreensão do inter-relacionamento cósmico. A apercepção de sentido na existência, e o grau em que alguém é motivado por tal significado. A espiritualidade é a habilidade de se relacionar com os níveis metafísicos da experiência. Ela une pensamento e sentimento e, assim, permite a compreensão intuitiva. Este sentido cognitivo/afetivo é transmitido através da relação ancestral coletiva. A ausência de espiritualidade é um legado ancestral.

Yurugu   –   Um Ser na Mitologia Dogon que é responsável pela desordem no universo. Este é um ser concebido em negação à ordem natural, que então age para iniciar e promover a desarmonia no universo. Em Cosmologia Africana esse é um ser deficiente em sensibilidade espiritual, está perpetuamente em conflito, é limitado cognitivamente, e está ameaçando o bem-estar da humanidade.

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YURUGU - GRÁFICO 2 - ASILI - R

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YURUGU - GRÁFICO 4 - ESTÉTICA EUROPÉIA

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YURUGU - GRÁFICO 5 - IMPERIALISMO CULTURAL EUROPEU -

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YURUGU - GRÁFICO 6 - comportamento dominaçãop

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    YURUGU - GRÁFICO 7 - Ideologia de Dominação

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                                       Introdução

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Bolekaja!*

[ * – Bolekaja é um termo Yorubá que significa, “Venha, vamos lutar!” (“Come on down, let’s fight!”) Ver Chinweizu, Onwuchekwa Jemie and Ihechukwu Madubuike, Toward the Decolonization of African Literature, Vol. I, Howard university press, Washignton D.C., 1983, p. xii.]

Este estudo da Europa é uma polêmica intencionalmente agressiva. Ele é uma agressão contra o paradigma Europeu; um repúdio de sua essência. Ele é iniciado com a intenção de contribuir para o processo de desmistificação necessário para aqueles de nós que nos libertaremos do imperialismo intelectual Europeu. A Européia dominação política da África e grande parte do mundo “não-europeu” tem sido acompanhada por um implacável estupro cultural e psicológico e por devastadora exploração econômica. Mas o que me obrigou a escrever este livro é a convicção de que, por baixo deste ataque mortal encontra-se uma mistificação intelectual estupidificante que impede às vítimas políticas da Europa de pensar de uma forma que os levaria à autêntica autodeterminação. A Descolonização intelectual é um pré-requisito para a criação de estratégias de descolonização política e de reconstrução cultural bem sucedidas. O sucesso imperialista político da Europa pode ser atribuído não tanto ao poder militar superior, quanto à arma da cultura: O primeiro garante controle mais imediato, mas exige força física contínua para a manutenção do poder, enquanto que o último [a arma cultural] é bem-sucedida na dominância de longa duração que assegura a cooperação de suas vítimas (ou seja, pacificação da vontade). O segredo que os Europeus descobriram cedo em sua história é que a cultura traz regras para o pensamento, e que se você puder impor a sua cultura em suas vítimas você pode limitar a criatividade de sua visão, destruindo sua capacidade para agir com vontade e intenção e em seu próprio interesse. A verdade é que nós todos somos “intelectuais”, todos visionários potenciais.

Este livro discute a evolução desse processo de imposição, bem como as características dos seres culturais que acham que é necessário impor a sua vontade aos outros. Este não é um processo simples para se explicar. Uma vez que as ferramentas de que precisamos a fim de dissecá-lo têm sido tiradas de nós através de deseducação colonial. [colonial miseducation] *

[ * – Chinweizu, The West and the Rest of us, Nok Publishers, Lagos, 1978, p. xiv; Carter G. Woodson, The Mis-Education of The Negro, AMS Press, New York, 1977.]

É necessário começar, portanto, com um doloroso desmame dos próprios pressupostos epistemológicos que nos estrangulam. O desmame requer paciência e compromisso, mas a libertação de nossas mentes vale bem a pena o esforço.

Meu campo escolhido é ciência cultural Africano-centrada – a reconstrução de uma cultura Africana revolucionária. Eu ensino estudos Pan-Africanos. A experiência me convence cada vez mais, no entanto, que o ensino de estudos Pan-Africanos significa bem ensinar estudos Europeus simultaneamente. Para serem verdadeiramente livres, povos Africanos devem vir a conhecer a natureza do pensamento e comportamento Europeus, a fim de entender o efeito que a Europa tem tido sobre a nossa capacidade de pensar vitoriosamente. Nós devemos ser capazes de separar o nosso pensamento do pensamento Europeu, de modo a visualizar um futuro que não seja dominado pela Europa. Isto é exigido por uma visão Africano-centrada porque somos africanos, e porque o futuro para o qual a Europa nos leva é genocida.

Chinweizu descreve a si mesmo como um “ocidentalista”; Iva Carruthers chama a atenção para o estudo de “Arianologia” [“Aryanology”] *

[ * – Chinweizu, Onwuchekwa Jemie, and Ihechukwu Madubuike, Toward the Decolonization of African Literature, Vol. I, Howard university press, Washington, D.C., 1983; Iva Carruthers, “War on African Familyhood”, in Sudy Black Bridges, Roseann Bell, Betty Parker, and Beverly Guy-Sheftall (eds.), Anchor Press, Garden City, N.J., 1979.]

Estes estudiosos Africano-centrados tem feito contribuições para a desmistificação do pensamento e comportamento Europeus; o movimento de libertação Africano está em dívida com eles. E há outros (tantos demais para ser mencionado aqui); Ankobia * que estão abrindo o caminho para uma teoria social Africano-centrada.

[* – Ankobia é um termo Twi [Anu] que identifica aqueles que lideram em batalha, portando o estandarte de coragem e compromisso.]

No espírito de Cheikh Anta Diop e Bobby Wright, chegam Ayi Kwei Armah, Kwame Agyel Akoto, Kobi K. K. Kambon (Joseph Baldwin), Molefi Kete Asante, Ifi Amadiume, Frances Cress Welsing, Wade Nobles, Jacob Carruthers, Amos Wilson, Na’im Akbar, Kariamu-Welsh-Asante, Maulana Karenga, Linda James Myers, Aziza Gibson-Hunter, Asa Hilliard, Ngugi Wa Thiong’o, K.C. Anyanwu, Cedric Robinson, C. Tsehloane Keto, Haki Madhubuti, Abena Walker, e outros; uma vanguarda que está codificando a linguagem da análise Africano-centrada. Os padrões para vigorosa afirmação Africana já tinham sido estabelecidos por Harriet Tubman, Nat Turner, ida B. Wells, Anna Julia Cooper, Edward Wilmot Blyden, Marcus Garvey, Carter G. Woodson, George James, John G. Jackson, Chancellor Williams, Yosef Ben-Jochannan, John Henrik Clarke, Malcom X, e os nomes que não podemos mencionar, os nomes que não sabemos, as centenas de prisioneiros políticos e prisioneiros de guerra, que passaram a sua juventude desde o início da década de 70 na cadeia. Acima de tudo, a tradição intelectual de afirmação Africana não pode ser separada da força espiritual que existe em cada pessoa Africana, a medida que cantam e fazem música e protegem suas famílias e criam seus filhos. A Academia – um equívoco Europeu [misconception] – não tem lugar para nós.

A Teoria social Africano-centrada é a criação coletiva de todos os aspectos da nossa história de luta e vitória. Começou quando começamos; desafiada pelos primeiros invasores da Terra-Mãe. Recebeu nova vida a partir da Passagem do Meio [Middle Passage]. Ela foi modelada durante o cadinho do Maafa [crucible of Maafa]. E agora engloba a visão, pensamentos e criações de cada alma Africana; cada mãe e pai, cada criança. Estes são os nomes que eu iria listar.

Eu tentei uma crítica abrangente da tradição Européia, mas o grau em que as mentes das pessoas de ascendência Africana (especialmente a nossa juventude) estiverem liberadas para vislumbrar um futuro Africano vitorioso será o julgamento de seu sucesso. A crítica será chamada de “racista” por Eurocentristas, mas esta não foi desenvolvida para eles. E como diz Aziza Gibson-Hunter, “’racismo’ é o fogo aceso pelos Europeus; a nossa resposta é apenas a fumaça.” E embora os “liberais” a teriam de outra forma, não há nenhum meio para se extinguir um incêndio sem experimentar a fumaça. Os Europeus fizeram o fogo; nós vamos apagá-lo.

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Tese e Processo

Ser de ascendência Africana e estudar antropologia é ser atingido pelo anti-Africanismo penetrante da disciplina. E se alguém, então, aborda a disciplina criticamente,esta emerge como uma tradição do Eurocentrismo, funcionando para satisfazer as necessidades do ethos Europeu. A crítica da antropologia me levou direto para as entranhas da matriz cultural/histórica Européia. Eu não tinha outra alternativa, então, a não ser embarcar em um estudo crítico da totalidade do que é cultura Européia; para estabelecer suas bases ideológicas, seu funcionamento interno, os mecanismos que facilitam o seu funcionamento.

Os antropólogos, através do seu uso e abuso do conceito de cultura tem inibido esse processo necessariamente crítico. Eles têm geralmente ignorado as implicações políticas de cultura desenfatizando a sua função ideológica. Eles tipicamente concentram sua atenção em sociedades supostamente “simples” e “isoladas” não-européias. Através desse uso convencional do conceito de cultura, essas sociedades têm sido teoricamente e superficialmente abstraídas dos contextos políticos nos quais elas existem. Este uso permite que os antropólogos ignorem as implicações da exploração Européia, enquanto que as condições do colonialismo e do neo-colonialismo os provém com seus “objetos” de estudo.

Antropologia não é simplesmente uma “filha do imperialismo”. * É uma manifestação do ethos Europeu.

[* -. Katheleen Gough, “Antropologia e Imperialismo”, em Monthly Review, abril de 1968, pp 12-23]

É por isso que muito poucos antropólogos estudam a si mesmos, isto é, suas próprias origens culturais. A sua posição politicamente superior permite a eles estudarem os outros, mas não a serem estudados. Os poucos que o fazem estudar a Europa fazem-no em isolados bocados e pedaços (mito Nórdico,  sociedade camponesa, cultura folclórica). Mesmo a “antropologia urbana” não se aproxima da cultura Européia como uma totalidade. Uma ciência social Eurocêntrica não pode ser usada para examinar criticamente a tradição cultural Européia. No entanto, não há razão para que o conceito de cultura não deva ser utilizado para estudar o caráter extraordinário do comportamento imperialista Europeu. Na verdade, a perspectiva Africano-centrada torna-o atraente. Felizmente, essa perspectiva tem me separado da tribo dos antropólogos Europeus.

Nosso esforço atual exige a “des-Europeização” do conceito de cultura. Isso deve se tornar relevante para as necessidades políticas daqueles que tenham sido vítimas da Europa, * e na Europa deve ser posto em foco como uma entidade cultural.

[ * – Dona Marimba Richards, “From Anthropology to African-centered Cultural Science”, unpublished paper. New York, 1984.]

Ao enfatizar a função ideológica da cultura, é possível dar sentido à confusão intimidante e complexidade superficial da experiência Européia. Entendendo cultura como ideologia nos permite nos aproximarmos da cultura Européia, de modo a torná-la um fenômeno visível, extremamente coeso e bem integrado, em um sentido mais “simples” do que poderíamos supor. Debaixo da sua heterogeneidade enganosa encontra-se uma essência monolítica: uma essência que conta para o sucesso do imperialismo Europeu. Isso não quer dizer que este esforço é um caminho fácil. Mas isso não deve dissuadir-nos. A sua dificuldade o torna ainda mais imperativo, ainda mais urgente.

Wade Nobles define cultura como “um processo que dá às pessoas um desígnio geral para a vida e os padrões para interpretar sua realidade.” Seus “aspectos”, diz ele, são, ideologia, ethos, e visão de mundo; seus “fatores” são, ontologia, cosmologia, e axiologia; e suas “manifestações” consistem de comportamento, valores, e atitudes. *

[ * – Wade Nobles, Africanity and the Black Family, Black Family Institute Publications, Oakland, Ca., 1985, p. 103]

Estes são os aspectos da cultura Européia que vamos trazer em foco neste estudo. Vamos ver como a cultura e a ideologia se “encaixam” em conjunto; como uma ênfase ideológica na interpretação da cultura é mais consistente com o seu significado e importância. Se olharmos para o fenômeno da cultura, nós somos impressionados com as seguintes características:

1. Ela age para unificar e ordenar experiência, de modo que seus membros percebem organização, consistência e sistema. A este respeito, ela proporciona uma “visão-de-mundo” que oferece concepções de orientação da realidade.

2. Ela dá às pessoas identificação de grupo,na medida que ela constrói sobre experiência histórica compartilhada, criando um senso de identidade cultural coletiva.

3. Ela “diz” a seus membros “o que fazer”, criando assim uma “voz” da autoridade prescritiva. * [* – Leonard Barrett, Soul-Force: African Heritage in Afro-American Religion, Doubleday, Garden City, N.J., 1974, p. 6.] Para seus membros, Cultura representa valores (que eles próprios criaram em conjunto a partir de experiências compartilhadas) como um conjunto sistemático de idéias e uma afirmação coerente única.

4. Ele fornece a base para compromisso, prioridade e escolha, dando, desse modo, direção ao desenvolvimento e comportamento de grupo; na verdade, ela age para limitar os parâmetros de mudança e para padronizar o comportamento dos seus membros. Desta forma, a cultura ajuda a iniciar e autorizar a sua própria criação.

5. Ela provém a criação de símbolos e significados partilhados. É, por conseguinte, a principal força criativa de consciência coletiva, e é que é o que torna possível construir uma consciência nacional.

6. Por todas as razões acima, ela impacta sobre a definição de interesse do grupo e é potencialmente política.

A compreensão de Willie Abraham sobre a natureza da cultura é útil no nosso estudo, e ele perceptivelmente reconhece a sua aplicabilidade para a análise do desenvolvimento Europeu:

Cultura é um instrumento para fazer. . . cooperação natural. O seu êxito depende da medida em que ela é permitida para ser auto-autenticadora. Embora ela permita a discussão interna. . . os princípios de decisão em tais discussões são eles próprios fornecidos pela cultura. Ao unir as pessoas em crenças e atitudes comuns. . . a cultura enche com ordem aquela parte da vida que está além dos limites da intervenção do Estado. . . . Ela preenche-a de tal forma que, ao mesmo tempo, integrando sua sociedade, sobre a base de reações comuns, ações comuns, interesses comuns, atitudes comuns, valores comuns. Ela cria a base da formulação de um destino comum e a cooperação em persegui-lo. Se alguém olha para o Ocidente considera que esta utilização da cultura está bem desenvolvida. É o que está envolvido, quando se ouve dizer que esta ou aquela crença irá destruir certo modo de vida e que aquele modo de vida que deve ser defendido, não importa a que custo. *

[ * – Willie Abraham, the Minds of Africa, University of Chicago Press, Chicago, – 1962, p. 27.]

O impulso ideológico da cultura é inevitável. Ele corajosamente nos confronta. Cultura é ideológica, uma vez que possui a força e o poder para dirigir atividade, para moldar personalidades, e para padronizar comportamento. Este reconhecimento implica uma teoria da cultura.

Raymond Betts coloca desta forma: “Ideologia é aqui utilizada em um sentido cultural, para denotar a iconografia verbal pelo qual um povo representa a si mesmo, a fim de alcançar um propósito comum.” *

[ * – Raymond Betts, (ed.) The Ideology of Blackness, D.C. Heath and Company, Lexington, Mass., 1971, p.v.]

Leonard Barrett diz que ideologia é “o alicerce espiritual e intelectual da coesão do grupo.” * [* – Barrett, p. 6.]

Tanto cultura quanto ideologia são extremamente políticas em natureza, uma vez que elas se tratam da definição de interesse do grupo, a determinação de destino de grupo e objetivos comuns. Comportamento político é simplesmente o comportamento que é emitido a partir de uma consciência da definição do grupo como distinta de outros grupos. Nós pensamos politicamente quando avaliamos o nosso interesse de grupo em relação aos interesses de outros grupos e determinamos se esses interesses são compatíveis com ou em oposição aos nossos. Nós agimos politicamente quando o nosso comportamento e estratégias refletem essas avaliações. Identificação cultural e compromisso ideológico são bases para consciência política. Com esse entendimento “repolitizado” da cultura, estamos preparados para começar o nosso estudo da Europa.

A abordagem do estudo deve ser, necessariamente, holística e sintética. A exaustiva descrição etnográfica da cultura Européia é de valor limitado, mesmo que fosse viável.
A tentativa de alcançar detalhes serviria apenas para desviar a nossa atenção de determinar a natureza fundamental da cultura. A abordagem bem-sucedida para a análise e compreensão sintética da cultura Européia demonstra a sua organicidade, descobre as relações e interdependências entre os seus vários aspectos. Como com qualquer cultura, nós olhamos por consistência e padrão. Idiossincrasia e anomalia só são úteis na medida em que, através de contraste, ajudam-nos a reconhecer o que é característico. Isto é revelado através de um foco ideológico e uma metodologia pela qual nós procuramos as inter-relações entre as modalidades dominantes através das quais a ideologia da cultura se expressa. A Cultura Européia, assim como a cultura universalmente, é um processo contínuo em que o significado é criado e reafirmado. A apreensão do significado na cultura e os mecanismos através dos quais é reforçada são preocupações críticas deste estudo.

Este esforço é facilitado pela identificação de “temas”, que, como Morris Opler os chamou, são “afirmações dinâmicas” que agem para determinar o comportamento e para “estimular atividade.” A tradução de um tema para o comportamento ou crença torna-se a sua “expressão”. *

[ * – Morris Opler, “Themes as Dynamic Forces in Culture”, in American Journal of Sociology, Vol. 51, 1945, p. 98.]

Mais uma vez, há um foco ideológico. De repente, a complexidade (vastidão) da cultura Européia torna-se acessível. Nós estamos em busca dos “princípios explicativos” da cultura. *

[ * – Robin Williams, American Society, 3rd ed., Alfred A. Knopf, New York, 1970, p.22.]

Através de um foco axiológico (valores) os eixos centrais da cultura são esclarecidos, e através de uma ênfase em funções sintéticas nós apreendemos unidade sob a diversidade superficial (heterogeneidade) da Europa. Olhando para além do superficial para o que tem significado ideológico, nós temos procurado os modos de padronização e os mecanismos de legitimação. São estes aspectos da cultura Européia que dão ordem, e a ordem é o atributo mais forte da cultura.

De fato, o presente estudo revela que a impressionante ordem Européia, a sua consistência esmagadora, e a força de sua ideologia, lhe dá um grau incomparável de poder.
A questão bifurcada, “por que” e “como”, determina o método e abordagem de nossa investigação. Nós temos abordado significantes criações e comportamentos culturais com a pergunta: Por que eles existem? Como eles se tornam convincentes [forceful]? Estas são as questões de ideologia.

As divisões e subdivisões por meio das quais o estudo é apresentado são, em grande medida, superficiais. Elas foram criadas por conveniência e para ajudar-nos na percepção de uma realidade que nós geralmente experimentamos como uma totalidade convincente [forceful], não em partes analisáveis. A ordem de apresentação não está para implicar uma relação linear ou hierárquica entre essas “partes”, pois elas se sobrepõem de uma forma que desafia a compartimentalização, e sua relação é circular e reticular.

Em todas as culturas, existe o aspecto “tomado por certo” [“taken-for-granted”], assumido, e habitual que, embora geralmente menos visível do que outros, e raramente explícito – exerce a mais profunda influência sobre os seus membros. Isto é precisamente porque ele funciona em um nível tão profundo. De acordo com Edward T. Hall estes “controles ocultos” [“hidden controls”] tornam-se respostas habituais que são experienciadas “como se fossem inatas”. *

[ * – Edward T. Hall, Beyond Culture, Anchor Press, Garden City, N.J., 1976, p. 42.]

Os antropólogos falam sobre visão-de-mundo [world-view] como aquele aspecto da cultura que funciona para substituir o presente caos com ordem percebida, fornecendo os membros de uma cultura com definições da realidade com as quais fazer sentido de seu entorno e experiências; é a organização significativa da experiência, a “estrutura assumida da realidade.” [“assumed structure of reality”].*

[ * – Clifford Geertz, The Interpretation of Cultures, Basic Books, New York, 1979.]

Esta “profunda estrutura” [“deep structure”] da cultura, como Wade Nobles a chamou, tem uma mais poderosa influência na forma [shape] da cultura e nos padrões-de-pensamento [“thought-patterns”] dos seus membros. *

[ * – Wade Nobles, “African Consciousness and liberation of Scientific Paradigms, Part I, “Journal of black Studies, Vol. I. November 3, 1985, San Francisco State University, Black Studies Department.]

Esta é apenas uma das razões pelas quais este estudo começa com uma discussão do pensamento Europeu; existe outra. A cultura Européia é única em seu uso do pensamento cultural na afirmação de um interesse político. Enquanto a lógica de qualquer cultura, no sentido do que os seus membros são ensinados a aceitar como “fazer sentido” [“making sense”], pode tornar-se, para eles, parte de uma realidade assumida, Europeus têm usado a sua “lógica cultural” em uma maneira efetivamente agressiva:

(1) A cultura “ensina” a sua “lógica” e visão-de-mundo [world-view] para os participantes comuns, que, então, a assimilam, assumem-na e empurram-na sob a superfície, de onde ela influencia o seu comportamento e respostas coletivos.

(2) Em seguida, membros “especiais” da cultura – considerados como “intelectuais”, “estudiosos”, “teóricos” – restauram os pressupostos desta visão-de-mundo e os representam como os princípios de um sistema universal de pensamento, um que apresenta padrões de lógica, racionalidade e verdade ao mundo. Estes são considerados os teóricos seminais da cultura, quando, na verdade, as suas idéias simplesmente refletem a realidade assumida da cultura dominante [mainstream culture]. A maneira de sua apresentação é, no entanto, oficial [authoritative].

(3) Deste modo, a visão-de-mundo Européia assume força ideológica não só dentro, mas fora da cultura, uma vez que pode ser imposta como universal, especulativa, e auto-consciente.

(4) Ao mesmo tempo, seu caráter paroquial e axiológico permanece bem escondido e camuflado embaixo de um pseudo-universalismo.

Este é o aspecto mais difícil da cultura Européia. Mas, uma vez compreendido, é a chave para o segmento ideológico que vai de um modo, um tema, uma característica para outra. O processo de pensamento é consistente, refletindo a consistência do impulso ideológico que deve ficar exposto. Ele faz parte do núcleo do imperialismo.

O Capítulo 1, que começa a Parte 1 deste trabalho, busca caracterizar os temas epistemológicos e ontológicos do pensamento Europeu, a fim de estabelecer um contexto no qual colocar os outros modos dominantes da cultura Européia. Para abordar a Europa criticamente, nós devemos primeiro entender que a linguagem do valor Europeu é a linguagem de um cientificismo abstrato. Nossa tarefa, em suma, é lançar em questão precisamente o que se presume estar fora de questão na cultura Européia, isto é, a sua epistemologia científica.
Ao fazer isso, nós sucedemos trazendo ideologia Européia para a vista para que esta possa ser reconhecida em outros padrões e criações da cultura. As implicações ideológicas da epistemologia se tornam uma ferramenta de decodificação para a interpretação crítica da cultura.

O Capítulo 2 revisa religiões institucionalizadas como um sistema que sacraliza a ideologia, alcança interna ordem social e política e autoridade imperial vis-à-vis outras culturas.

O Capítulo 3 discute a estética como uma expressão de valor. Concepções Européias de beleza e princípios Europeus de prazer revelam uma maior declaração da ideologia e da psique coletiva. O tema do universalismo erige sua cabeça, uma vez que a discussão de “arte” é usada pelos Europeus como uma ferramenta do imperialismo. Isso conclui a Parte I, o que nos deixa com uma compreensão dos hábitos mentais, filosóficos, e estéticos que atuam para apoiar um estilo particular de comportamento.

A Parte II, (Capítulos 4 e 5) analisa as imagens e conceitos de “si mesmo” [“self”] e “outro”, que suportam a discussão na Parte III: os padrões de comportamento dentro da cultura Européia (Cap. 7) e com relação a outros (Cap. 8).
O Capítulo 6, que inicia a Parte III, discute a relação entre o que os Europeus querem nos fazer acreditar que estão fazendo e o que realmente acontece. É muito importante compreender esta brecha entre palavra e ação, por assim dizer, uma vez que pessoas de outras culturas, muitas vezes cometem erros políticos caros por causa da falta deste componente retórico e hipócrita em sua própria cultura.
Eles interpretam mal [misinterpret] linguagem Européia e deixam de prever o comportamento Europeu. Eles estão sempre, portanto, chocados com a intensidade da hostilidade e natureza agressiva desse comportamento.

A Parte IV examina de perto os temas de “progresso” (Cap. 9) e “universalismo” (Cap. 10), em ideologia Européia. Juntos, eles são a vanguarda que desarma, intelectual e culturalmente, as vítimas da dominação Européia. O estudo conclui, oferecendo uma interpretação da cultura Européia que relaciona o seu extremo racionalismo ao seu comportamento intensamente imperialista para com os outros. Os vários temas, modos, e padrões em discussão convergem para formar uma única realidade monolítica. O imperialismo emerge como o esmagador tema persistente desta declaração crítica, que demonstra como epistemologia, axiologia, estética, iconografia, e comportamento, todos se conectam juntos de forma a formar uma rede de apoio impressionantemente sólida, preparando a busca por poder Europeu.

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Evidência

 

Uma vez que temos discernido os princípios explicativos da cultura Européia, nós descobrimos muitas variadas fontes de informação. Elas incluem o registro histórico de comportamento Europeu, tanto do ponto de vista daqueles com quem os Europeus têm interagido quanto do ponto de vista dos próprios Europeus. A ênfase, no entanto, em termos de coleta-de-informações, é sobre os diversos veículos de auto-expressão Européia, na crença de que é olhando para as declarações, comportamentos e modos de expressão daqueles que consideravam a si mesmos como Europeus que nós podemos começar a chegar ao que é que “Europeu” significa. Isto emerge, então, como um “modo de ser” para um determinado grupo de pessoas. Nossas fontes etnográficas são aqueles veículos de auto-expressão que revelam como os Europeus vêem a si mesmos e sua cultura; ou seja, o que eles gostariam de ser e como eles desejam aparecer para os outros. Nós podemos então entender a lógica do comportamento implícito por estas idéias, usando o registro do comportamento Europeu para com os outros.

A Literatura Européia Ocidental é também uma fonte muito valiosa de informações. Eu tenho usado teoria social Européia, porque há tanta axiologia a ser encontrada oculta em seu jargão e nos padrões de pensamento que surgem a partir dela, e eu tenho ocasionalmente usado a literatura de nacionalismo branco, como ela manifesta aspectos cruciais da ideologia Européia e da Européia auto-imagem e imagem de outros. Muitas vezes eu tenho usado e me referido às palavras e idéias daqueles filósofos e teóricos que são considerados pensadores seminais da Europa. Esta discussão é, em parte, uma síntese e afirmação de anteriores críticas Africano-centradas da Europa, bem como um reconhecimento daquelas vozes críticas que têm sido largamente ignoradas pela tradição Européia. Estas críticas também tornaram-se uma fonte de informação.

No entanto, a fonte mais importante é a minha própria experiência da cultura. Experimentando o núcleo intelectual através de suas academias, sentindo o peso de sua opressão por causa da minha Africanidade, Eu tenho sido tanto semi-participante quanto “observadora”, acumulando evidências da natureza da realidade Européia através de confronto direto. A vantagem de ser Africana é que isto me permitiu penetrar a cultura Européia a partir de um ponto de referencia “não-europeu”.

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Conceitos e Termos

 

Em última análise, a libertação do nosso pensamento de sua condição colonizada vai exigir a criação de uma nova linguagem. *

[* – Hunter Adams, “Strategies Toward the Recovery of Meta-Conscious African Thought”, lecture at City College in New York, 6 June 1987; Molefi Kete, Afrocentricity: The Theory of Social Change, rev. ed., Africa World press, Trenton, 1986; orig. published 1980.]

Aqueles que estão envolvidos no desenvolvimento da teoria Africano-centrada estão constantemente se movendo em direção a esse objetivo. Nesta fase, estamos preparados para criar novos conceitos para facilitar a nossa abordagem ao tema, que se encaixam a metodologia exigida pela nossa crítica. Para compreender e explicar a natureza da cultura Européia, nós precisamos de um conceito que seja ao mesmo tempo analítico e sintético. Este conceito deve nos permitir explicar a experiência Européia como um produto da cultura Européia e explicar a cultura (pensamento, comportamento, instituições) como um produto do seu núcleo ideológico. Na verdade, qualquer cultura deve ser entendida nesses termos.

Robert Armstrong discute a idéia de uma “consciência primal” como “o código de consciência que infunde cada pessoa, levando-a a herdar e, por sua vez, a ajudar a constituir a sua cultura, ditando os termos em que o mundo está para ser percebido e experimentado.. . “. *

[* – Robert Armstrong, Wellspring: On the Myth and Source of Culture, University of California Press, Berkeley, 1975. p. 94]

Esta consciência atua como um “germe gerador”; ela é, portanto, “o fator causador da cultura.” Este fator “pré-conceitual”, “pré-afetivo”, “pré-espacial”, e “pré-temporal” funciona para manter a integridade e a homogeneidade da cultura. Armstrong chama-o de “mitoforma” [“mythoform”]. *

[* – Ibid., p.96]

A abordagem de Armstrong ao que ele chama de “antropologia humanista” está longe em antecedência à ciência social Eurocêntrica, e “mitoforma” [“mythoform”] abre possibilidades mais libertadoras do que o tradicional paradigma antropológico Europeu. Como ele o apresenta, mitoforma liga as expressões conscientes e inconscientes da cultura. Em termos de consciência, então, poderíamos dizer que o processo cultural é a partir da mitoforma para a mitologia para a ideologia. Mas nós temos que estender a concepção de Armstrong. Sistemas Mitológicos apresentam símbolos sintetizantes que ajudam a coletivizar a consciência das pessoas dentro da cultura, ao mesmo tempo afirmando experiência pré-consciente oculta em uma modalidade mais extrínsica [outward]. Mitologia cria ícones a partir da experiência do inconsciente coletivo. Ideologia é uma extensão intensamente auto-consciente desse processo, que começou com “mitoforma” pré-consciente (se quisermos aceitar o termo de Armstrong). Ideologia envolve o uso mais intencional dos ícones sagrados da cultura para propósitos políticos, isto é, para a sobrevivência, defesa e projeção da cultura. Ideologia é mitologia politicamente interpretada.

Esses fatos da apresentação da cultura podem ser entendidos como ações experienciais (intelectual, emocional, espiritual) em um processo consistente. Cada atividade cultural leva à ou cresce a partir da outra quando todas as circunstâncias causais estão presentes. O processo se move a partir do pré-consciente (mitoforma) para o consciente (mitologia) para a auto-consciência (ideologia). Mas este não é um processo hierárquico nem estritamente unidirecional.
Ideologia não é necessariamente o estágio “mais elevado”, exceto em um contexto político. (Infelizmente nossa realidade tem se tornado dominada pela definição política, e não temos escolha a não ser dar mais atenção a este aspecto da vida.)

O aspecto ideológico de uma cultura tem duas vertentes:
(1) Ele está em cada cultura – dando sentido às vidas de seus membros e às suas criações de grupo; (2) Ele dá ímpeto à cultura [it gives the culture momentum]. Mas em algumas culturas a ideologia é também extrínsica [outward], buscando projetar a cultura, assumindo uma postura competitiva e hostil em relação a outras culturas. Todas as culturas não possuem uma afirmação ideológica intensamente desenvolvida neste último sentido. A falta de uma ideologia agressiva parece estar relacionada com a falta de percepção de um mundo ameaçador “do lado de fora” [“outside”], a incapacidade de perceber outros grupos culturais como “o inimigo”. Na cultura Européia, o impulso ideológico extrínsico, a postura agressiva, é desenvolvida mais intensamente do que em qualquer outra cultura. Ao examinarmos a cultura, descobrimos que seus modos dominantes de expressão revelam uma consciência quase fanaticamente política ou confrontacional em que todos os fenômenos culturais que são “outros” ou diferentes são considerados hostis ao interesse do grupo. A intensificada consciência política começa na mitoforma pré-consciente; as origens bio-culturais.

Nós precisamos ainda de mais um conceito, que combina mitoforma, mitologia e ideologia em um átomo causal, por assim dizer. No presente estudo Eu tenho apresentado o conceito de asili, uma palavra Kiswahili que é usada de várias maneiras relacionadas para significar “começo”, “origem”, “fonte”, “natureza” (no sentido da “natureza” de um pessoa ou coisa), “essência” e “princípio fundamental”. Ela também pode ser entendida como “semente” (isto é, origem) e “germe” (isto é, a fonte ou princípio iniciador do desenvolvimento). Todos esses significados se ajustam ao ideal que Eu estou tentando transmitir, e Eu tomei a liberdade de usar asili como um termo e de moldá-lo em uma ferramenta conceitual que a natureza deste presente estudo demanda.

Asili como uma ferramenta conceitual para análise cultural refere-se ao princípio explicativo de uma cultura. É o princípio germinal do ser de uma cultura, a sua essência. A idéia de uma semente, o símbolo analógico onipresente em explicações filosóficas e cosmológicas Africanas, é ideal para nossos propósitos. A idéia é que o asili é como um modelo que carrega dentro de si o padrão ou modelo arquetípico para o desenvolvimento cultural; nós poderíamos dizer que ela é o DNA da cultura. Ao mesmo tempo ela incorpora a “lógica” da cultura. A lógica é uma explicação de como ela funciona, bem como, o princípio de seu desenvolvimento. Nossa suposição então, é que a asili gera desenvolvimento sistemático; ela é uma afirmação do logos. A asili de uma cultura é formulativa, e é ideológica na medida em que ela dá sentido ao desenvolvimento. Ela é responsável por consistência e padrão na cultura, e também por sua tenacidade. A asili determina o desenvolvimento cultural; em seguida, a forma que a cultura toma atua para manter a integridade da asili. ‘Ela atua como uma tela, incorporando ou rejeitando inovações, dependendo da sua compatibilidade com a sua própria natureza essencial. É como se a asili fosse um princípio de auto-realização. Ela é uma força propulsora que vai dirigir a cultura, desde que permaneça intacta: ou seja, carregada nos “genes culturais”.
A fim de a cultura ser alterada (e isso inclui o pensamento e comportamento coletivos daqueles dentro dela), a própria asili teria de ser alterada. Mas isso implicaria um processo de destruição e o nascimento de uma nova entidade. Asili(s) Culturais não são feitas para ser mudadas.

Obviamente, a introdução deste conceito implica uma teoria da cultura. Este quadro teorético [theoretical framwork] tem certas vantagens. Em primeiro lugar, o pressuposto é que cada cultura tem uma asili, uma vez que é a semente germinante da formação cultural, e esta asili é determinada pela coletiva natureza fundamental dos seus membros. Em segundo lugar, a asili de uma cultura em particular pode ser identificada e, consequentemente, a sua natureza inerente ser delineada. Em terceiro lugar, isto apresenta-nos uma poderosa ferramenta de explicação, uma vez que temos um conceito que ajuda a explicar a organicidade, estrutura e desenvolvimento de qualquer cultura: A Asili aponta para sua força motriz, dizendo-nos “o que a faz funcionar.”
[Asili accounts for its driving force, telling us “What makes it tick”.]

Asili é um conceito sintetizador naquilo em que nos permite explicar e ver a maneira em que os vários aspectos de uma cultura se relacionam e como coexistem [how they cohere]. Esta relação crítica ocorre dentro da matriz ideológica da cultura, a asili. Ao invés de ser limitados por um processo linear, nós sempre voltamos para o centro; a asili é nosso ponto de referência; explicando fenômenos culturais dentro do contexto de uma tradição cultural específica. A Asili tem um foco ideológico, uma vez que ela é concernida com aquilo que compele e demanda determinadas formas e conteúdos de expressão. A Asili nos permite reconhecer a cultura como um mecanismo de organização básico que forja um grupo de pessoas em um “grupo de interesse”, uma unidade ideológica. Este é o caso mesmo quando os descendentes de uma cultura e civilização originais têm sido dispersos em outras áreas do mundo; enquanto eles estão ligados através de uma asili comum, eles constituem uma diáspora, manifestando a vida contínua da civilização. A Asili nos permite distinguir o periférico, o anômalo, e o idiossincrático, e ao mesmo tempo a Asili nos permite interpretar padrões de pensamento e comportamento coletivos (em termos, da asili cultural). A Asili é ambos um conceito e uma realidade cultural. Se nós a assumimos (o conceito), então ela ajuda a explicar uma cultura em termos do princípio dominante e fundamental de seu desenvolvimento (sua realidade).

A Asili, então, irá permitir-nos compreender e explicar o comportamento, pensamento, e as criações de um povo em termos da origem e lógica de sua cultura. Neste caso, permite-nos compreender o pensamento e comportamento Europeus como sendo partes de um todo ideológico [ideological whole].
A filosofia religiosa e a estética Européias se tornam particularizadas no contexto da asili Européia. Resta agora para nós determinar o conteúdo e natureza desta asili particular. Uma vez que tenhamos feito isso, a cultura Européia se torna explicável como uma totalidade ideológica. Isso não significa, contudo, que uma asili definitiva é convenientemente visível para nós inicialmente; antes, a sua natureza emerge das características mais fortes da cultura na medida em que elas são “sentidas” através de confrontação e observação. É uma questão da percepção de ênfase, foco e prioridade. Estes ligam-se [gel] em nossa concepção de asili como a semente, que é então entendida como sendo o germe formulativo. Mas asili não é uma idéia como a mitoforma [mythoform] de Armstrong. Ela é uma força, uma energia que afirma a si mesma pela formulação de orientações para e colocando limites na criatividade cultural. [It is a force, an energy that asserts itself by giving direction to and placing limits on cultural creativity.]
Asili é o primário fator determinante do desenvolvimento cultural e um princípio explicatório essencial da teoria cultural.

No presente estudo, eu tenho usado outros conceitos para complementar o conceito de asili. Eu tomei emprestado outros termos Kiswahili para conotar as idéias em questão. Utamaduni significa “civilização” ou “cultura”; wazo significa “pensamento”; e roho é “espírito-vida” [“spirit-life”]. Eu criei o conceito de utamawazo para transmitir a idéia de “pensamento como determinado pela cultura”. E eu tenho introduzido utamaroho *, ligeiramente mais difícil de explicar, como o “espírito-de-vida de uma cultura” [“spirit-life of a culture”], também a “personalidade coletiva” dos seus membros.

[ * – Professor Ibrahim Sherif (African Studies, Rutgers University) and Professor Jaffer Kassimali (African and Puerto Rican Studies, Hunter College) have helped me with the construction of these terms.]

Utamawazo é muito próximo ao que é entendido por “visão de mundo”, mas possui mais de uma ênfase ideológica do que a forma como costumamos usar esse termo.
O “Eidos” de Gregory Bateson é semelhante, mas, novamente, há diferenças. Em seu livro Naven, Bateson introduz o que ele chama de “estruturas culturais”, um termo coletivo para o esquema lógico coerente da cultura. Isso é um pouco como o nosso asili. O investigador pode determinar o “esquema”, diz ele, “encaixando as várias premissas da cultura.” [“fitting together the various premises of the culture.”] *

[* – Gregory Bateson, Naven, Stanford University Press, Stanford, 1958, p. 25.]

Eidos é “uma padronização dos aspectos cognitivos da personalidade dos indivíduos”, e, mais uma vez, a “expressão cultural de aspectos cognitivos e intelectuais da personalidade”. Ethos refere-se aos aspectos emocionais do comportamento cultural; “O sistema de atitudes emocionais que governa qual valor uma comunidade deve definir sobre as diversas satisfações ou insatisfações que o conteúdo de vida podem oferecer.” [“the system of emotional aspects of cultural behavior; “the system of emotional attitudes which governs what value a community shall set upon the various satisfactions or dissatisfactions which the contents of life may offer”.] *

[* – Ibid, p. 220.]

Bateson oferece uma explicação de como este processo funciona:

A cultura em que um indivíduo nasce enfatiza algumas de suas potencialidades e suprime outras, e atua seletivamente, favorecendo os indivíduos que estão melhor dotados de potencialidades preferidas na cultura e discriminando contra aqueles com tendências estranhas. Desta forma, a cultura padroniza a organização das emoções das pessoas. *

[* – Ibid, p. 115.]

Um aspecto muito valioso da abordagem de Bateson é o conceito de “normalização” [“standardization”] como “o processo pelo qual os indivíduos em uma comunidade são moldados para assemelhar-se uns aos outros em seu comportamento”. *

[* – Ibid, p. 311.]

Curiosamente, ele diz que o conceito de ethos pode ser “valiosamente” aplicado [“valuably” applied], “mesmo para culturas enormes e confusas tais como aquelas da Europa Ocidental.” *

[* – Ibid, p. 212.]

Se olharmos para a maneira em que Bateson explica o processo através do qual o ethos é padronizado, a partir de uma perspectiva Africano-centrada, nós podemos entender que a “discriminação” contra aqueles de nós com “tendências” Africanas é, em certo sentido, um resultado natural do processo de normalização [standardization process] que funciona na cultura Europeia. A cultura “escolhe” os estilos-de-personalidade que lhe “veste” (ou lhe “serve”), assim como nossas personalidades foram influenciadas pela asili Africana.
[The culture “chooses” the personality-styles that “suit” it, just as our personalities have been influenced by the African asili.]

Utamawazo, pensamento como determinado pela cultura, é o eidos de Bateson naquilo em que foca sobre a forma em que a cultura atua para determinar estilo cognitivo coletivo. Refere-se aos padrões de pensamento de um grupo de pessoas que estão culturalmente relacionadas, tão longe quanto estes padrões de pensamento foram determinados pela cultura. Utamawazo é como “visão de mundo” naquilo que sublinha a importância de suposições metafísicas e pressupostos sobre a natureza da realidade, e a maneira em que a cultura apresenta os seus membros com definições e conceitos com os quais para ordenar a experiência.  Utamawazo, no entanto, coloca mais ênfase em operações mentais conscientes e refere-se à maneira em que ambos o pensamento especulativo e o não-especulativo são estruturados pela ideologia e experiência bio-cultural. Utamawazo nos permite demonstrar a consistência ideológica das premissas da cultura e identificar aquelas premissas na medida em que elas tendem a ser expressões padronizadas [standardized expressions] de uma entidade cultural única.

Julian Jayne usa a expressão “imperativos cognitivos coletivos” [“collective cognitive imperatives”] *, e isso é bem próximo do que nós entendemos por utamawazo.

[ * – Julian Jaynes, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, Houghton Mifflin, Boston, 1976, p. 439.]

Centra-se em definições epistemológicas na crença de que a cultura atua para ajustar [fix] definições de verdade e processo-da-verdade [truth-process], a cultura constrói um universo de autorização que rejeita e incorpora idéias com referência à uma predisposição cultural na intenção e estilo. E, o que é mais, a asili adiciona dimensões de propósito e direção, que são convincentes [forceful]. Utamawazo, então, não pode ser entendido à menos que seja colocado no contexto da asili. Utamawazo diz sobre perspectiva.

Wade Nobles define o ethos de um povo como “o tom, caráter, e qualidade de sua vida, o seu estilo e modo moral e estético. Surge como um conjunto de princípios orientadores que definem a atitude subjacente que eles têm para com eles mesmos e seu mundo.” *

[ * – Nobles, pp. 104-105.]

Karenga define ethos como “a soma das características e realizações de um povo, que o definem e distinguem de outros e lhe conferem a sua auto-consciência coletiva e personalidade coletiva”. *
[“the sum of characteristics and achievements of a people which define and distinguish it from others and gives it its collective self-consciousness and collective personality”.]

[M. Karenga, Kawaida Theory, Kawaida Publications, Inglewood, N.J., 1980, p. 90.]

Utamaroho, como ethos para Nobles, é responsável por “atitude”, “caráter”e “estética” em um sentido coletivo, mas não inclui os “princípios orientadores” que têm uma função determinante; isto seria mais próximo de nosso asili. Em termos de “ethos” por Karenga, utamaroho inclui a idéia de “personalidade coletiva”, mas não é de forma alguma auto-consciente. Utamawazo tem uma expressão auto-consciente, mesmo que ela se origine na asili meta-consciente, mas utamaroho permanece em um nível inconsciente do sentimento. Utamawazo é cognitivo na expressão, enquanto utamaroho é afetivo. Utamaroho é muitas coisas ao mesmo tempo. É um conceito que indica o caminho no qual a asili atua para forjar uma resposta coletiva entre os membros de uma cultura para a vida e para o mundo como eles o enfrentam. Mas esta resposta, no sentido do utamaroho, não é pensada ou planejada. Ela é mais uma reação instintiva causada por seu “espírito”. Usado desta forma, “espírito” refere-se à natureza essencial de um ser. É a idéia que uma pessoa (ou como é neste caso), uma cultura, ou grupo de pessoas possuem uma substância imaterial (não física) que determina o seu caráter único ou “natureza”. Mas a essência física e não-física estão ligadas aqui, assim como no conceito de um “gene” que carrega “memória”.

Nós falamos de utamaroho como poderíamos falar de “temperamento” e “caráter” e resposta emocional. Estes podem soar como os termos de psicologia, mas utamaroho não é “indivídual”; é coletivo. A questão da relação entre cultura e personalidade não é uma novidade. Os recentes estudos “psico-históricos” assumm uma postura Freudiana em sua maior parte, usando a teoria psicanalítica para analisar desenvolvimentos culturais no contexto da circunstância histórica. *

[ * – Eli Sagan, The Lust to Annihilate: A Psychoanalytical Study of Violence in Ancient Greek Culture, Psychohistory Press, New York, 1985; Joel Kovel, White Racism: A Psychohistory, Vintage, New York, 1971.]
A escola da antropologia chamada “cultura e personalidade” é muito mais velha, seus teóricos tentando descobrir as maneiras em que a cultura influencia a personalidade de seus membros. Eles geralmente têm enfatizado, alternativamente visões de mundo ou “padrões” (Benedict) e/ou “configurações”, “temas” (Opler) e linguagem (Mead) como esses fenômenos agem para determinar o estilo da cultura em questão. Spengler (1926) fala um pouco obscuramente sobre a “imagem-alma” [“soul-image”] do Europeu Ocidental como sendo “Faustiana” [“Faustian”] .

          Utamaroho não classifica o(s) ethos(s) de culturas em tipos, como as teorias etnológicas anteriores podem, mas, como inseparável da asili; este concentra-se sobre a singularidade de uma cultura em particular no que diz respeito ao seu emocional, em vez de padrões cognitivos. Enquanto o caráter do utamawazo de uma cultura se expresse mais obviamente na literatura, filosofia, discurso acadêmico e pedagogia, o utamaroho torna-se mais visível na expressão comportamental e estética, seja visual, auditiva, ou cinestésico [kinesthetic]. Ao mesmo tempo utamaroho é a fonte inspiracional a partir da qual o utamawazo deriva a sua forma, pois utamawazo não é simplesmente “pensamento”, mas “formas de pensamento”. A asili define o utamaroho (espírito) e dá forma ao utamawazo. A asili por sua vez é energizada pela utamaroho (força vital) [life-force]. Utamawazo (pensamento), utamaroho (espírito-de-vida) e Asili (semente), influenciam, reenforçam e dependem uns dos outros em um processo circular e em uma realidade que impede a sua rígida distinção como “causa” ou “efeito”. Este processo circular de síntese é a própria cultura. Não seria possível para um destes fenômenos culturais contradizer outro dentro da mesma experiência cultural. Por sua própria definição, eles são auxiliares [supportive], compatíveis, reafirmantes, e mutuamente generativos. Eles são as peças de engate [interlocking pieces] de um sistema ideológico.

Utamaroho é uma parte especial deste processo, uma vez que ele é a fonte de energia para todas as formas coletivas da cultura. A asili é a semente, a origem, mas, uma vez em existência, o utamaroho é a vitalidade da cultura. Ele garante a sua vida contínua. A asili compele a cultura a realizar-se, mas o faz através da forma de seu utamawazo e a vida de seu utamaroho. O utamaroho de um povo é uma força feita poderosa por meio de sua coletividade. O caráter único da cultura – suas realizações, limitações, brilho, instituições e postura vis-à-vis outras culturas – são espirituados pelo seu utamaroho [spirited by its utamaroho]. Mas o utamaroho deve ser continuamente regenerado por suas instituições, criações, e padrões de comportamento nos quais é refletido. O utamaroho (personalidade coletiva) do povo irá ser guerreiro, se a asili demanda guerra para o seu cumprimento, a sua auto-realização. O utamaroho irá ser espiritualista ou materialista, criativo ou controlado, dependendo da natureza da asili da cultura. O utamaroho será uma indicação dos tipos de atividades que são agradáveis e desejáveis para os membros da cultura. Ele vai determinar o que eles consideram ser belo e, em certa medida, como eles se movem e falam. Os aspectos axiológicos da cultura serão relacionados ao seu utamaroho, que responde de forma significativa para a motivação em um sentido coletivo. A asili é a semente que produz uma força. A força é o utamaroho de um povo. É a personalização coletiva da asili e representa a possibilidade de sua existência. O utamawazo é a modalidade de pensamento em que a vida mental do povo deve funcionar para que eles possam criar e aceitar uma cultura que seja consistente com a asili originária.

Utamaroho e utamawazo são fenômenos extremamente fortes na experiência Européia. Eles estão reunidos na asili, o princípio raiz da cultura. Nem o caráter do utamaroho Europeu nem a natureza de seu utamawazo são modificáveis, a menos que a própria asili mude. Entenda desta maneira, a cultura é o desdobramento de princípios já implicados em seu processo originário. Mas o conceito Asili não implica a sua própria causa.

O Capítulo 8 revisa outras teorias sobre a origem do comportamento Europeu. Minha discussão teórica, no entanto, é limitada a um delineamento de como a cultura funciona, e não o que levou a asili a vir a existência. Estes três conceitos nos permitem abordar e entender a cultura Européia como um produto único de seus aspectos fundamentais. Eles se tornam conceitos intensamente políticos na medida em que a cultura Europeia é intensamente política, e eles coerem no impulso ideológico da cultura. Assim, com a sua introdução, nós temos propriamente politizado a idéia de cultura, dando-lhe um foco ideológico.

Existem mais alguns termos, embora eles não representem novos conceitos, devem ser discutidos por uma questão de clareza, de modo que o meu uso deles seja entendido desde o início. Parece absurdamente acadêmico fazer a pergunta, O que é “Europeu”? Muito do que passa por informação nas academias é simplesmente um longo panegírico da experiência Européia. Nesses casos, nunca parece ser um problema identificar o que se entende por “Europeu” ou “Ocidental”. Norman Cantor revela sua perspectiva Eeurocêntrica como ele introduz sua obra em três volumes, Western Civilization: Its Genesis and Destiny [Civilização Ocidental: Sua Gênesis e Destino], ao usar a retórica da “objetividade” acadêmica:

A maioria de nós somos produtos da herança Ocidental, e nossas formas tradicionais de pensar sobre os acontecimentos históricos foram moldadas pelas forças que moldaram muito da cultura Ocidental. Em todos os nossos modos de pensamento, nós inevitavelmente mostramos a marca do patrimônio Ocidental. Nós absorvemos nossa ética, religião, filosofia, ciência, arte e literatura a partir de famílias, escolas e um ambiente social e intelectual que por sua vez foram formados por séculos de crescimento e desenvolvimento. *

[ * – Norman Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. I, Scott, Foresman, Atlanta, 1969, p. 3.]

Ele se sente à vontade falando sobre “os fundamentos básicos da nossa civilização”, e prossegue para fazer a seguinte pergunta:

Como e por que o Ocidente alcançou preeminência intelectual, econômica e militar no mundo por volta de 1900? Por que a história do Ocidente, apesar de muitos retrocessos e fracassos, parece ser uma história de progresso em direção a novas formas de pensamento e arte para a realização de uma maior e maior riqueza e poder? *

[ * – Ibid, p. 4.]

Ele continua:

Algumas qualidades do pensamento e vida social Europeus são únicos. Outras civilizações têm méritos que o Ocidente carece, mas certas idéias ocorreram apenas para os Europeus, e certas técnicas foram descobertas e aplicadas apenas por eles.

Para Cantor o problema fundamental a ser abordado por alunos e professores das civilizações Ocidentais é:
“Por que e como as distintivas idéias e instituições do Ocidente se desenvolveram?” *

[ * – Ibid, p. 5.]

Toynbee respondeu que apenas o Ocidente respondeu a desafios, e que o Ocidente foi marcado por sua vitalidade criativa. De acordo com Cantor, “Até agora, nenhum estudioso ofereceu uma explicação completa e absolutamente satisfatória do desenvolvimento das qualidades únicas da civilização Ocidental.” Este é precisamente o objetivo do presente estudo, embora não a partir da mesma perspectiva de Cantor. Quanto ao que ele quer dizer com “Ocidente” [“West”], Cantor diz especificamente, “os países da Europa Ocidental e os ramos da civilização Ocidental encontrados nas Américas do Norte e Latina.” *

[ * – Ibid, p. 8.]

E ele deixou claro que na sua opinião os Europeus são as pessoas responsáveis pela “civilização Ocidental”.

Este é o tipo de definição que é assumida quando nós fazemos o nosso caminho embora o grande número de requeridos cursos de graduação, textos, televisão, e até mesmo espetáculos de filmes que lidam com a “civilização Ocidental” Eurocentricamente. Mas quando uma crítica Africano-centrada da Europa é tentada, de repente esta torna-se, se não invisível, uma entidade evasiva de incerta definição e demarcação. Uma vez, quando eu fiz um comentário sobre a “visão-de-mundo Européia” um colega me questionou sobre qual das “muitas” visões-de-mundo representadas na tradição Européia, eu estava me referindo. Embora ele tenha elogiado a tradição de forma consistente, agora ele argumentou que esta não era uniforme, nem representava uma única realidade. Mas o nacionalismo Europeu, tão forte e tão pervasivo, é criado não pela diversidade, mas pela percepção de unidade. Esta é a percepção de R.H. Tawny:

As sociedades que compõem a Europa são em graus variados os herdeiros da primeira grande era da civilização Ocidental;
A parceria não foi dissolvida quando essa época passou. Filosofia e literatura Gregas, lei Romana; a longa aventura de missionários Cristãos; a igreja medieval; feudalismo; o Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma; a Revolução – tudo isso e muito mais reagiram a eles. Sua religião, sua literatura e arte, sua ciência, seus sistemas econômicos são uma criação cosmopolita, para a qual todos contribuíram e todos estão em dívida. Tais coisas, é verdade, não criam em si mesmas a unidade, mas criam as condições desta. Elas fazem com que a Europa, em meio a todos os seus febris ciúmes e terrores, a ser uma única civilização, assim como uma família contenciosa ainda é uma família, e um mau Estado continua a ser um Estado. Eles tornam sua cultura uma, seus crimes tragédias domésticas, suas guerras guerras civis. *

[ * – Quoted in George O. Adams, “The Idea of Civilization”, in Civilization, University of California Press, Berkeley, 1975, p. 45.]

Esta é a entidade cultural sob análise no presente estudo.

Eu tenho usado o termo “Europeu” mais consistentemente neste estudo, mas eu considero-o ser intercambiável com “Ocidental”, “Europeu Ocidental”, e “Europeu-Americano”. Oswald Spengler fala sobre “Europeu-Americano-Ocidental”, que ele considera ser a única cultura na fase de “cumprimento”. [“fulfillment”] *

[ * – Oswald Spengler, The Decline of the West, Vol. I, Alfred A. Knopf, New York, 1928, p. 3.]

O que é “Europeu”, como outros fenômenos culturais, é em parte um todo intuído e, portanto, não se presta à simplista definição “cientificamente” rigorosa. No entanto, o termo é entendido e utilizado por acadêmicos, teóricos e leigos semelhantemente. A definição de qualquer cultura em particular não é um processo linear, mas um necessariamente circular. Nós começamos com o pressuposto do fenômeno cultural de “Europeanidade” [“Europeanness”] que se presta a descrição e explicação, porque nós já temos percebido e vivenciado(sentido) que este seja tal. No processo de descrever o que percebemos, esperamos dar-lhe a definição que ele já inerentemente possui. Mas isso não leva a qualquer tipo de prioridade linear ou temporal, nem é “visto” da mesma forma que um objeto material é “visto”. O que é Europeu irá sempre ser, em parte, um produto de como é experienciado. Abstrair essas reações de sua definição não só seria impossível, mas deixaria muito pouco valor ou pertinência.

O que é o Europeu não é simplesmente um grupo de características, e tentar enumerar essas características não só deturparia a minha intenção, mas deixaria este estudo aberto à crítica óbvia. Qualquer um ou uma série de características generalizadas que serão discutidas como Européias pode ser encontrada, em certa medida, em outras culturas. E uma discussão sobre a etiologia da “Europeanidade” [“Europeanness”] usando essa abordagem seria ainda mais complicado pelo fato de que esta tem sido uma das manifestações mais significativas de chauvinismo Europeu para reivindicar criações culturais que podem ser demonstradas serem de origem não-Européia. A contradição nessa tentativa é óbvia, uma vez que a identificação auto-consciente da entidade cultural que seria referida como “Ocidental” ocorreu cronologicamente muito mais tarde do que muitos dos desenvolvimentos institucionais com os quais os Europeus optam por identificar. Na medida que tradições culturais começam, o “Ocidente” é, afinal, bastante jovem e biologicamente ou racialmente os Europeus são, é claro, “os novos garotos no quarteirão” [the “new boys on the block”].
Características individuais não os identificam como sendo “Europeus”: antes, é a maneira pela qual eles são combinados, e o fato de que eles são reforçados através da cultura, que os funde para uma força ideológica. É somente no contexto das culturas Européias que os temas identificados assumem significado ideológico. Foi essa percepção que me levou ao conceito de asili, como o centro significativo e de organização da cultura. [asili, as the organizing and meaningful center of culture.]

Com esse entendimento e objetivo em mente, nós não precisamos envolvermo-nos no argumento como sobre que instituições culturais são “invenções Européias”, e “quão muito” ou “quão pouco” uma cultura particular, tem “contribuído para o progresso da civilização.” Estas são meramente as polêmicas do chauvinismo Europeu, e elas se tornam significativas somente como dados etnográficos neste estudo. Pois parte da definição de o que é Europeu pode ser encontrada nas coisas com que aqueles que chamam a si mesmos de Ocidentais ou Europeus têm tradicionalmente escolhido para identificar, e, similarmente, a maneira pela qual eles vêem a si mesmos em relação aos outros povos.
O que é apresentado é uma configuração única de características que são combinadas de tal maneira que as tendências de ênfases, prioridades, e comportamentais manifestadas formam uma realidade cultural /histórica experienciada que tem sido tradicionalmente referida como “Européia Ocidental”, “Ocidental”, ou, como nós iremos nos referir a esta, “Européia”/”Europeu” [“European”].

Um produto da civilização da Europa moderna, estudando qualquer problema de História Universal, é obrigado a se perguntar a que combinação de circunstâncias, deve ser atribuído o fato de que, na Civilização Ocidental, e na Civilização Ocidental somente, fenômenos culturais têm aparecido que (como gostamos de pensar) jazem em uma linha de desenvolvimento que tem significância e valor universais. * [sublinhado dele]

[ * – Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), rev. ed., Charles Scribner’s Sons, New York, 1958, p. 13.]

Max Weber fez a pergunta “certa” por razões Eurocêntricas e, portanto, não pode oferecer uma resposta que seja útil para nós. A chave para a resposta Africano-centrada reside em sua declaração parentética – “como gostamos de pensar”. Seu utamaroho (“gostamos”) e seu utamawazo (“de pensar”) combinam-se em uma maneira ditada por uma asili que leva a cultura a consistentemente projetar-se em termos universalísticos. Esta tendência é especificamente discutida no Cap. 10, mas é um tema recorrente ao longo do livro.

É ‘Europeu’ sinônimo de “moderno”? É isto [‘Europeu’], afinal, uma etapa no desenvolvimento cultural universal? A resposta depende da perspectiva.
A questão é, portanto, discutível. Parte da dificuldade está com a definição dos termos.
O ponto significativo a partir de uma perspectiva Africano-centrada diz respeito ao que acontece se nós dissermos que a cultura Européia representa meramente qual será a eventual forma de todas as culturas. A resposta é que não existe possibilidade para uma crítica viável daquilo que os Europeus criaram, porque não há outra (“não-européia”) perspectiva. Outras ideologias se tornam impotentes, porque, identificar “Europeanidade” [“Europeanness”] como um estágio inevitável no desenvolvimento de “não-Europeus” é dizer que eles (“não-Europeus”) não existem – certamente não como diretivas, como influências, ou como agentes de mudança.

A maioria das potencialmente valiosas críticas da cultura europeia – das quais existem umas poucas preciosas – têm sofrido de uma doença comum. Desde que elas sintaticamente fazem da cultura Européia uma representação de um estágio universal no desenvolvimento humano, eles são deixados sem lugar para procurar por soluções ou alternativas criativas. Problemas “Ocidentais” tornam-se os problemas de “homem moderno” nestas críticas. Assim elas são superficialmente universalizadas, e os Africanos devem tornar-se “modernos” antes que elas possam sequer lidar com eles. Os Europeus são, neste ponto de vista, os únicos com autoridade para criticar sua cultura, e as críticas que fazem e as soluções que eles encontram são ditas por terem significado universal. O Imperialismo Europeu, desta forma, não é visto como o produto dos padrões de comportamento de um grupo cultural particular, nem de certos tipos de pessoas, mas sim das tendências “naturais” de todas as pessoas em um determinado período de desenvolvimento cultural. O argumento continua: “Toda cultura se torna Européia, na medida que torna-se mais moderna”, então há realmente apenas uma cultura válida, e a única alternativa ideológica é a “mais-que-moderna” [“more-than-modern” one].

De forma a ser útil, o termo “modernidade” tem de ser redefinido, de modo que, por exemplo, podemos falar de vestuário moderno Africano ou arte moderna Africana usando um ponto de referência Africano-centrado. Atualmente, o conceito de modernidade é demasiado Eurocêntrico para ser de valor prático ou teórico em uma crítica da cultura Européia. Nós devemos começar com a suposição de que Europeanidade [Europeanness] não é inevitável. E uma vez que nós queremos descrever “um certo modo de ser cultural” em oposição a “um certo nível de história” *, o desenvolvimento Europeu é um produto da ideologia Européia.

[ * – Stanley Diamond, Search for the Primitive, Transaction Press, New Brunswick, N. J., 1974, p. 118.]

Consequentemente, ele representa uma particular visão e abordagem para o mundo – tão parcial como qualquer outra. E, como qualquer outra construção ideológica, pode ser, teoricamente, portanto, rejeitado, criticado, ou substituído. Isso não quer dizer que a rejeição da Europeanidade é uma tarefa fácil, ou que a Europa não dá a ilusão de ser onipresente. Mas a questão da validade universal de formas Européias não deve ser confundida com o bem sucedido expansionismo da cultura Européia. E a resistência à Europa, como esta é agora definida, só pode ser alcançada através de um compromisso para essa resistência. Aqueles que começam com a suposição de que eles estão simplesmente lidando com o caráter de “modernidade” estão condenados desde o início pois que eles já aceitaram os termos de ideologia Européia.

Alguns problemas na terminologia surgem ao se referir a outras culturas. O termo “não-europeu” [“non-European”] é usado com relutância por causa de suas usuais conotações negativas, e porque implica um ponto de referência Eurocêntrico. Mas, neste caso, este é adequado uma vez que o foco do estudo é a Europa exclusivamente: Assim que o que é “outro” é de fato uma negação do que é “Europeu” (ou seja, “não-europeu”) [“non-European”].

Este fato não obstante, eu me senti mais confortável usando outros termos, e eles exigem uma explicação. O termo “Primeiro Mundo” [“First World”] é usado para se referir aos descendentes das mais antigas civilizações conhecidas por nós: África e sua Diáspora. “Culturas Primárias” [“Primary cultures”] também é utilizado desta maneira. Os Europeus, neste sentido, representam um povo secundário, derivado, e mais jovem. Tenho por vezes tomado emprestado o termo de Chinweizu do título de seu livro, The West and the Rest of Us (1978) [O Ocidente e o Resto de Nós] e refere-se à aqueles de nós que não são Europeus como “O resto de nós”. E eu tenho me referido a esses “outros” povos e culturas como “maioria” [“majority”], uma vez que os Europeus e a cultura que eles criaram representam uma pequena “minoria” quando vistos no contexto mundial.

“Nacionalismo” como um fenômeno cultural é um aspecto muito importante da cultura Européia e, portanto, deste estudo. Nacionalismo, nesse sentido, não é limitado pelo conceito de “Estado-nação”, antes, refere-se ao compromisso por parte dos membros de uma cultura para a sua defesa política, sua sobrevivência, e sua perpetuação. No caso da Europa, este também envolve um compromisso com a sua supremacia, com a sua expansão, e com a destruição de outras culturas. Nacionalismo Europeu é, portanto, perigoso para o resto do mundo. Mas é muito importante compreender que isso não significa que nacionalismo seja um fenômeno negativo universalmente. É, na verdade, “natural”, ser centrado na própria cultura e buscar preservá-la. Isso faz parte da essência da cultura. Mas o conteúdo do nacionalismo Europeu torna-se problemático: (1) porque implica agressão imperialista; e (2) porque este geralmente não é reconhecido como a manifestação de interesse de grupo, tornando assim difícil para outros grupos se defenderem contra os seus efeitos. Um objetivo importante deste trabalho, portanto, é tornar o nacionalismo Europeu reconhecível como tal.

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Perspectivas e Objetivos

Este estudo não foi abordado objetivamente. Não é possível ser objetivo em relação à Europa: Certamente as vítimas de seu imperialismo cultural, político e econômico não são objetivas, se eles são sãs. E os Europeus não podem ser “objetivos” sobre a sua própria história cultural. A questão, então, se torna: O que poderia a objetividade possivelmente significar em termos de atitudes mentais humanas? As implicações do conceito de objetividade são discutidas criticamente neste estudo e em outros lugares. * Este é um conceito que atua para mistificar as vítimas da Europa: uma das ferramentas mais eficazes da ideologia Européia.

[* – Dona Marimba Richards, “Rumo à desmistificação da Objetividade”, em Imhotep, Journal of Afrocentric Thought, Vol. I, No. 1, Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade Temple, 1989.]

A reivindicação de uma verdade definitiva absoluta é uma necessidade psicológica para a mentalidade Europeia. E já que a tenhamos aceitado, é um édito que tem limitado a maioria de nós que fomos treinados em academias Européias. Mas Africano-centralidade [African-centeredness] quebra esta limitação por reconhecer a verdade como um processo no qual nós mergulhamos a nós mesmos por causa de um compromisso, não a uma abstração universal, mas a uma certa qualidade de vida. A partir de uma perspectiva Africano-centrada, nós entendemos a verdade como sendo inseparável da busca de significado e propósito – a preocupação exclusiva da consciência humana. Como estudiosos Africanos, é nossa responsabilidade criar formulações teóricas sistemáticas que irão revelar as verdades que nos permitam libertar e utilizar as energias do nosso povo. Nessa visão, o auto-determinista, o revolucionário, e o estudioso são um, com o mesmo objetivo, envolvidos no mesmo processo de verdade [truth process]. A reivindicação que fazemos não é uma “objetividade” espúria, mas honesta. Eu, portanto, não tenho feito nenhuma tentativa para camuflar nem a minha relação com a Europa nem o meu objetivo na realização deste estudo.

Como diz Wade Nobles, os tipos de perguntas que fazemos são influenciadas pela cultura a que pertencemos. *

[ * – Nobles, p. 104.]

Teoria nasce de comprometimento e intenção. Todo teórico põe parte de si mesmo (ou a si mesma) nas formulações teóricas e conclusões que ele (ou ela) produz. Mas isso não as torna menos válidas. Quando lidando com as ciências sociais, teorias ganham validade quando vistas em relação ao seu quadro de referência, seu centro. Esse centro é culturalmente significativo apenas quando emite a parte de uma consciência coletiva. A visão da Europa aqui apresentada será convencente apenas na medida em que alguém seja livre de pressupostos Europeus e compromissos ideológicos Eurocêntricos. Mas isso não é por causa de qualquer fraqueza nos argumentos ou provas apresentadas. O registro fala por si. Em última análise a validade é julgada em termos de interesse. Esta teoria sobre a cultura Europeia é válida na medida em que ajuda a nos libertar da opressão [stranglehold] do controlo Europeu.

Este estudo representa uma visão do pensamento e comportamento Europeus que surge de prolongado confronto pessoal com a cultura Européia, surge de uma consciência politizada por meio da consciência Africana, e feita intelectualmente positiva através de um enraizamento [grounding] em Africano-centralidade [African-centeredness].
“Afrocentricidade” [“Afrocentricity”] é uma forma de ver a realidade que analisa fenômenos usando o interesse do povo Africano como um ponto de referência, como afirma Asante. *

[ * – Asante, Afrocentricity: The Theory of Social Change, Africa World Press, Trenton, 1986.]

A Africano-centralidade [African-centeredness] fornece o quadro teórico no qual os modos dominantes de expressão Europeia foram definidos para análise aqui. Este processo estabelece um sistema para avaliação crítica. Seus padrões são severos. Suas questões intransigentes.

A expressão mais insidiosa de nacionalismo Europeu se manifesta no processo de codificação, através do qual padrões de comportamento e pensamento tem sido estandardizados através de formulações teoréticas validativas fornecidas pela academia Européia. Nós precisamos apenas decodificar seu funcionamento, a fim de compreender os mecanismos de supremacia e quebrar o seu poder. O objetivo deste estudo é colocar a experiência Européia sob escrutínio, a fim de revelar a sua natureza. Nós viraramos a mesa, transformando “sujeito” em “objeto”, e, no processo, estamos nós mesmos nos transformando em vitoriosos ao invés de vítimas [victors rather than victims]. Nós saímos do jugo das modalidades conceituais Européus que tinham nos impedido a realização da “vontade consciente coletiva” do nosso povo.

[ * – Ibid.]

Os nossos objectivos são, especificamente:
1. demonstrar a relação entre o pensamento Europeu, a natureza das instituições Européias, o anti-Africanismo Europeu, e o imperialismo Europeu;
2. remover a capa de universalismo do particularismo de valor e escolha Europeus,interesse Europeu e Eurocentricismo;
3. examinar e expor expressões de nacionalismo Europeu;
4. compreender a asili, ou princípio germinador fundamental do desenvolvimento cultural Europeu; e assim
5. fornecer uma ferramenta para a explicação do pensamento e comportamento Europeus como parte de uma construção ideológica consistentemente modelada.
Isto é coonseguido através de um foco ideológico que reconhece a Europa como o monólito poderoso que ela é. A questão obrigatória que estudo levanta e responde é: Qual a explicação para o poder Europeu e bem sucedida dominação Européia do mundo? O objetivo deste livro é a nossa libertação deste controle, de modo que podemos realmente recuperar a nós mesmos e o que nos pertence, e no processo, transformar o universo, restabelecendo assim o equilíbrio primário. A intenção é falar com a voz da nação Africano [African nationhood] e ser inspirados pela visão coletiva de nosso povo e nossos ancestrais.

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Epistemologia Européia Arcaica:
Substituição de Objeto por Símbolo

A visão-de-mundo Africana, e as visões-de-mundo de outros povos que não são de origem Européia, todas parecem ter certos temas em comum. O universo a que se referem é sagrado na origem, é orgânico, e é um verdadeiro “cosmos”. Os seres humanos são parte do cosmos, e, como tal, se relacionam intimamente com outros seres cósmicos. Conhecimento do universo vem através de relacionamento com ele e através da percepção do espírito na matéria. O universo é um; esferas são unidas por causa de uma única força unificadora que permeia todo ser. Realidade significativa parte desta força. Essas visões-de-mundo são “razoáveis”, mas não racionalísticas: complexas porém vividas [complex yet lived]. Elas tendem a ser expressadas através de uma lógica de metáfora e simbolismo complexo.

Roube o universo de sua riqueza, negue a importância do simbólico, simplifique fenômenos até que se tornem mero objeto, e você tem uma quantidade cognoscível.
Aqui começa e termina o modo epistemológico Europeu.
O que foi que aconteceu dentro da Europa embrionária que viria a eventualmente gerar uma tal visão de mundo tão radicalmente diferente? Que papel o pensamento Platônico desempenhou neste processo? Seja ou não seja toda a filosofia Ocidental, “apenas uma nota de rodapé de Platão”, certamente a sua influência sobre o estilo Europeu de pensamento especulativo e, finalmente, sobre o utamawazo – as premissas e pressupostos gerais da cultura – foi formulativa e seminal. Qualquer discussão sobre a natureza e origem da epistemologia Europeia deve concentrar-se, se não começar, com Platão. Isso não quer dizer que ele não foi influenciado pelas filosofias Africanas pré-socráticas que o precederam. *

[ * – Plato, Timaeus, The Dialogues of Plato, Vol. I, trans. Benjamin Jowett, Random House, New York, 1937, p. 10; George James, Stolen Legacy, Julian Richardson, San Francisco, 1976; Teophile Obenga, “African Philosophy of the Pharaonic Period”, in Egypt Revisited, 2nd ed., Ivan Van Sertima (ed.), Transaction, New Brunswick, 1989.]

Mas o que Platão parece ter feito é ter estabelecido uma base [foundation] rigorosamente construída para o repúdio do sentido simbólico [symbolic sense] – a negação do conhecimento intuitivo cósmico [cosmic, intuitive knowledge].
É este processo que nós temos de traçar, este desenvolvimento no pensamento Europeu formativo que iria, eventualmente, a ter um efeito tão devastador sobre os aspectos não-técnicos da cultura. Ele levou à materialização do universo como concebido pela mente Européia – uma materialização que complementou e apoiou a intensa necessidade psico-cultural por controle de si [self] e dos outros.

Ao contrário da nossa imagem do filósofo como sendo sobrenatural [otherwordly] e remoto, mesmo irrelevante (Aristófanes, As Nuvens), Platão parece ter sido muito consciente de si mesmo como um arquiteto social e ideológico. Seu sucesso foi eventualmente esmagador. O poder de suas idéias é evidenciado pela maneira em que elas têm contribuído para o crescimento e a persistência de uma nova ordem. Este é precisamente o poder da ordem Euro-Caucasiana: sua capacidade de sustentar e perpetuar a si mesmo. As inovações de Platão foram finalmente incorporadas à cultura, porque elas foram exigidas pela asili.

O diálogo a República [the Republic] é a justificação ideológica de Platão do Estado que ele deseja trazer à existência. O que testemunhamos no diálogo pode ser visto epistemologicamente como a criação do objeto. Em visões-de- mundo anteriores e díspares, vemos um sujeito cognoscente [knowing subject] intimamente envolvido no universo circundante. A aquisição de conhecimento envolvendo a imersão neste universo, até que, por meio da participação simpática [sympathetic participation], significado é revelado, expressado e compreendido através de símbolos complexos e multidimensionais. Mas na “nova” epistemologia trocamos símbolos por “objetos”. A criação do objeto requer uma transformação do universo, não mais experienciado, mas sim, “objetivado”. Esta transformação é conseguida por meio de uma mudança na relação do conhecedor para o conhecido.
Em a República [Republic], Platão realiza esta façanha: uma manobra psico-intelectual pela qual o sujeito é capaz de separar a si mesmo do conhecido. Esta separação é ao mesmo tempo a chave que abre o caminho para o “conhecimento” tal como concebido pelos Europeus e a chave que tranca a porta para as possibilidades da apreensão de um universo espiritual.

Duas coisas ocorrem, uma efectuando a outra. Em primeiro lugar, a psique passa por uma transformação: Lentamente, o “si mesmo” [“self”] é percebido diferentemente de antes; em seguida, o universo ao qual este ‘si mesmo’ [self] se relaciona é percebido de forma diferente, porque a natureza do relacionamento é mudada. O ‘si mesmo’ [self] é não mais um ser cósmico, em vez disso, se torna “o sujeito pensante” [“the thinking subject”].

A palavra Grega psyche indica uma compreensão de um indivíduo autônomo distinto de tudo o que rodeia este ‘si mesmo’ [an autonomous self distinct from everything surrounding that self]. A principal função deste ‘si mesmo’[self] torna-se o “saber” e “pensar” [the “knowing” and “thinking”] da atividade científica, o qual não é mais conectado com “intuição” [“intuing”]. De acordo com a visão Platônica a tarefa mais elevada a é a filosofia, e, portanto, a pessoa mais valiosa é o filósofo, o amante/buscador da “verdade”, aquele que “pensa” melhor. Outras funções e atividades humanas são desvalorizadas. Este novo ‘si mesmo’ [self] torna-se fortemente isolado do seu ambiente. Por que autônomo, distinto e isolado? Porque este “ser pensante” [“thinking being”], para ser capaz de cognição científica, tem de ser, acima de tudo, independente.

Na análise de Eric Havelock (desenvolvida, obviamente, a partir de dentro dos confins da visão-de-mundo Européia) o modo dominante na Grécia pré-Platônica era o poético, exemplificado pela épica, da qual os escritos de Homero são tão representativos. O sucesso e apelo dos épicos de Homero dependiam da identificação pelo público com os personagens e enredo. Suas obras eram memorizadas e recitadas, e elas repousavam sobre a força da expressão oral. Quando dramatizadas com sucesso elas evocavam resposta emocional de um público que sentia a si mesmo sendo pessoalmente envolvidos com o assunto. Este, de acordo com Havelock, era modo não-tecnológico, “não-sofisticado”, que prevenia o desenvolvimento de uma psique “reflexiva, crítica”. “A doutrina da psique autônoma é a contraparte da rejeição da cultura oral.” *

[ * – Eric Havelock, Preface to Plato, Grosset and Dunlap, New York, 1967, p. 200.]

Em sua opinião Platão foi o visionário, o principal responsável pela transição do modo oral, Homérico, para o modo crítico, literato. A “velha” poética representava o “hábito de auto-identificação com as tradições orais.” Ela representa inter-relacionamento emocional. Em outras palavras, o sucesso da modalidade poética repousa com a capacidade para forjar o mundo em um universo fenomenal, uma realidade vivida [experienced reality]. Dentro deste contexto, o ‘si-mesmo’ [self] é dependente de suas experiências. O cerne da questão para Havelock e Platão é que esta dependência aloja-nos irremediavelmente no concreto, incapazes de libertar-se de cada instância indo além para uma afirmação abstrata. Havelock diz que Platão estava defendendo “a invenção de uma linguagem abstrata de ciência descritiva para substituir uma linguagem concreta de memória oral.” *

[ * – Ibid, p. 236.]

De acordo com a nova epistemologia, a fim de ser capaz de pensamento crítico, devemos ser independentes daquilo que queremos saber: não-envolvidos, destacados, remotos. Claramente, o que isto permite é o controle. Em primeiro lugar, nós alcançamos o controle de si mesmo [control of the self], o si mesmo [self] não mais capaz de ser manipulado por seu contexto. Na verdade, é um si mesmo [self] sem contexto (o que em termos Africanos torna-o um si-mesmo [self] sem sentido, uma “não-eu” [“nonself”]).

Esta idéia de controle é facilitada por primeiro separar o ser humano em compartimentos distintos (“princípios”). Platão distingue os compartimentos de “razão” e “apetite” ou “emoção”. A Razão é um princípio ou função superior do homem/mulher, ao passo que o Apetite é “mais de base” [“more base”]. Eles estão em oposição um ao outro e ajudam a constituir, o que se tornou uma das dicotomias mais problemáticos no pensamento e comportamento Europeus. Esta oposição resulta na divisão do ser humano. Não mais inteiros [whole], nós, mais tarde nos tornamos a “mente vs. corpo” de Descartes. A superioridade do intelecto sobre o ser-emocional [emotional self] é estabelecida como espírito é separado da matéria. Até mesmo o termo “espírito” tem uma interpretação intelectualista cerebral na tradição ocidental (Hegel). *

[ * – Frijot Capra, The Tao of Physics, Bantam Books, New York, 1977, p.]

Tal como a entendemos, a “razão” em Platão é a negação do espírito. A razão funciona para controlar os apetites mais “básicos apetites” e “instintos”. A visão Européia do ser humano começa a tomar forma aqui. É uma visão que viria a crescer mais dominante através de séculos de desenvolvimento Europeu e que viria a se tornar cada vez mais opressiva na sociedade Européia Ocidental contemporânea, onde não há nenhuma visão alternativa oferecida. Para Platão, o autodomínio [self-mastery], como a justiça no Estado, é alcançada quando a razão controla:

… Na alma humana existe um melhor e também um pior princípio; e quando o melhor tem o pior sob controle, então, um homem é dito por ser senhor de si mesmo [master of himself]; e este é um termo de louvor; mas quando, devido à má educação ou associação, o melhor princípio, que também é o menor, é esmagado pela maior massa do pior – neste caso ele é culpado e é chamado de escravo de si mesmo [slave of self] e sem princípios [unprincipled]
. . . Olhe para o nosso Estado recém-criado, e lá você irá encontrar uma dessas duas condições realizadas; para as palavras “temperança” e “auto-domínio” [“self-mastery”] verdadeiramente expressam o governo do melhor sobre o pior. . . os múltiplos e complexos prazeres e desejos e dores são geralmente encontrados em crianças e mulheres e servos, e nos homens-livres então chamados da classe mais baixa e mais numerosa . . . . Enquanto que os desejos simples e moderados que seguem a razão, e estão sob a orientação da mente e verdadeira opinião, podem ser encontrados apenas em uns poucos e naqueles melhor nascidos e melhor educados. . . . Estes dois . . . têm um lugar em nosso Estado; e os desejos mais humildes dos muitos são reprimidos pelos desejos virtuosos e sabedoria dos poucos. *

[ * – Plato, The Republic (A República), Bk. IV:431, The Dialogues of Plato, Vol. I, trans. Benjamin Jowett, Random House, New York, 1937.]

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Dicotomização e A Noção de Harmonia

A visão Platônica sacrifica a totalidade [wholeness] da personalidade, a fim de estabelecer o cenário em que os fundamentos epistemológicos da visão Européia serão definidos. Estilos cognitivos estavam sendo moldados ou, pelo menos, previstos. Esta codificação satisfazia um utamawazo que era a realização da asili cultural.

Platão tinha definido uma elaborada armadilha. Uma vez que a “pessoa” era dividida artificialmente em faculdades ou tendências conflitantes, fazia sentido pensar em termos de uma faculdade “vencendo” ou controlando a(s) outra(s). E aqui começa um padrão que opera com consistência assustadoramente previsível através do pensamento Europeu, reunindo continuamente impulso para as idades por vir. A mente é treinada desde o nascimento para pensar em termos de dicotomias ou “divisão” [“splits”]. *

[ * – Paul Goodman, “Polarities and Wholeness: Gestalt Critique of ‘Mind’, ‘Body’, ‘External World’,” in Sources, Theodore Roszak (ed.), Harper and Row, New York, 1972.]

As divisões [splits] tornam-se opostos inconciliáveis, antagônicos. Concepções holísticas tornam-se quase impossíveis dada essa mentalidade. Em primeiro lugar a dicotomia é apresentada, em seguida, o processo de avaliação ocorre no qual um termo é valorizado e o outro é desvalorizado. Um é considerado “bom”, positivo, superior; o outro é considerado “ruim,” negativo, inferior. E, ao contrário da concepção oriental (Zen) do Yin e do Yang ou do princípio Africano da “gemelaridade” [“twinness”] (Carruthers refere-se a isso como “complementaridade aposicional” [“appositional complementarity”] *) estes termos contrastantes não são concebidos como partes complementares e necessárias de um todo. Eles são, em vez disso, conflitantes e “ameaçadores” um ao outro.

[ * – Iva Carruthers, “Africanity and the Black Woman” [“Africanidade e a Mulher Preta”], in Black Books Bulletin, 1980, Vol. VI, No. 4.]

O processo de dicotomização no utamawazo Europeu é de grande importância, pois este é a percepção dicotomizada da realidade, da qual a presença controladora (comportamento imperialista) depende. O utamaroho, que precisa de controlar, é dependente das oposições antagônicas apresentadas pelo estilo cognitivo (utamawazo) do mito cultural (mitoforma [mythform]). As realidades são divididas, em seguida avaliadas, de modo que uma parte seja “melhor”, o que determina a sua função de controle. Isto, vamos ver, é um padrão em todo o pensamento Platônico. Além disso, é um padrão que se desenvolve consistentemente como uma característica permanente do utamawazo Europeu fundamentado na natureza das asili originárias. Robert Armstrong diz desta forma,

Dualidades abundam, constituindo nossa civilização. Nossa religião tem como premissa o bem e o mal, e certamente não poderia existir se não fosse a presença do mal que lhe confere significado e eficácia. Nós analisamos o trabalho unitivo da arte em forma e conteúdo; e nós construímos uma lógica baseada em certo e errado. Nossas línguas são de sujeito e objeto … Nossa ciência é uma do provável contra o improvável, o praticável oposto ao impraticável, matéria e anti-matéria … tudo revelando mais da natureza da mente do cientista do que a natureza real do universo físico. *

[* – Robert Armstrong, Wellspring: On the Myth and Source of Culture, University of California Press, Berkeley, 1975, p. 115.]

Ele continua:

Nós vemos o mundo como delicadamente constituído de, tanto os termos em um sistema infinito de pares contratantes, quanto unidos pela tensão que existe entre eles. Para ser claro, um termo em cada caso é, por definição, de maior valor do que o seu oposto. . .

Em grande medida, então, o mito da consciência da Europa Ocidental é o mito das oposições bi-polares. *

[* – Ibid, p. 116.]

Armstrong prenuncia uma premissa básica deste estudo na medida em que ele relaciona esta tendência polarizante com a estrutura do Estado Euro-Americano, suas idéias religiosas, e sua postura internacional.

não é inevitável que deva inexoravelmente haver uma divisão do mundo em amigos e inimigos com o resultado de que a história da política externa nos últimos anos, pelo menos, está mais acuradamente para ser caracterizada em termos de nossa determinação para identificar e perpetuar inimigos do que para criar amigos. *

[* – Ibid, p. 117.]

Nós já completamos o círculo, pois é possível rastrear essa tendência de conceituação e comportamento a partir da Grécia clássica. O tema é o confronto. O modo é o controle. Page Dubois refere-se a isso como a “visão polarizante” [“polarizing vision”] baseada em “confronto entre opostos”, que ela identifica como sendo esboçada na arte e estilo arquitetônico das “métopas” de Atenas. Na análise de duBois, o pensamento Grego sobre “diferença” (bárbaro/Grego; feminino/masculino) era analógico e se tornou hierárquico como uma resposta à crise política na sequência da Guerra do Peloponeso. *

[* – Page duBois, Centaurus and Amazons: Women and the Pre-history of the Great Chain of Being, University of Michigan Press, Ann Arbor, 1982, p. 16.]

O impulso de seu estudo (Centaurus and Amazons) é significativo nesta discussão por duas razões: (1) por causa de seu reconhecimento da importância ideológica do estilo de pensamento especulativo Grego e (2) porque afirma o nosso reconhecimento dessas características cognitivas que distinguem o utamawazo Europeu em desenvolvimento, das tradições previamente estabelecidas.

Quando é que, no pensamento Grego, as relações se tornam “opostos?” Quando é que se torna necessário perceber pares como estando em oposições polares e exclusivas, ao invés de complementares e diunitais? * Este pode ser o ponto de origem da consciência Européia. Eu suspeito que a necessidade ocorre em um ponto muito mais cedo na arcaica experiência “Européia”. A Grécia clássica é meramente uma fase importante da normatização (ou padronização [standardization]). Ela tinha herdado uma asili particular, já carregando os genes culturais.

[* – Vernon Dixon, “World Views and Research Methodology,” in African Philosophy, Lewis King, Vernon Dixon, and Wade Nobles (eds.), Fanon Center Publications, Los Angeles, 1976.]

DuBois acredita que a mudança de polaridade para hierarquia correspondeu a “a mudança da cidade democrática do século V para um período no século IV de questionamento da polis como uma forma.” *

[* – duBois, p. 2.]

As origens da própria tendência divisionista inicial são importantes neste estudo, contudo, porque elas não podem ser nem “naturais” nem universais para perceber o universo em termos de “eu” [“self”] ao contrário de “outro”, * e o significado ideológico desta distinção e a relação implícita entre esses dois seres é o ponto em questão.

[* – Dixon.]

Como duBois aponta, o “humano masculino Grego” definia a si mesmo muito em termos de oposição ao que ele “não” era – “bárbaro fêminino animal.” Isto traz-nos mais perto da origem de uma nascente consciência “Européia”.
Ela [duBois] afirma que, “O homem Grego lutava contra barbárie, bestialidade, e efeminização imaginárias.” *

[* – duBois, p. 5.]

Em sua opinião a oposição entre o eu [self] e o outro nem sempre implica relação superior/inferior. Mas, certamente, o humano/masculino/Grego pensava que era melhor ser aquilo (superior, isto é, humano/masculino/Grego). E esta separação percebida deu a Platão, e em seguida Aristóteles, o mecanismo de polarização com o qual trabalhar. Este já estava presente na consciência Grega, uma consciência baseada em um utamaroho que tinha uma predileção por posturas de superioridade e dominação. A Polaridade era necessária para a hierarquia que se seguiu. DuBois refere-se às estruturas hierárquicas como um “novo ordenamento” [“new ordening”] baseado em uma “nova lógica”, que estabeleceu a “Grande Cadeia do Ser” [“Great Chain of Being”] baseada em “relações de superioridade e subordinação.” *

[* -duBois, p. 5.]

Mas as concepções Platônicas representam uma declaração ideológica formalizada de pensamento hierárquico, os termos da qual já estavam na mente Grega. Nós concordamos sobre o significado dessas formulações, porém, “as Idéias Hierárquicas sobre diferença formuladas por Platão e Aristóteles continuam a definir relações de dominação e submissão na cultura Ocidental e no discurso filosófico hoje.” *

[* -duBois, p. 9.]

Isso nos leva a outra característica relacionada e saliente do utamawazo Europeu. Ele não gera uma verdadeira concepção de harmonia. Uma idéia autêntica de harmonia não pode ser explicada ou compreendida nesta visão de mundo. “Harmonia” é erroneamente [mistakenly] projetada como ordem racional, uma ordem baseada no mecanismo de controle. O que Platão reconhece como “harmonia” é alcançado quando o termo “positivo” da dicotomia controla (ou destrói) o termo/fenômeno/entidade “negativo”: quando a razão controla a emoção, tanto na pessoa quanto no estado. (Nas concepções Africanas e Orientais, a harmonia é conseguida através do equilíbrio de forças complementares, e é de fato impossível se ter um todo harmonioso em funcionamento sem interação harmônica e a existência de pares equilibrantes.)

Uma teoria do universo, uma teoria do estado, e uma teoria da natureza humana estão implicadas na epistemologia Platônica. *

[* – Stanley Diamond, Search for the Primitive, Transaction Press, New Brunswick, N.J., 1974, p. 183.]

Justiça, ou o Bom, é alcançado quando o “melhor” controla o “pior”. O universo é ordenado através de tal controle. No Estado, o “mais elevado” controla o “mais baixo” A pessoa está constantemente em guerra dentro de si mesma e não é propriamente humana até que sua razão controle sua emoção, ou seja, os homens devem controlar as mulheres. As implicações políticas dessa teoria consistente e unificada não são difíceis de extrapolar. Platão já tinha descrevido o que para a Europa tornar-se-ia o “Estado Ideal”, um no qual o ser humano que ganhou o controle de si mesmo, por sua vez controla aqueles que não o fizeram (mulheres, é claro, eram percebidas como não possuindo o controle necessário). Seguir-se-ia que o universo é, então, posto em ordem pela nação de pessoas que são “mais elevadas” (controlado pela razão). É também significativo o fato de que Platão indica que as tendências “superiores” serão sempre “menores” em número e as “inferiores” de maior massa. Isso racionaliza uma ideologia de controle pelos poucos dentro do domínio do Estado e do mundo por uma pequena minoria racial. *

[ * – Frances Cress Welsing, The Isis Papers: The Keys to the Colors (Os Papéis de Ísis: As Chaves para as Cores), Third World Press, Chicago, 1991, pp. 1-14.]

Se de fato esta divisão [splitting] da pessoa é artificial, inacurada, e indesejável – se de fato a emoção é uma parte inseparável do intelecto e da consciência humana -, então essa nova epistemologia (“hábito mental”) pode ser interpretada como uma justificação do que viria a se manifestar como racismo, nacionalismo, e imperialismo Europeus. O grupo que tem o poder de impor a sua definição de “razão” para que esta se torne o mais “razoável”, por conseguinte tem um mandato para controlar aqueles cujas habilidades de raciocínio são consideradas inferiores (e assim há uma necessidade de “medir” capacidade intelectual: mitologia de teste de Q.I. [enter I.Q. mythology]).

No plano da epistemologia vimos que esta divisão [splitting] do ser humano facilita a realização desse estado mental supremo (de ser) que na cultura Europeia tem vindo a ser identificado com a capacidade de pensar, pelo menos, de pensar racionalmente. A menos que o intelecto seja separado das emoções, não é possível falar sobre eles distintamente, para se concentrar em adquirir conhecimento por meio do controle ou eliminação da relação emocional à uma determinada situação, coisa ou pessoa.

.

Reificação do objeto:
A desvalorização dos sentidos

Ao estabelecer esse novo modo epistemológico, Platão usou sua imaginação: Ele criou uma realidade. Hipótese se tornou teoria. Ele demonstrou brilhantismo, percepção e visão. Ele deve ter sabido o que ou como ele queria que o futuro se parecesse, tendo em conta as necessidades políticas e ideológicas de sua sociedade. Mas quando a teoria que se origina na imaginação se torna mais do que uma ferramenta epistemológica útil para tarefas específicas associadas à investigação científica, pode se tornar perigosa, porque ela pode de fato ofuscar a realidade que ela está tentando esclarecer e distorcer a cognição que ela está tentando aperfeiçoar. A teoria do conhecimento de Platão tornou-se, eventualmente, reificada em uma declaração ideológica com implicações políticas. Sua criação viria a tornar-se um determinante e suporte – uma fundação e uma inspiração – para o domínio, intensificação, e valorização de uma tendência no comportamento Europeu em detrimento de outras inclinações.
A necessidade de controlar e ter poder sobre os outros ascendeu a uma posição de prioridade. Tornou-se uma obsessão, sempre lutando para negar qualquer humanismo que existia na cultura, por causa da asili.

O universo se apresenta naturalmente como cosmos, como “sujeito”, ao qual estamos ligados como “sujeitos”; culturas Africanas antigas viam o mundo assim, e os antigos Gregos herdaram essa visão. De acordo com Havelock, o sucesso de Homero repousava sobre a identificação do leitor ou ouvinte com o assunto de seu épico. *

[ * – Havelock, Ch. 11.]

O ser humano destas civilizações antigas era um ser cósmico (e permanece assim para este assunto na visão de mundo contemporânea Africana). Platão queria mudar tudo isso. Ele estava propondo uma “revolução” no pensamento. Esta “revolução” era necessária a fim satisfazer o utamaroho Europeu. Talvez ele deveria ter dito: Deixe-nos alegar que o universo não é sujeito, mas objeto; que não somos uma parte dela; mas separados dele; e deixe-nos fazer isto unicamente com a finalidade de experimentação, a fim de ver quais as implicações que tal concepção poderia ter. Mas ele não disse deixe-nos alegar. Em vez disso, ele disse autoritariamente, que a fim de “conhecer” nós temos que estar lidando com “objetos”. A maneira que nós criamos “objetos” é através da desanexação total de nós mesmos daquilo que queremos saber. Ao eliminar ou ganhar controle de nossas emoções podemos nos tornar conscientes de nós mesmos como sujeitos pensantes, distintos do objeto contemplado. Através desta separação, este afastamento, esta negação da relação cósmica, nós realizamos a “objetificação”. Esta é uma realização necessária se nós quisermos ser capazes de cognição científica. Para pensar adequadamente sobre um objeto, para adquirir conhecimento de (domínio sobre) um objeto, nós temos de controlá-lo. Nós só podemos fazer isso se estivermos emocionalmente destacados dele. E nós obtemos essa distância emocional do “objeto” por primeiro e acima de tudo a ganhando controle sobre nós mesmos; isto é, colocando a nossa razão (intelecto) no controle de nossas emoções (sentimentos).

Vernon Dixon discute uma visão epistemológica “descendente” facilmente reconhecível como Platônica em definição.

Na visão de mundo Euro-Americana, há uma separação entre o eu e o não-eu (mundo fenomenal). Através deste processo de separação o mundo fenomênico torna-se um Objeto, um “isto” (ou “coisa”) [an “it”]. Por objeto, quero dizer, os fenômenos concebidos como constituindo o não-eu [nonself], ou seja, todos os fenômenos que são a antítese do sujeito, ego, ou auto-consciência. O mundo fenomenal se torna uma entidade considerada como totalmente independente do ser ao invés de como afetada pelo sentimento ou de reflexões do ser. Realidade torna-se aquilo que é estabelecido perante a mente para ser apreendido, quer se trate de coisas externas no espaço ou concepções formadas pela própria mente. *

[ * – Dixon, p. 55.]

A chave é “controle.” Claramente, a razão é positiva, valorizada, “superior”; as emoções são negativas, desvalorizada, “mais básicas” – porque elas têm uma tendência a nos controlar. Tal controle é uma indicação de impotência. Entender o eu [self] como um ser cósmico é ser impotente. É politicamente insensato e indesejável; é moralmente repreensível. As pessoas melhores são “mais razoáveis,” menos emocionais. Isto é o que Platão implícita. Esta é a essência de sua “enunciação autoritária.” E o que ele disse foi profético, ou melhor, prescritivo, pois aqueles que eram “emocionais” (espirituais) na verdade viriam a ser considerados impotentes.

Aqui, então, está o conceito de um “objeto”, forçosamente isolado de tempo, lugar e circunstância, e traduzido linguisticamente em uma abstração e, em seguida, apresentado como o objetivo (alvo) de uma prolongada investigação intelectual. *

[ * – Havelock, p. 223.]

A citação acima é a descrição de Eric Havelock do processo de objetivação. Na sua opinião esta separação do ser [self] da palavra relembrada introduziu um novo modo cognitivo e permitiu aos Gregos “ganhar controle” sobre o objeto e, assim, assim nos dizem, eventualmente, “escapar da caverna.” Ou, pelo menos, seus líderes (os filósofos) escaparam, e os descendentes dos reis filósofos (Europeus). É muito importante que nós coloquemos esse processo no contexto histórico adequado. O “Europeu” ainda não tinha se “desenvolvido”, mas Platão tinha ajudado a construir um critério pelo qual o “verdadeiro Europeu” seria medido. A viciosa e violenta guerra mortífera contra as tendências “bárbaras” na Europa arcaica iriam continuar pelo século XI (e, claro, além deste, em menor escala, mas nada menos vigilante). Esta foi uma guerra para assegurar uma visão-de-mundo particular, que, como veremos, foi complementada pela manifestação da religião institucionalizada identificada com a cultura Européia.

É um testamento para o sucesso de Platão que Havelock fala para o acadêmico Europeu contemporâneo em seu elogio incondicional da obra de Platão. Cerca de 2.500 anos depois que seus conceitos foram introduzidos como “novos” para os Gregos e como “radicais” e “revolucionários”, eles ainda são parte da subjacente, “tomada por certa” [“taken-for-granted”], fundação pressuposicional do pensamento acadêmico Europeu e dos aspectos cognitivos (utamawazo) da cultura como um todo. Enquanto Platão teve de defender a validade desses conceitos, Havelock pode acriticamente exaltar suas virtudes e, consequentemente, a contribuição de Platão para o pensamento Europeu. Havelock está convencido da exatidão e adequação da epistemologia Platônica assim como ele está convencido da superioridade do “Homem Platônico” em relação ao “Pré-platônico” ou “Homem Homérico”. Veremos que Havelock está falando sobre uma suposta superioridade, uma superioridade mental, até mesmo moral. Esta é assumida justamente como a superioridade da civilização Européia é assumida por causa do sucesso esmagador das atividades científico-tecnológicas Européias.

Para Havelock, bem como para Platão, a caverna ou o mundo dos sentidos é apresentado como um mundo de ilusão. Mas isso implica que a objetificação e teoria das idéias de Platão permitem à pessoa escapar para a realidade. No entanto, nem uma nem outra levanta a questão da ilusão da “objetividade”, a ilusão do controle. Esta ilusão de fato facilitou o crescimento “real” da ordem científico-tecnológica e a ascendência do mundo Europeu, mas isto não deve permitir-nos confundi-la com a única “realidade”.
Em certo sentido, a história do pensamento Europeu foi baseada no uso da metáfora como descrição literal. É como se pensava com Platão, as limitações da “palavra” escrita foram esquecidas; a complexidade do modo simbólico foi abandonada para a simplicidade da unidimensionalidade. O símbolo tornou-se o objeto. E essa manipulação recompensou. Ela tinha reforçado a capacidade de ter poder sobre os outros. *

[ * – Theodoze Roszak, Where the Wasteland Ends, Doubleday, New York, 1972, p. 68.]

A superioridade da epistemologia Platônica é auxiliada por dicotomias que se tornam motivo para comparações odiosas, uma nova justificação para mecanismos de controle. O contraste de “conhecimento” e “opinião” torna-se outra tal dicotomia para Platão. Uma vez que é estabelecida como uma demonstração de valor, esta é utilizada pelos Europeus para desvalorizar outras epistemologias, modos de cognição, visões de mundo, consequentemente culturas, e até mesmo “religiões”, como discutiremos nos próximos capítulos.

Havelock acusa os poetas Homéricos de apenas serem capazes de lidar com a “opinião”. O termo “acusação” parece adequado, porque é considerado “inferior” e “impróprio”, e até mesmo imoral o homem racional funcionar desta forma. Os poetas Homéricos estavam, de acordo com Havelock, escrevendo antes da grande Revolução Platônica que ensinou as pessoas (apenas os superiores) como pensar. No estado de espírito Platônico a pessoa está equipada para lidar com “conhecimento”. Por quê? Porque a mente nesse estado separou-se do “o objeto.” Grande parte dos argumentos de Platão centram-se sobre este objeto. É, em certo sentido, a natureza do objeto que determina a validade e a veracidade das afirmações feitas sobre ele. Há objetos “apropriados” de conhecimento, e, então, há aqueles que são “impróprios” ou inadequados.

Uma dicotomia relacionada da qual o argumento de Platão depende é aquela entre “percepção” e “conhecimento”, onde percepção é exposta bem como mera opinião. Em Teeteto [Theatetus] Sócrates argumenta que a percepção é do corpo em que existem os sentidos. Os sentidos são como “instrumentos”; os órgãos dos sentidos devem necessariamente “especializar”, por assim dizer. Sócrates diz que não se pode “ouvir” através dos olhos, nem “ver” através dos ouvidos, e assim por diante. Ele dá muita importância ao fato de que a preposição adequada é “através” e não “com” quando estamos lidando com o “corpo” e com a percepção. *

[ * – Plato, Theatetus, trans. Francis Cornford, The Liberal Arts Press, New York, 1959, p. 184.]

O que Sócrates leva Teeteto a aceitar é que as coisas que o corpo percebe são “separadas”, e que é apenas a “mente” que pode relacionar essas coisas, pode compará-las, pode dizer se elas existem ou não existem. De acordo com Sócrates, nós percebemos “através” dos sentidos (corpo), enquanto que refletimos ou sabemos “com” a mente. Teeteto, como Protagorus e outros Sofistas, haviam argumentado que a percepção era conhecimento. Sócrates “prova” que é a mente que “une” as nossas idéias sobre os objetos que sentimos. Nós “pensamos” com as nossas mentes.

Novamente o gênio de Platão: Outra dicotomia característica – uma arquitetônia, culminando no infame Cogito, ergo sum de Descartes cerca de doze séculos mais tarde – nasce como “mente” é separada do “corpo”. As “divisões” [“splits”] que mencionamos são trabalhadas de tal modo, que elas negam e previnem o interrelacionamento. Elas fazem isso em um nível cognitivo, um nível semântico, e através da “lógica” em que se baseiam. As divisões [splits] em seguida, passam para o nível de cultura, visão-de-mundo, e crença. Eles começam a efetuar experiência, porque, embora elas possam não ser precisas, elas limitam a capacidade das pessoas para experienciar o universo como um todo integrado. É a essência da medicina “tradicional” que a pessoa seja considerada como um ser integral [whole being].
Richard King argumenta que na concepção Africana, não apenas o “cérebro”, mas o inteiro corpo é o “computador” humano. [not merely the “brain”, but the entire body is the human “computer”.] Nesse sentido, nós também “pensamos” com nossos órgãos dos sentidos, o que talvez ajude a explicar o “gênio” na quadra de basquete. *

[ * – Richard King, “African Origins of Psychobiology (As Origens Africanas da Psico-biologia),” lecture at City College, New York, 1987.]

Evidentemente, Platão não antecipou os problemas resultantes de tais separações artificiais como a dicotomia mente/corpo. Sua preocupação era com o fornecimento de um edifício de “lógica” que poderia ser usado de uma vez como uma fundação inquestionável de “verdade” e para desacreditar outros pontos de vista. Isso foi necessário porque os outros pontos de vista eram vistos como sendo “competitivos”, uma vez que podem levar a formas diferentes de organização social. Platão estava preocupado apenas com os hábitos intelectuais e comportamento daqueles que estariam participando na nova sociedade. Ele não parece ter-se preocupado com a qualidade de suas vidas. Tinha que haver um padrão para a definição de verdade. Os Sofistas eram uma tremenda ameaça com seus argumentos que abriram o caminho para uma forma de relatividade. Platão tinha que estabelecer o dogma. O dogma de que ele defendeu para não apenas desacreditar outras epistemologias, este estabeleceu uma hierarquia na qual certos tipos de pessoas (a esmagadora maioria) eram inferiores. Seus argumentos eram derradeiramente efetivos. Eles tiveram sucesso em influenciar séculos de subsequente desenvolvimento Europeu, conforme outras formidáveis mentes Européias juntaram-se à suas fileiras. Como tal, as suas ideias ajudaram a revelar a asili da cultura Européia.

A perspectiva de Page Dubois transmite uma visão muito diferente sobre a alteração revolucionária de Platão do modo literário Grego de analogia poética para a linguagem mais precisa do discurso, diferente daquela de Havelock. Esta mudança serviu o propósito de preparar as mentes para aceitar uma nova ordem estatal; uma estrutura interna radicalmente alterada. Dubois diz,

Uma vez que o projeto de diaresis de Platão, de divisão e categorização, foi expressamente admitido, o foco do discurso deslocou-se do raciocínio para a analogia, a partir da distinção Grego/bárbaro, para divisões internas, em direção à hierarquização que racionalizou as diferenças dentro da cidade conturbada. Platão negou a utilidade da polaridade Grego/bárbaro, voltou sua atenção para a diferença masculino/feminino, mas concentrou-se finalmente no raciocínio baseado em subordinação e dominação. *

[* – Dubois, p. 132.]

Isto é como Havelock sugere, um novo modo para o desenvolvimento de uma nova consciência. Mas enquanto para Havelock isto representava um “bem” inquestionável e a criação da mente “crítica”, para duBois a mudança para o discurso a partir da poesia e prosa mais poética do século V se tornou necessária pelo elaborado logos detalhado, linguagem apropriada para a articular novos relacionamentos. Ela [duBois] diz sobre a visão Platônica,

cada logos – isto é, todos argumentos, todas racionalizações, todos discursos – devem ser sujeitos ao mesmo tipo de subordinação e hierarquia, bem como conexão orgânica, como o corpo descrito em seu momento de criação no Timeu. *

[* – Ibid, p. 138.]

Em outras palavras, a estrutura do próprio discurso Platônico obrigou aqueles que a utilizaram a aceitar um determinado conceito de ordem social. Brilhante! Na própria sintaxe da nossa fala conforme nós aprendemos o idioma Inglês, a justificação da nossa “inferioridade” está incorporada, e, o que é mais, nós aceitamos esse fato conforme “dominamos” a língua. [In the very syntax of our speech as we learn the English language, the justification of our “inferiority” is embedded, what is more, we accept that fact as we “master” the language.] (E isso não é acidental, dada a natureza da história cultural Européia, que a palavra “mestre” [“master”], a qual designa o gênero masculino, significa “ganhar controle sobre.”) Na verdade, esta análise do pensamento Platônica não é apenas um exercício acadêmico. Ela ajuda a expor as formas opressivas e repressivas dentro da cultura Européia e Euro-Americana que agrilhoam Africanos, outros “não-Europeus”, e, em menor grau, as mulheres.
Por que é que o discurso nas sociedades derivadas Européias é a marca de status na cultura? E por que é que as pessoas Africanas na América Latina e no Caribe têm mantido tais distintos estilos de linguagem? Aqui temos a resistência intuitiva a uma mudança na consciência. A criação de idiomas Africano-influenciados em circunstâncias de opressão pode ser entendida como uma força que insiste na manutenção de uma visão-de-mundo ancestral.

Mas isso, eu acho, é o que vocês afirmariam, pelo menos, que cada discurso (Logos) deve ser constituído como um ser vivo, tendo seu próprio corpo (Soma), de modo a não ser nem sem cabeça nem sem pés, mas tendo um meio bem como as extremidades, as quais têm sido assim escritas, de modo a ser apropriadas uma à outra e para o conjunto. *

[ * – Plato, Phaedrus (Platão, Fedro), p. 264c, quoted in duBois, p. 138.]

DuBois diz que o discurso de Fedro ‘”move-se da cabeça aos pés, do centro para as extremidades e retorna finalmente ao todo. A forma do argumento exemplifica os padrões de subordinação e de controlo que se defende.” *

[* – duBois, p. 138.]

DuBois percebe a quase fanática consistência e rigor no ataque de Platão sobre a realidade social tradicional. Cada impulso é parte de uma metodologia direcionada que visa garantir a natureza do seu resultado.

Esta é, de fato, a gênese do pensamento científico Ocidental; não da própria ciência. Platão define o molde, não para um método crítico, nem para autêntico pensamento crítico com o qual os Europeus se identificam com orgulho, mas para um método de pensamento, discurso, argumentação, e organização que garantam o controle social por pessoas (homens) como ele. Seu gênio foi em compreender que para fazer isso com sucesso teria que influenciar o estilo de pensamento, linguagem, e comportamento de todos os seres humanos, ou seja, a sua experiência total. Na medida em que aprendemos a pensar “Platonicamente”, somos convencidos de que essa é a única maneira correta de pensar. O modo da academia ainda está na base do controle social. Gregory Vlastos observa sobre Platão,

. . . seus pontos de vista sobre escravidão, estado, o homem e o mundo, ilustram um padrão hierárquico único; e . . . a chave para o padrão está em sua idéia de logos, com todas as implicações de uma epistemologia dualista. O escravo carece de logos: o mesmo acontece com a multidão no estado, com o corpo no homem, e com a necessidade material no universo. . . . A ordem é imposta sobre eles por um benevolente superior: mestre, guardião, mente, demiurgo. . . o título comum para autoridade é a posse de logos. Em um tal esquema intelectual, a escravidão é natural: em perfeita harmonia com as noções da pessoa sobre a natureza do mundo e do homem. *

[* – Citado em duBois, p. 139.]

Estamos testemunhando o fenômeno exclusivamente Europeu: o processo pelo qual a epistemologia se torna ideologia. Jurgen Habermas parece estar argumentando que este é um processo histórico universal pelo qual uma visão de mundo substitui e desvaloriza outra. *

[* – Jurgen Habermas, Reason and the Rationalization of Society Vol. I, Beacon Press, Boston, 1984, p. 68.]

Platão procurou construir um mundo feito totalmente da realidade conceitual. Neste mundo havia pouco espaço para percepções sensoriais. Elas ocupavam uma posição muito inferior. Ele queria que o cidadão se tornasse mais e mais aculturado para esta realidade conceitual. Fazer isso significava que os sentidos do cidadão eram cada vez menos confiáveis, até que a cultura Européia acabou em uma extremidade do espectro do qual a África pode estar em outro. Os Europeus não são treinados para usar os seus sentidos, nem para ser “perceptivos” (na medida em que isto é tomado por eles por significar “não-intelectual”), enquanto que os Africanos se relacionam com o universo utilizando percepções sensoriais como ferramentas altamente desenvolvidas – meios de comunicação [media], se quiser assim chamar – que são uma parte valiosa do aparato intelectual humano. *

[* – Richard King, “African Origins of Psychobiology,” lecture at City College, New York, 1987.]

Sensações, diz Sócrates, são dadas no nascimento. Não apenas isso, mas elas são dadas aos animais bem como aos homens, e elas são naturais. Todas as quais funcionam para desvalorizar os sentidos e a percepção sensorial na visão de mundo Européia. Um tema muito forte na filosofia moral e política Européia é a idéia de que os seres humanos são superiores a outros animais e que eles devem proteger essa superioridade a fim de ser verdadeiramente “humanos”. O conhecimento, na visão Platônica, é demorado e lento para chegar. Tem de se trabalhar por ele. É ele “natural” para os seres humanos? Em certo sentido ele é apenas cultural. Os sentidos são afinal apenas instrumentos, e que faz a percepção ser inferior ao conhecimento é a natureza do seu “objeto” (o todo-importante conceito do “objeto”.) Os objetos da percepção não têm a verdadeira realidade que o objetos de conhecimento devem possuir. *

[* – Francis Cornford, Plato’s Theory of Knowledge, Bobbs Merrill Educational Publishing, Indianapolis, 1957, p. 102.]

Os sentidos, percepções (o que é natural para o ser humano) opera apenas no mundo das aparências e, portanto, estão abaixo da linha que separa “adultos” de “crianças” no pensamento Platônico. Nossos sentidos só podem nos dizer como as coisas “parecem” ser. O verdadeiro conhecimento, por outro lado, refere-se ao “mundo real” das “idéias.” Nós estamos então, acima da linha e estamos fazendo coisas importantes. Qualquer um pode fazer o que é natural e tropeçar em torno da caverna na escuridão. Luz e escuridão são dois lados desta dicotomia de valor, forças opostas irreconciliáveis. Desde então a luz se torna a metáfora para a verdade. A mente, ao que parece, existe por trás [behind] dos órgãos pelos quais percebemos. E só a mente é capaz de fazer julgamentos. Sentir é fácil e imediato. Conhecimento vem apenas através de difícil reflexão – parte de um longo e problemático processo de educação.” *

[* – Plato, Theatetus, trans. Francis Cornford, Liberal Arts Press, New York, 1959, p. 102.]

Mas por que era tão importante rebaixar os sentidos dessa maneira?

Por que Platão tão persistentemente e inexoravelmente chama a atenção para a definição e limites deste modo epistemológico? Esta era uma epistemologia que implicava uma teoria social, ética, e mesmo política. A epistemologia de Platão, de fato, tornou-se eventualmente a base para uma forma de organização social que facilitaria a dominação de muitos por poucos. Ela ajudou a criar uma visão de mundo. A epistemologia assumiu implicações ideológicas na apresentação de Platão e seu compromisso com os seus pressupostos. Seus diálogos eram munição para os proselitistas que seguiriam até que os pressupostos desta epistemologia tornaram-se os pressupostos de uma tradição cultural. Estes pressupostos epistemológicos traduziram-se em uma declaração ideológica na civilização que os reivindicaria como tradição.

Aquilo que é apreendido pela inteligência e pela razão está sempre no mesmo estado; mas aquilo que é concebidao pela opinião com a ajuda da sensação e sem a razão está sempre em um processo de surgimento [becoming] e destruição [perishing] e nunca é, realmente. *

[* – Plato, Timeaus, p. 12.]

Friedrich Juenger diz que “ser” [“being”] é bom, valorizado e inteligente. “Tornar-se” [“Becoming”] é desvalorizado, inferior, irracional. Na ideologia de Platão, “A razão estabeleceu-se como absoluta, domina todos os outros modos de apreensão, entendimento. . . . Ele se recusa a admitir quaisquer conceitos que não sejam os que ela própria estabeleceu. . . . Todos os conceitos não-intelectuais são considerados como irracionáveis, e são descartados.” *
Nesta declaração, Friedrich Juenger aponta para o impulso ideológico, absoluto, e inflexível das concepções Platônicas.

[ * – Frierich Jueger, The Failure of Technology, Henry Regnery Co., Chicago, 1956, p. 107.]

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Theory of Humanness
Teoria da Natureza Humana

A teoria do ser humano já foi implicada em nossa discussão de concepções Platônicas. Nós, como seres humanos, não somos seres inteiros, mas sim constituídos por partes que estão em contínuo conflito umas com as outras. Somos compostos de “razão”, “intelecto”, e as nossas “melhores naturezas”, que estão constantemente à procura de controlar nossos desejos, apetites, emoções e para colocar os nossos “sentidos” para o uso adequado. A melhor parte deve controlar a “mais ordinária” [“baser”]. De acordo com Eric Haverlock, Platão “descobriu” a “psique” [“psyche”] que veio a se referir ao “isolado, eu pensante” [“isolated, thinking self”]. O eu [self] já não era concebido como um ser cósmico, isto é, um ser que experienciava a si mesmo intimamente envolvido com outros seres no cosmos. Um “eu cósmico” [“cosmic self”] implica que a realidade do ser é fenomenalmente parte de outras realidades apresentadas como resultado da sensível, consciente e espiritual coexistência no universo. Cosmos por si, refere-se ao universo como um todo unificado inter-relacionados (orgânico).

Havelock está dizendo que a Grécia “pré-Platônica” entendia o  eu [self] desta forma. Isso faz sentido histórico, uma vez que a Grécia se desenvolveu a partir da sua associação cultural e intelectual com remotas tradições Africanas.

As visões de mundo dos Africanos e dos Americanos Nativos têm conceitos cósmicos similares. Suas tradições intelectuais e sistemas de pensamento se apoiam no pressuposto de inter-relação cósmica. Estas concepções formam uma base de relações comuns, bem como uma relação compreensiva [sympathetic] com o ambiente natural. Como poderia tal concepção do ser humano interferir com as regras básicas da epistemologia Platônica? Por que era essencial que ele lançasse dúvidas sobre a validade de tais concepções? Um eu cósmico deve ser integral. Em um tal ser, a razão e a emoção não podem ser experimentadas tão díspares, desconexas, e antagonísticas. Um eu cósmico não pode objetificar o universo. Quanto mais “inteligente” um tal eu [cósmico] se torna, mais ele entende a linguagem como uma mera metáfora. Essa idéia é comum aos sistemas de pensamento mencionados. As verdades mais elevadas, mais profundas não podem ser verbalizadas, e alcança-se a dimensão além da palavra profana onde o significado dos símbolos torna-se claro. Mas para Platão o “eu cósmico” é incapaz de saber; ele só pode perceber, sentir, intuir, e ter “opiniões”. (A ascensão do então-chamado “lado esquerdo do cérebro.”)

Platão estabelece ao invés o “autônomo eu pensante.” De acordo com Havelock, este “eu” [“self”] ou “psique” é uma coisa ou entidade capaz não apenas de cognição científica, mas de decisão moral. *

[* – Havelock, p. 197.]

Platão não apenas estendeu a ideia do “eu pensante” – uma idéia que deve ter-lhe antecedido – mas ele simultaneamente descartou outros aspectos do nosso ser “humano” [“human” beingness] como inválidos ou indignos (irreal) e declarou esta função superconceitual – esta atividade totalmente cerebral –como a essência da humanidade [essence of humanness]. É aí que reside a sua singularidade, estranheza, e significado de uma só vez. Ele havia proferido uma nova teoria da humanidade [theory of humanness] (homem/mulher). Muito mais tarde, pega no meio da teoria da evolução, esta tornou-se muito importante no pensamento Europeu para enfatizar aquelas características que eram consideradas por separar e distinguir os “humanos” dos animais. A “Inteligencia”, é claro, era fundamental [was key]; a essência do homem/mulher. (Para Michael Bradley é a “descoberta de tempo.”) * Utilizando concepções Platônicas e elaborando-as, a inteligência assumia uma definição particular.

[* – Michae Bradley, The Iceman Inheritance, Warner Books, New York, 1978.]

Os cientistas têm falado em termos de duas partes ou dois “hemisférios” do cérebro por algum tempo. O hemisfério esquerdo é considerado por controlar certos tipos de processos de pensamento, enquanto o hemisfério direito controla outros tipos de processos de pensamento. *

[ * – Carl Sagan, The Dragons of Eden, Ballantine Books, New York, 1977.]

As implicações envolvidas são importantes para esta discussão e serão discutidas depois. Um ponto relacionado a ser feito aqui é que, enquanto todas as culturas e todas as pessoas envolvem ambos os “modos-hemisférios”, por assim dizer, em funcionamento “normal”, culturas e, portanto, seus membros podem valorizar um estilo de cognição em detrimento de outro. Em tais casos, um será enfatizado e encorajado, enquanto o outro não. A pessoa será recompensada por pensar do modo valorizado, e tais hábitos de pensamento serão reforçados nos processos de aprendizagem e de socialização formalizados. A mesma pessoa será “punida” por pensar do modo “desvalorizado”, e irá “falhar por fazê-lo.”

Na Europa do século XIX, em que a unilinear teoria evolutiva reinava, os cientistas Europeus disseram que o hemisfério esquerdo era “principal” [“major”], porque este era associado com “pensamento” e “raciocínio”, que distinguia os humanos dos animais. O hemisfério direito foi rotulado como “menor” [“minor”] e menos avançado ou menos evoluído. Ele tinha uma capacidade “inferior”, lidava com a “emoção”, e tinha de ser dirigido pelo hemisfério esquerdo. É evidente que esta era uma versão do século XIX da concepção Platônica, que dividiu homem/mulher em tendências razoáveis e emocionais, faculdades superiores e inferiores, e mandatou o domínio e controle do emocional como o estado normativo de ser. E assim a “ordem” e a “justiça” eram alcançadas. Platão declarou o caso para este tipo de ordem na pessoa e, por extensão, no Estado. Os evolucionistas do século XIX estavam dando apoio “científico” para o mesmo tipo de “ordem” imposta entre as culturas do mundo, com as culturas mais “razoáveis” (superior e racional) controlando as mais “emocionais” (inferiores e menos avançadas).

O ponto que é fundamental para a análise do pensamento e do comportamento Europeus é que a teoria e epistemologia Platônicas e seu posterior, desenvolvimento, inculturação, e reformulação forneceram a base ideológica mais eficaz para a política e padrões de comportamento culturalmente agressivos e imperialistas por parte dos cidadãos Europeus precisamente porque o argumento era afirmado em termos intelectuais e acadêmicos “científicos”. Platão não só ajudou a estabelecer uma teoria do ser humano que valorizaria a cognição “científica” em detrimento de outros modos cognitivos, mas ele estabeleceu a Academia.

Desde então se tornou uma característica da cultura Européia que a associação com a academia representa a associação com a verdade, a capacidade de raciocínio superior, e de imparcialidade ou “objetividade” – isso também significa uma falta de compromisso com qualquer coisa que não a suposta “verdade abstrata.” O que as concepções Platônicas permitiram, por conseguinte, foi que os atos mais politicamente motivados (por exemplo, as guerras de agressão, escravidão racialmente embasada) poderiam ser justificados no que passava por termos “científicos”, a-políticos: os termos de uma suposta “verdade universal”, a eterna, imutável, “idéia.” Isto não era necessariamente o objetivo Platônico, mas é o uso em que esta concepção foi colocada dentro dos limites da cultura Européia, moldada pelas necessidades do utamaroho Europeu. A Asili – exigindo poder – fez uso apropriado da idéia de “verdade universal.”

A tarefa aqui é estabelecer as bases para uma análise abrangente do pensamento e comportamento Europeus analisando aspectos relacionados da teoria Platônica em termos de seu significado ideológico no desenvolvimento Europeu subsequente. Esta análise termina e começa em síntese que é a asili demonstrando a consistência e a coesão, o caráter monolítico, da tradição sob escrutínio.

A Teoria da humanidade [humanness] de Platão é um aspecto crucial da sua teoria geral. Ele cria com êxito uma ilusão do eu isolado [isolated self], e assim, na sociedade Européia (Euro-Americana) do século XX, este eu [self] é realmente experimentado como a psique. Essa concepção do eu autônomo pensante [autonomous thinking self] encerrou o Europeu numa visão estreita e limitante do ser humano. Ela precipitou uma espécie de retardo espiritual no qual dolorosos isolamento e alienação incapacitam participantes na cultura e ou os tornam concorrentes extremamente eficientes, agressores, e tecnocratas (técnicos).

Em Teeteto [Thaetetus], Sócrates usa o termo “alma” como sinônimo de “mente”. Dada a concepção Platônica das faculdades mentais significativas, isto significa que a alma tornou-se identificada com o pensamento cognitivo, com o cálculo “frio”, com falta de emoção e uma negação do sentimento e sensação. Que teoria do ser humano isso implica? E que tipo de utamaroho e comportamento se desenvolve em uma cultura que aceita uma tal teoria? Se estou certa em sugerir que essas concepções Platônicas, de fato, tornaram-se normativas e, então, tremendamente poderosas como modelos cognitivos, e se podemos aceitar a relação entre utamawazo (caráter cognitivo cultural) e utamaroho (características afetivas) como sendo íntima e co-geradora, então claramente um modelo começa a emergir do pensamento e comportamento padronizados reforçando um ao outro à medida em que se desenvolvem.

Em Teeteto [Thaetetus], Sócrates fala sobre a alma perceber sob o seu próprio “poder”. Ele faz a distinção entre o corpo e a alma ou mente. Através dos órgãos do corpo nós percebemos “dureza”, “frio”, “violência”, etc., mas com a mente (alma) nós “refletimos,” fazemos julgamentos, e “pensamos” sobre “semelhança”, “diferença” – coisas que exigem o conhecimento das “formas” ou do “ser”. A alma reflete com o seu próprio “poder”, e os objetos que percebe são universais. Universalidade emerge como superioridade e valor. Nos capítulos que se seguem, o atributo da universalidade será traçado ao longo do caminho da ideologia Européia na medida em que se desenvolve e arraiga no âmbito da cultura.

O que é que a alma, mente, ou psique tem que o corpo e os sentidos não? É claro que é controle, e com controle vem poder, como em “a capacidade de dominar.” O desejo (necessidade) por controle e poder são os fatores mais importantes para a compreensão da asili Européia. Veremos que a sensação de controlar os outros e, portanto, ter poder sobre eles, é a experiência mais satisfatória, esteticamente, psicologicamente e emocionalmente que a cultura tem para oferecer. Esta, por conseguinte, satisfaz o utamaroho. É a busca por esses sentimentos e este estado de ser que motiva seus membros. A sensação de controle e poder é conseguida de várias maneiras na cultura Européia, mas o que é significativo aqui é que em seus estágios iniciais e formativos, Platão lançou as bases para a sua realização através de uma epistemologia que rejeitava a participação poética, ganhando assim a “independência” (Havelock) do envolvimento poético a fim de “criar” e apreender o objeto próprio do conhecimento. o “objeto” era deste modo controlado pela mente que contemplava. Com esse conhecimento vinha o poder, porque o mundo poderia começar a ser entendido como sendo composto por vários desses objetos que podem ser manipulados pelo conhecedor, o conhecedor que era consciente de si mesmo (as mulheres não contavam) como conhecedor e como estando no controle completo. O homem “pré-Platônico”, neste ponto de vista, era impotente, carecia de auto-controle e era efetivamente manipulado pela miríade de emoções que era levado a sentir pelas imagens ao seu redor. Essa é a imagem que nos é dada.

Não podemos exagerar a importância de Platão precisamente porque encontramos teóricos e acadêmicos Europeus fazendo o mesmo argumento, pintando o mesmo quadro no século XX. Henri e H.A. Frankfort estão interessados neste ponto com a distinção entre os antigos “homem primitivo”, e pensamento “mitopoético” de um lado, e o “moderno” homem “científico”, e “pensamento científico”, por outro:

Embora (o pensamento mitopoético) não conheça a matéria morta e confronte um mundo animado de ponta a ponta, ele é incapaz de sair do âmbito do concreto e toma seus próprios conceitos como realidades existentes per se. [P.14]

… O processo da mente mitopoética em expressar um fenômeno por múltiplas imagens correspondentes à avenidas desconexas de abordagem, claramente afasta, ao invés de aproximar, o nosso postulado de causalidade que visa descobrir causas idênticas para efeitos idênticos em todo o mundo fenomenal. [P.20]

… O pensamento mitopoético pode ter sucesso, não menos que o pensamento moderno no estabelecimento de um sistema espacial coordenado; mas o sistema é determinado não por meio de medições objetivas, mas por um reconhecimento emocional de valores. *

[ * – Henri Frankfort and H.A. Frankfort, “Myth and Reality,” in The Intellectual Adventures of Ancient Man, Frankfort et al. (eds.), University of Chicago Press, Chicago, 1977, pp. 14, 20, 21.]

Não só a epistemologia de Platão traz o controle acompanhado de poder, mas também a sua anexa teoria do (hu)mano [(hu)man] [homem] produz a concepção Européia do ser autenticamente moral. Para Platão, com a racionalidade vem o poder de tomar decisões morais, e somente este novo “eu pensante autônomo” [“autonomous thinking self”] (Havelock) pode ser corretamente o assento da decisão moral. Esta posição, no entanto, representa uma confusão entre o espiritual e o científico / racional. Tendo equiparado o potencial humano a uma faculdade racional abstraída, Platão leva-nos para fora de um contexto social humanamente definido como a base ou determinante de nosso ser. Ele então nos coloca de volta em uma construção social artificial que agora é um reflexo do seu conceito abstrato de “bom” e do “verdadeiro”; uma negação da realidade vivida e experimentada. Mas, na verdade, os nossos conceitos de moralidade devem refletir as nossas ideias, bem como o nosso sentimento sobre inter-relação humana adequada. A pessoa “racional” não é necessariamente a pessoa “moral”. Pode ser “racional” (eficiente) pensar em termos de reprodução seletiva, clonagem e extermínio, a fim de produzir a “raça superior”. Não é nem espiritualmente nem moralmente convincente fazê-lo. Platão parecia estar insinuando que o método científico geraria a ação “correta”. Mas a guerra no século XX é tanto racional quanto irracional, ao mesmo tempo. Os filmes de terror Europeus em que cientistas loucos fazem coisas loucas são expressões desta aparente contradição. Todavia esta personalidade é uma extensão “lógica” da equação Platônica do moral e do racional.

Este argumento tem sido expandido, refinado, e camuflado nos termos da “moderna” filosofia “crítica” Européia. Jurgen Habermas parece estar defendendo uma espécie de linguagem universal da “racionalidade comunicativa”, na qual seres sociais/culturais confiam em sua análise intelectual de questões como a base para o julgamento, em vez de confiar em suas tradições culturais como uma fonte de validação de opções/ações. *

[* – Habermas, p. 70.]

Isto para Habermas seria parte do processo de “racionalização” e pode levar a autêntico comportamento moral ou pelo menos um critério para determinar tal. Sua própria linguagem é a do discurso filosófico Europeu da década de 1980; o modelo Platônico afiado para perfeição cerebral. É a “racionalidade” na sua vocação mais impressionante para um racionalismo universal como a base para a “orientação da ação racional” * e ordem social racionalizada.

[* – Habermas, p. 70.]

Habermas usa teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget em relação ao valorizado processo de “descentração”, em que definições culturais a priori são desvalorizadas na determinação da “verdade” e da ação correta. Enquanto ele permite o problema de uma visão “utópica” e nos adverte contra “os imperativos de uma racionalidade unilateral limitada ao cognitivo-instrumental”, ele insiste que “a descentralização de entendimento mundial e a racionalização do mundo da vida [lifeworld] são condições necessárias para uma sociedade emancipada”. *

[* – Ibid, p. 74.]

Abordar o racional é acabar com a diferença. Aqui se esconde o mesmo utamawazo que é desconfortável com a ambiguidade. Há uma differece entre os argumentos de Platão e os de Habermas (que enfatiza o processo em oposição ao ideal reificado), mas as diferenças não são culturais/ideológicas. Esses dois filósofos representam variações – uma mais refinada, mais liberal, mais recente do que a outra – do mesmo utamaroho.

Em sua teoria do (hu)mano [homem] e do Estado [theory of the (hu)man and of the State] Platão consegue exorcizar a realidade humana e social de seu caráter problemático e ambíguo. Ele faz isso através da criação de sua própria realidade em que a abstração matemática reina. A verdade “real”, diz ele, é o que nós não experimentamos. Ela é imutável ser [unchanging being]. A nossa experiência não é real, mas está em constante mutação, tornando-se [becoming]. O que isso lhe permite fazer é, de fato, criar uma realidade “irreal”, em que a ambiguidade, imaginação criativa, e incerteza da verdade humana são superficialmente eliminadas. Obviamente, não existe tal coisa como uma realidade “irreal” [“unreal” reality], por isso, na verdade, a problemática ainda existe. A República de Platão é uma estrutura teórica. Sua teoria do ser humano é não-realista [unrealistic]. Ela deixa de fora alguns elementos essenciais da humanidade [humanness] e assim como um modelo a ser imitado tem uma tendência para criar o “homem unidimensional” de Marcuse. Cada um de nós é adequado a uma tarefa ou modo de participação no Estado. O Rei-Filósofo e [seus] Guardiões serão capazes de determinar o nosso próprio lugar e assim o nosso destino, bem ordenado, muito simples. A República segue o modelo do “bem” [“good”], uma abstrata realidade monolítica, inequívoca, imutável. Para esta [República] funcionar, as pessoas dentro dela teriam de ser convencidas da teoria do ser humano na qual esta repousa. Stanley Diamond explica por que o artista era visto como uma ameaça para o Estado;

O artista não acredita em sistemas abstratos; ele lida com sentimento e ideais emocionais ordenados e acredita que a ordem é alcançada através das contradições, as unidades tensas da experiência cotidiana. Assim, o próprio artista pode ser instável, um changeling, e isso é uma ameaça para qualquer estabelecimento. *

[* – Diamond, p. 192.]

Por outro lado, o matemático se sairia muito melhor como a perspectiva de Platão sobre o homem ideal para o estado ideal. Ele enfatiza a matemática no currículo para os tutores [guardiões]. Para ele, a “matemática” tem a forma da verdade e pode fornecer a solução para todos os problemas. Aqui, novamente, um conceito específico da natureza humana está implícito. E se as pessoas na verdade não fossem assim, ele iria torná-las assim. Ele iria moldar as suas mentes para pensar do jeito que tinham que pensar para fazer o seu plano funcionar. Ele iria treiná-las com a “condição sintática da equação matemática”, porque “os números nos arrastam para a Existência [Beingness]”. * Em outras palavras, havia mudanças que ele tinha de fazer nos hábitos cognitivos (utamawazo) dos participantes na cultura se ele quisesse ter sucesso na criação da nova ordem.

[* – Havelock, p. 230.]

O Novo Modo Dominante

O nascimento do arcaico utamawazo “Europeu” foi acompanhado e apoiado pela introdução do modo letrado [literate mode] como o modo dominante e valorizado de expressão na cultura. O modo escrito [written mode] conservou a comunicação de forma cada vez cada vez mais precisa no que viria a tornar-se a “Europa.” A escrita [writing] tinha sido usada muito, muito mais cedo em outras culturas, mas como no MDW NTR (antigos “Hieróglifos Egípcios”) Kemético, ela envolvia formas que simbolizavam muito mais do que sons ou objetos. O MDW NTR contém simbolismo transformacional que incorpora concepções Africanas de verdades universais e cósmicas. *

[ * – J. B. Levi, The Ancient Egyptian Language: Pathway to Africa, unpublished paper, 1984.]

É uma indicação da natureza da visão de mundo Européia e, claro, um exemplo da intensidade do nacionalismo cultural Europeu que os estudiosos Europeus de forma tão consistente caracterizem o MDW NTR de Kemet como sendo meramente “concreto”. *

[* – Frankfort e H.A. Frankfort, pp. 3-27.]

Esta forma de “reducionismo” é um esforço para simplificar a antiga escrita Africana, a mais antiga forma de escrita. É um esforço para fazer o MDW NTR paracer conceptualmente limitado e por vezes contraditório. Na verdade, o MDW NTR era demasiado complexo para os propósitos de Platão. Ele [Platão] precisava de uma modalidade que privasse os símbolos de seu “simbólico”, seu conteúdo esotérico. Eles tinham que ser desligados do cosmos.

É importante compreender o processo pelo qual o modo letrado tornou-se dominante na cultura e entender exatamente o que se quer dizer com o “modo letrado” [“literate mode”] neste contexto. Embora tenha sido, por muitos séculos, inacessível para a maioria da população, este ainda tinha um lugar valorizado na nascente, arcaica, feudalista sociedade Européia, e afetou de forma eficaz a configuração da cultura. Estamos descrevendo um processo de desenvolvimento, e o fato de que o desenvolvimento tinha uma “direção” não significa que outras características não eram identificáveis. A poética ou, como Henri e H.A. Frankfort chamam-lo, o “mitopoético” continuou a existir entre a grande maioria da população, mas foi relegado a uma posição desvalorizada, implicando inferioridade da capacidade intelectual. É por isso que “o primitivo”, definido Eurocentricamente, está sempre associado a uma falta da escrita [writing], e isso é chamado de ser “pré-letrado.”

Na Europa nascente, o modo letrado tinha força ideológica. Lembre-se que de acordo com a epistemologia Platônica, temos de alcançar a objetividade a fim de conhecer, e que, em seus termos, isto é conseguido fazendo com que a nossa razão domine nossas emoções, que por sua vez nos dá o controle. Nós ganhamos o controle sobre o que queremos saber, portanto, criando um “objeto” de conhecimento. O modo de comunicação preservada (que tinha caracterizado a maioria das culturas e que prevaleceria na Grécia séculos depois de Platão), era o poético, o oral, e até certo ponto o modo simbólico, embora a cultura Grega não fosse tão bem desenvolvida a este respeito, tomando emprestado de outras culturas seus conceitos religiosos e sagrados. Este modo se baseava na identificação do conhecedor com o conhecido, nos poderes de memorização, e na familiaridade do ouvinte/participante com o assunto que está sendo usado. Os modos simbólicos das civilizações mais antigas e desenvolvidas também exigiam a apreensão de abstrações, mas estas não eram as abstrações racionalistas que viriam a dominar no pensamento Europeu.

Na análise dos teóricos Eurocêntricos, era essa memória, essa identificação emocional e “envolvimento” causados pelo modo poético, “oral”, e “Homérico”, que tinha limitado o homem “pré-Platônico”. Esta caracterização nos empurra para mais uma “divisão”, outra dicotomia de comparação ofensiva. E com esta, um outro aspecto da suposta “superioridade” do Europeu surge. O homem “pré-Platônico” (termo de Havelock), a quem os épicos de Homero representaram e a quem se dirigiam, estava em apuros, de acordo com Havelock. Ele é descrito como sendo “não-letrado”, o que, é claro, tem força muito mais ideológica do que simplesmente dizer que ele preferia a forma poética. Isso vem à tona como uma fraqueza e incapacidade de conceituar, uma característica negativa. Isso desvaloriza-o como pessoa. Esta pessoa “não-letrada,” “pré-Platônica” também adquire uma série de outras características, que, na visão de mundo Européia, são ou sem valor ou absolutamente negativas. Havelock descreve o “homem Homérico” como estando em um estado “adormecido”, como se drogado. Sua mente é governada por “aceitação acrítica”, “auto rendição”, “automatismo”, “passividade da condição mental”, “emprego abundante de emoções”, “transe hipnótico”, “complacência.” Ele utiliza “linguagem de sonhos” e é a vítima da “ilusão.” Ele está no “longo sono do homem” e é ainda “preguiçoso.” *

[* – Havelock, pp. 190-210.]

Por que Havelock é tão duro sobre aqueles a quem ele coloca como em oposição intelectual à Platão? É como se esta fase na história Grega ou no desenvolvimento Europeu devesse ser destruída; certamente completamente repudiada. Veremos nos próximos capítulos deste estudo porque estes são precisamente os termos que os Europeus usam para descrever e rebaixar outras culturas, culturas que são rotuladas como “primitivas”. E estes são os termos que usamos para caracterizar as habilidades de crianças de ascendência Africana e outros grupos que são vistos como carentes de valor cultural e racial dentro das sociedades em que os Europeus dominam. Na verdade, as academias Européias “criaram” tais absurdos [nonminds]. *

[ * – Amos Wilson, “The Mis-education of Black Students,” lectured at Hunter College, New York, April 29, 1988.]

Em cada um desses casos, incluindo a crítica de Havelock aos hábitos mentais da humanidade “antes” de Platão, as declarações feitas têm um significado ideológico. Elas estão a apoiar uma escolhida forma de vida, um conjunto de crenças. O objetivo é estabelecer o “modo de vida” [“way of life”] como superior a tudo aquilo que o tenha precedido ou que seja diferente dele. é a natureza ideológica da epistemologia Platônica que torna isso possível: uma epistemologia ditada pela asili Européia, carregada nos genes culturais.

Para Platão, o poeta não apela para o “princípio” adequado na pessoa ou para a parte adequada da sua alma. E assim o poeta não seria capaz de ajudar na tarefa de levantar-nos para fora da escuridão da caverna e corrigir a nossa ignorância em relação à “luz” da verdade. O poeta impede o bom funcionamento da razão e não nos ajuda a ganhar controle sobre nossas emoções.

O poeta imitativo . . . não é levado pela natureza, nem é sua arte pretendida, para satisfazer ou para afetar o princípio racional na alma; mas ele vai preferir o temperamento apaixonado e intermitente, que é facilmente imitado . . . suas criações têm um grau inferior de verdade . . . e ele é . . . preocupado com a parte inferior da alma; e, portanto, nós estaremos certos ao recusarmos admiti-lo em um Estado bem ordenado, porque ele desperta e nutre e fortalece os sentimentos e prejudica a razão. Assim como em uma cidade, quando ao mal é permitido ter autoridade e os bons são colocados para fora; assim, na alma do homem, como sustentamos, o imitativo implanta uma constituição má, pois ele se entrega à natureza irracional que não tem discernimento de maior e menor, mas considera a mesma coisa em um momento grande e em outro pequena, ele é um fabricante de imagens e está muito longe da verdade. *

[* – Platão, República, Livro X: 605.]

O argumento de Platão com os poetas é que eles não promovem o ponto de vista do Estado e do “bem”, dos quais ele quer convencer as pessoas; dos quais eles devem ser convencidos para que eles desempenhem os seus papéis bem. A República é perfeita porque é absoluta. Mas e se as realidades humanas não são absolutas? Platão resolve este problema simplesmente “eliminando” a natureza ambígua de nossa realidade existencial, fingindo que ela não está lá. Quem, afinal, está criando “ilusão” e quem está lidando com a “realidade?” A filosofia subjacente à República diz que os seres humanos se encaixam em nítidas categorias, que eles são, cada um, adequados para tarefas específicas por natureza, e serão mais felizes fazendo aquilo para o que eles são mais adequados e isto é melhor para a ordem do conjunto. Não é isso conveniente? Platão não precisa dos poetas “atrapalhando” esta imagem – eles não vão ajudá-lo a vender o seu mito.

Se os poetas e a poética em nós são ruins e retrógrados, certamente o outro lado da moeda é que as nossas melhores naturezas, mais racionais, são trazidas pelo modo letrado, a substituição do objeto para o símbolo. Quando o modo letrado domina, nutrimos uma nova e diferente mentalidade. Isso é a coisa importante. Esse é o significado do trabalho de Platão. Contraste a caracterização de Havelock deste “novo” homem com aquela do “velho”. O novo homem é governado por “inteligência auto-consciente crítica”, “convicções individuais e únicas,” uma “psique crítica”, “estabilidade interna”, ” moralidade interna,” e “reflexão calculada.” Ele é “auto-governante “,” emancipado,” “reflexivo,” “atencioso,” “auto-organizado,” “calculista,” “racional,” “auto-gerado,” “desperto,” “estimulado,”pensando abstratamente,” e “autônomo”. Na retórica do valor Europeu o baralho está claramente empilhado. Esta “nova” pessoa é esperta! O que vemos é a base epistemológica da convicção de que a alfabetização [literacy] signifique progressividade e que, quando o modo letrado torna-se valorizado e, finalmente, dominante, temos uma forma “superior” de cultura em termos de ideologia Européia. De modo que em uma reunião sobre educação geral na faculdade Hunter [Hunter College] em Nova York em 1984, foi suposto que para educar nossos alunos devemos ensiná-los sobre civilizações Européias “Ocidentais”, uma vez que é onde os seres humanos aprenderam a ser “críticos,” na verdade, [aprenderam] a “pensar”.

Mas o Europeu certamente não é muito “crítico” se isso significa questionar a visão de mundo Européia como Platão inspirou a sua configuração. O mundo da erudição [literacy], acredita-se, é um mundo de objetividade, um mundo de verdade “imparcial”. A mídia oral é “subjetiva”. Nela, a personalidade é mesclada com a tradição. Como podemos mudar isso? “Os sinais fundamentais permitiram ao leitor dispensar a identificação emocional . . . . “*

[ * – Havelock, p. 208.]

Platão pediu um afastamento de “envolvimento emocional”, “preceitos inquestionáveis,” e “imitação.” (Hoje Habermas pede-nos um afastamento de pretensões de validade pré-decisivas baseadas na tradição cultural. *)

[ * – Habermas, p. 70.]

Platão supostamente introduziu a aprendizagem “técnica” “no nivel mais alto da consciência.” *Assim, enquanto Platão procura produzir mentes capazes da forma “mais alta” de pensamento, o “homem não-letrado” emerge como mal sendo capaz de “pensar” de todo. Na verdade, não podemos ter certeza de que ele seja mesmo “consciente.” E, o que é mais, essa epistemologia é vista como tendo implicações morais também. O letrado participante do estado ideal é mais moral porque a sua ética está sujeita à questionamento, crítica e análise, enquanto que a ética Grega anterior não estava. (É claro que, uma vez que o “questionamento” tem lugar na dialética Socrática, não muito mais “questionamento” é necessário.) Dentro da lógica do nacionalismo Europeu estas idéias viriam a ser mais tarde ecoadas na teoria Evolucionista do século XIX, onde a cultura Vitoriana foi julgada como a forma “mais alta”, representando um estado moral mais objetivamente válido, a suposição sendo que os valores Europeus foram alcançados “criticamente” e “racionalmente” e eram, portanto, universalmente válidos. Este era um legado da “iluminação”, assim-chamada.

[ * – Edward T. Hall citado em J. Brown, “Plato’s Republic as an Early Study of Media Bias and a Charter for Prosaic Education,” in American Anthropologist, 1973, Vol. 74, No. 3.]

Platão estabeleceu o cenário para ingredientes importantes da auto-imagem Européia. Ele se vê como um ser crítico, racional e no controle absoluto. Sua missão é controlar e racionalizar o mundo, e isso ele alcança através da ilusão de objetividade. O próprio Platão deve ter sido algo como isto. Stanley Diamond esboça um retrato:

Ele foi que o parece, um homem de um certo tipo, incapaz de tolerar a ambiguidade, intuitivo em sua convicção de um bem sobre-humano, objetivo . . . . Ele acreditava na lógica com a paixão fria de um matemático, e ele acreditava, pelo menos abstratamente, que a cidade perfeitamente justa poderia ser estabelecida, através de meios perfeitamente racionais e perfeitamente autocráticos. *

[ * – Diamond, p. 192.]

O modo da escrita dessacralizada permitiu que o objeto fosse “congelado”, reificado em um único significado; o MDW NTR Kemético não é dessa natureza:

A consideração ordinária do símbolo Egípcio o reduz a um significado primário, arbitrário, utilitário e singular, ao passo que na realidade ele é uma síntese que exige grande erudição para a sua análise e uma cultura especial para o conhecimento esotérico que ele implica. *

[ * – R.A. Schwaller De Lubicz , Symbol and the Symbolic, trans. Robert and Deborah Lawlor, Autumm Press, Brookline, Mass., 1978, p. 55.]

R. A. Schwaller de Lubicz caracteriza o MDW NTR da seguinte forma, distinguindo-o do modo meramente literal: o “simbolismo”, o qual é um modo de expressão, ele distingue do “simbólico”, que é a aplicação de um “estado mental,” ou, mais uma vez, uma “mentalidade .” “Simbolismo é técnica; o simbólico é a forma de escrita de uma filosofia vital.” *

[* – Ibid., p. 44.]

“O símbolo é um sinal [sign] que a pessoa precisa aprender a ler, e o simbólico [ou a simbólica] é uma forma de escrita cujas leis a pessoa precisa saber; eles não têm nada em comum com a construção gramatical das nossas línguas. Trata-se aqui, não do que poderia ser chamado de ‘linguagem Hieroglífica’, mas da simbólica [ou simbólico], a qual não é uma forma ordinária de escrita.” De Lubicz está preocupado em descrever “os princípios que regem o símbolo e o simbólico na expressão de uma filosofia vital, não uma filosofia racionalista.” Ele diz que não “existe nenhuma linguagem hieroglífica, mas apenas uma escrita hieroglífica [hieroglyphic writing], a qual utiliza o símbolo para nos levar em direção ao simbólico.” *

[ * – Ibid., P. 27.]

A significância dessas passagens é que elas afirmam a minha crença de que o MDW NTR de Kemet não representa uma forma “primitiva” da escrita secular ou profana e não é, portanto, “pré-Europeu.” Pelo contrário, ele representa uma visão bem diferente da realidade – uma mentalidade que procurava compreender o universo como cosmos, portanto, cuidadosa para não tentar a separação entre espírito e matéria. De modo que, quando falamos do modo letrado [literate mode] como defendido por Platão, queremos dizer salientar uma única definição e uso desse modo: uma desprovida do “simbólico”, no sentido de De Lubicz. Esta escrita carecia de algo. Ela só era capaz de lidar com “realidades unidimensionais”, e, como diz Diamond:

Ela reduziu as complexidades da experiência para a palavra escrita . . . com o advento da escrita, símbolos tornaram-se explícitos; eles perderam uma certa riqueza. A palavra do homem já não era exploração infinita da realidade, mas um sinal [sign] que poderia ser usado contra ele . . . a escrita divide a consciência de duas maneiras – ela torna-se mais autoritativa do que a fala [talking], degradando assim o significado da palavra falada e erodindo a tradição oral; e torna-se possível a utilização de palavras para a política manipulação e controlo de outros. *

[ * – Diamond, pp. 3-4.]

Não era que este modo literal representasse ou levasse à verdades mais elevadas, mas que a reivindicação [afirmação] de que ele o fazia foi feita e que esta deu a ilusão de ter feito isso, tornando este meio útil. Funcionou! Ele ajudou a controlar mentes, valores e comportamento, assim como qualquer mídia faz, mas de uma nova e, para alguns, “desejável” maneira. A linguagem escrita era mais impressiva do que a fala. A epistemologia Platônica conseguiu isso uma vez que foi valorizada. Então o discurso veio a imitar essa escrita, que já não era “mágica”, sagrada, e verdadeiramente simbólica. A permanência da palavra escrita deu-lhe força ideológica. Diálogos escritos, leis escritas, e estranhamente, orações escritas – o sagrado reduzido a profanas “escrituras”; tudo isso tornou-se evidência, para o Europeu, da superioridade da sua cultura.

.

Linearidade e Causa: Cientificismo e “Lógica”

Consistente com esta modalidade letrada como padrão de referência, existe uma associação entre a “mente crítica” e a “mente lógica” na epistemologia Platônica, que idealizou a objetificação e insistiu no modo letrado como técnica valorizada e reforçou a idéia de que havia apenas um método correto para se alcançar a verdade, e este era através da “lógica”. Esta idéia de “lógica” é apresentada como se fosse uma garantia de que as conclusões teriam verdade absoluta, verificável. Tudo o resto era mera opinião, sujeita aos caprichos da natureza humana. A lógica ajudava a pessoa a manter a sua “objetividade” (distância emocional). A seguinte declaração, a partir de um livro introdutório contemporâneo por H. L. Searles, demonstra a ideologia da epistemologia Platônica. Segundo o autor, o estudo da lógica deve permitir que os estudantes:

. . . desenvolvam uma atitude crítica em relação às premissas e pressupostos que formam o pano de fundo de seus próprios argumentos e o de muitos outros, em áreas como política, economia, relações raciais, e outras ciências sociais, onde os fatos não são totalmente verificados, mas contêm elementos de tradição, preferência e avaliação. *

[ * – H. L. Searles, Logic and Scientific Methods, 2nd ed., Ronald Press, New York, 1956, p. 4.]

Habermas escreveu em 1987, que nós devemos formar um conceito reflexivo do “mundo” para que possamos ter acesso ao mundo. *

[ * – Habermas, p. 69.]

A declaração de Searles soa como aquelas de Havelock comparando o “homem” “pré-Platônico” com o “homem” Platônico, ou como aquelas de Platão rebaixando os poetas em relação à ordem do Estado. Searles só pode fazer estas declarações parecerem razoáveis porque Platão tinha argumentado tão bem tanto tempo atrás, quando a Europa não estava ainda nem na sua infância, mas na última etapa de uma gestação, que talvez começou como uma concepção mutada nas estepes da Eurásia (Cáucaso). A declaração de Searles é um excelente exemplo da longevidade e força ideológica da influência Platônica. É uma declaração da epistemologia Platônica, agora tomada por aceita [taken for granted] porque está gravada na visão de mundo e utamawazo Europeus; Ela é assumida. Platão, no entanto, teve que defender sua supremacia, disputando contra os Sofistas, os poderosos sistemas de mistérios antigos, a antiga ciência, filosofia, religião Keméticas (Egípcia) e outras possibilidades filosóficas e ideológicas. Ele teve que mudar a atitude mental da cultura. Sua tarefa era dar forma a um utamawazo que iria servir ao utamaroho daqueles que viriam a se identificar como Europeus. Os hábitos psicológicos do modo poético ou “mitopoético” tinham que ser substituídos pelas ilusões do modo letrado. Por agora, Searles está escrevendo cerca de vinte e cinco séculos mais tarde, estes hábitos estão tão arraigados que os Europeus não estão nem mesmo cientes de que a “lógica” que eles são ensinados não pode explicar a filosofia Zen, a ontologia Africana, ou a realidade existencial, fenomenal. Eles não estão cientes do fato de que esta [lógica] não é nem “total” nem “universal.” Edward Hall coloca desta forma:

. . . em seus esforços para a ordem, o homem ocidental criou o caos, negando aquela parte de seu ser que integra, enquanto que entesourando as partes que fragmentam a experiência. . . O homem Ocidental usa apenas uma pequena fração de suas capacidades mentais; Há muitas maneiras diferentes e legítimas de pensar; nós no ocidente valorizamos uma dessas formas acima de todas as outras – esta que chamamos de “lógica”, um sistema linear que tem estado conosco desde Sócrates. . . . O homem Ocidental vê o seu sistema de lógica como sinônimo de verdade. Para ele, este é o único caminho para a realidade. *

[ * – Edward T Hall, Beyond Culture, Anchor Press, New York, 1977, p. 9.]

Enquanto estou demonstrando a natureza seminal da obra de Platão e sua poderosa influência na formulação do utamawazo Europeu, não quero dar a impressão errada de que seu trabalho foi muito influente no momento da sua escrita. Apenas uma pequena fração da população Grega seguia, tinha acesso a (ou seja, era letrada e privilegiada) ou foi convencida desta nova epistemologia. E sua acessibilidade iria permanecer restrita durante muitos séculos por vir. Mas o que o torna tão importante é que aqueles poucos que tinham acesso e que estavam convencidos foram também aqueles que definiram os padrões intelectuais e ideológicos para a civilização que se seguiria. Era como Platão queria que fosse – os poucos tomavam decisões por muitos. Os “lógicos” lideravam aqueles que “não podiam raciocinar bem.”

De acordo com Havelock, Platão estava procurando pela “sintaxe da verdadeira definição universal.” A epistemologia Platônica permitia à pessoa escolher entre o “logicamente e eternamente verdadeiro” e o “logicamente e eternamente falso”, enquanto que o modo poético não o fez.
*

[* – Havelock, p. 182.]

Platão identifica a “lógica” com o “eterno”, enquanto o poético é visto como sendo temporalmente limitado, todo ilusão. Mas agora alguns Europeus estão descobrindo o que as outras culturas sempre souberam: a lógica linear- verbal é apenas um aspecto da nossa consciência, uma parte do nosso aparato cognitivo. Como seres humanos, nós temos outras ferramentas que são globais e intuitivas. Mas dentro da cultura Européia estas têm sido quase colocadas fora de comissão, feitas inoperáveis, deformadas por uma civilização cuja epistemologia as ignorou e considerou-as quase “desumanas”, certamente “não-civilizadas.” Deficientes na capacidade de compreender a realidade cósmica, a inter-relação orgânica, os Europeus foram privados da fonte de um tipo diferente de poder, que vem da união. Eles se voltaram, portanto, para aquelas formas de manipulação intelectual que pareciam dar poder sobre os outros; a natureza da asili.

A dominância da codificação escrita é acompanhada por outros hábitos conceituais que apoiam-la e que ela sustenta. A epistemologia encontra-se com a ontologia na medida em que conceitos de espaço e tempo começam a aderir em teorias de humanidade, conhecimento, e verdade. A linearidade no pensamento Europeu tem todas essas implicações. Ela está presente nas nascentes concepções Européias de propósito e causalidade; na secularização do tempo que coloca ênfase sobre a historicidade na cultura; no impulso teleológico do pensamento religioso, filosófico e ideológico Europeu. Estas características estão todas relacionadas, mas a sua visibilidade como temas dominantes emerge em diferentes momentos no desenvolvimento da cultura. Elas são introduzidas aqui brevemente, para que possamos captá-las mais tarde como temas reconhecíveis que contribuem para a configuração total do pensamento (utamawazo) e comportamento Europeus.

Dorothy Lee, em Freedom and Culture [Liberdade e Cultura], nos diz que a cultura Européia codifica a realidade de uma forma linear. Ela baseia suas conclusões sobre as comparações com culturas “não-Européias” específicas que ela acredita terem codificações “não-lineares” da realidade. Seu trabalho ajuda a elucidar a suposição de linearidade no utamawazo Europeu. Na cultura Europeia a realidade é codificada – entendida, percebida, organizada – em relações lineares, sequenciais. Os eventos são vistos em termos de temporalidade. *

[ * – Dorothy Lee, Freedom and Culture, Prentice Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1959, p. 117.]

A linha está subjacente à apreensão estética Européia do dado. A sua presença é tomada como certa [taken for granted] na vida, e em todo trabalho acadêmico. Os professores, diz Lee, estão sempre traçando-a em quadros-negros. Ela prossegue dizendo que “o progresso” é a “seqüência significativa”, “onde vemos uma linha de desenvolvimento, os Trobriandeses vêem um ponto, e no máximo, um inchaço em valor.” Os Europeus “têm prazer e obtêm satisfação em se afastar de um determinado ponto … os Trobriandeses encontram-no [prazer e satisfação] na repetição do conhecido, em manter o ponto; isto é no que chamamos de monotonia.” *

[ * – Ibid, p. 91.]

Lee bateu sobre o significado ideológico da linearidade no pensamento Europeu. Mudança ou movimento para longe do ponto em uma direção linear em direção a outro ponto imaginado tão longe quanto essa linha possa estender-se (o futuro) é “progresso”, como este é definido na cultura Européia. Esta concepção torna-se a base para o comportamento cultural voluntarioso. “Progresso”, como veremos no Cap. 9, é a idéia que inicia a mudança, que dá a suposta supremacia à cultura, e que justifica a exploração dos outros. Esta ideia de progresso repousa sobre a realidade assumida da linha. Todas as coisas são reduzidas à relação sequencial em uma linha: unidimensional e unidirecional. Esta linha do tempo ajunta os pontos do “passado,” “presente,” e “futuro,” onde a função do passado e presente é dar valor para o futuro em virtude da comparação ofensiva, e então o futuro é usado como um padrão pelo qual avaliar o valor do presente e do passado. O futuro reina supremo. Qualquer forma de comportamento cultural é justificada na prossecução deste futuro nunca atingível. E qualquer cultura cujo utamawazo não permita o abstrato e mesmo opressivo futuro da ideologia do progresso é considerada como sendo condenada ao fracasso. John S. Mbiti, escrevendo a partir de uma perspectiva Eurocêntrica, tem a dizer sobre o pensamento religioso Africano:

Uma vez que seu conceito de tempo é bidimensional, com um Sasa (presente) e um Zamani (passado), os povos Africanos não podem cogitar uma gloriosa “esperança” para a qual a humanidade possa ser destinada. . . . Neste ponto as religiões e filosofia Africanas devem admitir uma derrota; Eles não forneceram nenhuma solução. . . . Por acaso não é verdade que as religiões se tornam universais apenas quando elas foram desmamadas do berço de olhar para o Zamani (passado). . . e fazem um grande avanço para o futuro, rompendo com todas as promessas (do mitopóetico?) de “redenção?”. . . É nesta área que as religiões do mundo podem esperar “conquistar” as religiões tradicionais e filosofia Africanas,. . . adicionando este novo elemento à vida e pensamento bidimensional dos povos Africanos. Apenas uma religião tridimensional pode esperar durar na África moderna, que está cada vez mais descobrindo e ajustando-se a uma terceira dimensão de tempo. *

[ * – John S. Mbiti, African Religious and Philosophies, Anchor Press, New York, 1970, pp. 127-129.]

Infelizmente, enquanto ele próprio um Africano, Mbiti se esforça tanto para assumir um utamawazo estrangeiro que ele perde o sentido das concepções metafísicas Africanas. A concepção Africana de tempo não é meramente “profana” ou ordinária, mas também sagrada. Na verdade, é a concepção linear Européa que é unidimensional. Este é um dos erros mais evidentes de Mbiti. Passado, presente e futuro são significativos apenas como relações em uma seqüência linear, necessariamente unidimensional. Eles não representam três dimensões. Na concepção Africana, o tempo sagrado, cíclico, dá sentido ao tempo comum, linear. O círculo/esfera acrescenta dimensão à linha, uma vez que a envolve. A esfera é multidimensional, e é curva. O tempo sagrado não é “passado”, porque não faz parte de uma construção linear. Os ancestrais vivem no presente, e o futuro vive em nós. O tempo sagrado é eterno e, portanto, ele tem a capacidade de juntar passado, presente e futuro em um espaço de valorização suprema. Isto é o que Mircea Eliade chamou de hierofania. *

[ * – Mircea Eliade, The Sacred and the Profane, Harcourt Brace, New York, 1959, p. 21.]

Rituais que expressam o tempo sagrado, conectando-o com experiências comuns e pontuando a vida, reformulam e afirmam valores, crenças, e símbolos, colocando assim a existência diária em um contexto sagrado significativo. As sociedades Africanas não precisam de um abstrato conceito Europeu de futuro para dar aos seus membros “esperança”. * A ideia Européia de progresso não é uma declaração universal de significado.

[ * – Dona Marimba Richards, “European Mythology: The Ideology of Progress,” in Black Contemporary Thought, Molefi Asante and Abdulai Vandi (eds.) Sage Publications, Los Angeles, 1985, p. 218.]

O que Mbiti está, provavelmente, lidando, no entanto, não tem nada a ver com a religião em si, mas sim tem a ver com a tecnologia e o seu lugar na sociedade. Na verdade, o sucesso tecnológico (em estilo Europeu) depende, em parte, da assimilação de um conceito linear ou conceito secular de tempo, como a realidade temporal mais significativa ou final. Friedrich Juenger faz este ponto. Ele diz que para o Europeu, tempo como o “futuro” torna-se uma força que domina a vida humana. Este certamente não é o conceito espiritualmente esclarecedor que Mbiti o faz parecer. Tempo, na sociedade Européia, serve à ordem tecnológica, e como tal é não-humano e mecânico. *

[* – Juenger, pp. 35-36.]

O cósmico é o inimigo do tecnológico ou assim tornou-se na experiência Européia. Juenger refere-se a este tempo mecânico como “tempo morto”, e identifica o seu símbolo como o relógio. Para Newton, o tempo era um absoluto, enquanto que para outros ele é uma construção mental que se relaciona com nossas experiências e idéias. O tempo Newtoniano, diz Juenger, é linear, ininterrupto, movimento inexorável. * Nem nós nem nossas experiências afetam-lo.

[* – Ibid, p. 39.]

Tempo na cultura Européia perde seu caráter fenomenal e em vez disso é experimentado como absoluto e opressivo. Mais uma vez temos um conceito criado por seres humanos, reificado senão usado contra eles. Dentro da lógica do desenvolvimento Europeu este processo é necessário, porque o tempo mecânico é uma condição prévia para o triunfo ou a ascensão da ciência e da tecnologia Européias. Eles são os valores supremos, porque eles são o “progresso”. Muitos teóricos (Juenger, Mumford, Joel Kovel, e outros) fizeram a conexão entre o estabelecimento da relojoaria em Genebra em 1587 com a ascensão do Calvinismo lá no século XVI. Calvino intensificou a importância da idéia de predestinação. *

[* – Ibid, p. 46.]

Enquanto preparando as pessoas para a salvação no céu, o Calvinismo treinava-as para a produção de linha-de-montagem na terra. Nas palavras de Juenger:

Ele [o “tempo morto”] pode ser dividido e picado à vontade, algo que não pode ser feito com tempo da vida, ou com os organismos vivendo nele: sementes, flores, plantas, animais, homens, pensamentos orgânicos. É por isso que a tecnologia trabalha com fragmentos de tempo,. . . e. . . emprega tempo – especialistas de estudo – homens que vigiam a exploração racional do tempo morto. . . todos estes são métodos que sujeitam organismos vivos, participando do tempo vital, a um tempo mecânico, sem vida [lifeless time]. *

[ * – Ibid, p. 48.]

O fato de que a dominância das concepções lineares levou ao esmagador sucesso tecnológico da Europa não significa que não hajam outras concepções viáveis. Todos os objetivos não são tecnológicos/científicos. Deve haver outros “tempos”. O tempo linear fracassa espiritualmente. Ele nos empurra constantemente no sentido de ansiedade e medo. O Europeu está sempre a perguntar a si mesmo, mesmo quando repousa: Para onde vou? O que será de mim? O tempo linear é unidimensional porque não tem nem profundidade e amplitude, somente a ilusão de comprimento. Isso leva a teorias evolutivas. A realidade é percebida como o desenvolvimento contínuo de uma entidade através de estágios necessariamente temporais. Um estágio é mais “evolutivamente avançado” do que aquele que ele sucede, uma vez que eles são dispostos ou “desdobram-se” em uma seqüência temporal. O conceito é baseado em conexões lineares assumidas. As conexões existem nas mentes daqueles que compartilham um utamawazo (estilo cognitivo) Europeu; elas não são realidades universais. A evolução não pode ser “vista”. O que é experimentado é a “diferença”. A continuidade é o aspecto teórico. O Evolucionismo postula que é a mesma entidade que muda e portanto “desenvolve-se.” Apesar das suas óbvias insuficiências teóricas, a evolução persiste como uma suposição metafísica Européia – não apenas uma teoria. A suposição é mantida porque ela se adapta ao utamaroho levando ao poder sobre os outros, e não por causa de sua precisão.

Marshall McLuhan diz que “todas as mídias [meios de comunicação] são metáforas ativas em seu poder para traduzir a experiência em novas formas. *

[ * – Marshall McLuhan, Understanding Media, McGraw-Hill, New York, 1967, p. 57.]

Edmund Carpenter afirma que a mídia escrita incentiva a conceituação linear; “A palavra falada passou a imitar a escrita”, e isso “incentivou um modo analítico de pensar com ênfase na linearidade.” *

[ * – Edmund Carpenter, “The New Languages,” in Explorations in Communication, Edmund Carpenter and Marshall McLuhan (eds.), Beacon Press, Boston, 1960, p. 162.]

O modo escrito como entendido na Grécia antiga era um modo não-poético que se adequava a uma visão secular dos eventos humanos. No subsequente desenvolvimento da cultura Européia a linearidade tornou-se dominante até que a falta de uma noção cíclica, multidimensional do tempo tornou-se um reflexo da profanação ou secularização do mundo como visto pelos Europeus. O mal-estar espiritual contemporâneo que nós testemunhamos na Euro-América e na Europa, eu diria, está ligado em parte a concepções lineares limitadamente embasadas, bem como a outras características do utamawazo e visão de mundo Europeus. A suposição do tempo linear é um requisito ontológico para a idéia Européia de “progresso” e esta, da evolução unilinear. A valorização do modo escrito incentiva e apoia essas concepções. Ele é linear, ele acumula, e ele tem permanência física. Portanto, para a mente Européia, ele dá a impressão de “verdade”: objetiva e eterna. Na Europa nascente as pessoas poderiam começar a falar sobre a “perspectiva histórica correta” (Havelock), e em retrospecto, os Europeus olhando para trás em seu desenvolvimento viam isso como um avanço auxiliado pela sintaxe da palavra escrita. A “Cronologia”, diz Havelock, “depende em parte do domínio do tempo como abstração.” Os participantes na “cultura oral” não tem esse sentido. A visão de Mircea Eliade, como a de Dorothy Lee e Juenger, é muito diferente da de havelock. Ao invés de ver concepções não-lineares como sintomas de “atraso” e “ignorância”, eles vêem-las como sendo indicativo de uma teoria da humanidade em oposição à, talvez mais profunda do que, a do Europeu. Ele encontra, “nesta rejeição do profano tempo contínuo, uma certa ‘valorização’ metafísica da existência humana.” *

[ * – Mircea Eliade, The Myth of the Eternal Return, Harcourt Brace, New York, 1954, p. xi.]

A concepção Européia da história era secular – ostensivamente para separá-lo ferozmente do “mito.” Para eles esta era outra marca (indicação) de superioridade  – A precisa história escrita como oposta à “imprecisa” mitologia transmitida oralmente. No entanto, este conceito de história repousa sobre uma concepção de tempo que não é validada pela realidade fenomenal. O “tempo” nesta visão move-se incessantemente em direção a algum ponto nunca alcançado no “futuro”. Este senso de telos é um aspecto importante da mitologia Européia. Ela dá sentido à vida Européia. O “Propósito” está levando a humanidade para o “futuro”. No entanto, esta peculiar concepção Européia de “futuro” cria mais problemas sérios para os membros da cultura do que ela pode possivelmente resolver. Ironicamente, é este “futuro” abordado pela sempre presente linha de tempo através da qual o Europeu busca realização, mas, ao mesmo tempo garante a ela/ele nunca ser realizado. O “futuro” nesta concepção representa a perfeição inatingível. É uma abstração que é inacessível e, portanto, é incognoscível.

Aquilo que é desconhecido para o Europeu causa ansiedade. A psique Européia precisa da ilusão de um universo racionalmente ordenado, no qual tudo possa ser conhecido. No entanto a mitoforma Européia cria um futuro desconhecido e incognoscível, cuja única relação com o passado e o presente é que ele determina-os e não pode ser determinado por eles. Esta situação antagônica causa confusão emocional, ansiedade, e medo para o Europeu. No entanto, esse futuro opressor não pode ser evitado, porque o relógio move ele/ela em direção a um ritmo incontrolável, que parece se mover mais e mais rápido. Tudo isso é um efeito das limitações do tempo linear, secular. Ele não é nem fenomenal, nem sagrado, nem espiritual. Os participantes na cultura têm apenas um recurso contra o medo: a ciência. (A compra de “seguros” é uma outra tentativa de se escapar do medo, mas ela não funciona.) A ciência se torna uma força conjurada para batalhar contra outra força poderosa. (Como uma batalha de “Deuses”.) A ciência prevê! Ela prepara os Europeus para o futuro. É através da ciência que eles procuram aliviar sua ansiedade ganhando controle sobre o que os controla. Esta, portanto, é ditada pela asili. Ela só funciona até certo ponto. Falhando no fim em proporcionar satisfação, pois, afinal, a concepção Européia de ciência está acima de todo o secular e repousa sobre conceitos lineares alienantes, letrados, racionalistas. O monstro que os Europeus têm criado – esse futuro abstrato e opressivo – continua a ameaçar, a intimidar, a assustar. Tudo é pensado por mover inexoravelmente para esse futuro, um movimento que dá valor (progresso) e ainda assim o destino percebido é produtor de medo. Assim, a linearidade é desespiritualizante, enquanto simultaneamente contribui com um ingrediente essencial para a estrutura da mitoforma. Ela ajuda a criar a ilusão da superioridade da cultura Européia para os seus membros, e, portanto, adequa-se à asili.

Todo propósito torna-se “causa final.” Embora possa ser um erro ver Aristóteles como uma mente especialmente criativa ou intuitiva, e a história sugira que ele “tomou emprestado” (para usar um eufemismo) muito dos antigos Kemitas ( “Egípcios”), * Aristóteles exibe uma manifestação particular da influência Platônica e, portanto, deve ser considerado nesta análise da evolução do utamawazo Europeu. Sua formulação intensificou e prenunciou duas tendências epistemológicas e ideológicas que se tornaram temas cruciais e características identificadoras da visão de mundo Européia: a suposição de causa e cientificismo (ciência como ideologia).  As tipologias Aristotélicas, em sua ênfase sobre aspectos particulares do Platonismo, tiveram enorme influência sobre o pensamento medieval e lançaram as bases para a subsequente definição do empenho racionalista, um esforço que se tornou a obsessão Européia.

[ * – James, pp. 114-130.]

Para Aristóteles, a “metafísica”, ou a ciência da “primeiras causas”, é a ciência “divina”. É a “primeira filosofia”, o estudo dos princípios de outras ciências. Ela é divina em virtude do fato de que a natureza do pensamento divino é que ele deve necessariamente ter “a si mesmo por seu objeto. [de estudo]” * A Metafísica, aquilo que está além do físico, é de fato o “lugar” para a discussão da “causa”, uma vez que ‘causa’ é um conceito, uma forma de dar sentido a fenômenos observados e experimentados, que não pode em si mesmo ser observado e não é inerente à estes fenômenos. Nós não podemos ver as suas “causas”. Causa é um conceito metafísico. Mesmo com toda a ênfase Européia sobre este conceito de causa, eles acabam carecendo de uma verdadeira “metafísica”, por causa do “sucesso” de uma visão de mundo materialista.

[ * – Aristotle, Introduction to Aristotle, Richard Mckeon (ed.), Modern Library, New York, p. 248.]

O conceito de causa é a base de uma tradição da ciência Européia que lida exclusivamente com o físico e na qual a metafísica é desmerecida como “mística” e anticientífica. De Lubicz argumenta que não há nenhuma “causa” até que ela produza um “efeito” e que essa relação não é de maneira alguma certa, pois qualquer número de condições pode afetar a “causa” potencial, alterando assim o seu “efeito” do que teríamos racionalmente pensado que seria. *

[ * – De Lubicz, p. 78.]

No entanto, a ciência Européia se baseia unicamente na previsibilidade da relação entre causa e efeito e trata essa relação de uma forma totalmente mecanicista. É uma ciência que tem tentado materializar um conceito espiritualista, assim como [vendo] a partir de um ponto de vista Africano-centrado, ela tentou materializar um universo espiritual. Mas a “descoberta” da causa e a formulação de leis universais de causalidade são vistas do ponto de vista Eurocêntrico como representando progresso. Henri Frankfort vê isso como a transformação da mente “mitopoética” para a mente “científica”:

Assim como o pensamento moderno procura estabelecer causas como relações funcionais abstratas entre os fenômenos, assim ele vê o espaço como um mero sistema de relações e funções. O espaço é postulado por nós por ser infinito, contínuo e homogêneo – atributos que a mera percepção sensual não revela. Mas o pensamento primitivo não pode abstrair um conceito de “espaço”. *

[ * – Frankfort and Frankfort, pp. 15, 20.]

E essa experiência consiste em o que chamaríamos de associações de qualificação. O pensamento primitivo naturalmente reconhecia a relação de causa e efeito, mas ele não pode reconhecer a nossa visão de um funcionamento impessoal, mecânico, e legiforme da causalidade. . . a categoria de causalidade. . . é muito importante para o pensamento moderno como a distinção entre o subjetivo e o objetivo. . . a ciência. . . reduz o caos das percepções a uma ordem na qual eventos típicos tomam lugar de acordo com as leis universais. . . o instrumento dessa conversão do caos à ordem é o postulado de causalidade. *

[ * – Frankfort and Frankfort, pp. 15, 20.]

Culturas anteriores à Grécia clássica Européia certamente ordenaram eventos em termos de leis universais, e a causa externa e impessoal não é a única possibilidade para se conceitualizar a causalidade. O que Frankort retrata como uma fraqueza é certamente apenas uma diferença. É a asili Européia que transforma concepções “abstratas”, “impessoais” da realidade, em uma vantagem, porque a asili define a meta como [sendo] “poder sobre outro”, e é nesse sentido que as concepções Africanas e outras [concepções] parecem ser derrotadas.

As declarações de Frankfort são características da erudição Eurocêntrica como ela tenta traçar a linha entre a civilização Europeia e o que veio antes desta. (Este tipo de “antes” pode, evidentemente, ser contemporâneo – esta é a eficácia da teoria e ideologia evolutiva Européia em combinação.) Mais uma vez, podemos ver a importância de Platão. A partir dos termos que Frankfort utiliza ele pode muito bem estar traçando a linha que separa a “caverna” do mundo das idéias.

Mas há outras interpretações das implicações do conceito de causalidade. Kwame Nkrumah, em seu livro Consciencism (1964), faz uma tentativa de sintetizar a “causalidade externa” com o conceito Africano de causalidade, que ele caracteriza como “interno”.
Cedrix X. Clark, no entanto, aprofunda as implicações espirituais destes dois pontos de vista. Ele implica que Nkrumah estava tentando o extremamente difícil, se não impossível. Para Clark essas duas visões de causalidade representam diferentes modalidades axiológicas e diferentes níveis de consciência. A cultura Européia glorifica o ego em um contexto de individualismo, enquanto que a cultura Africana minimiza o ego em consideração à um senso de unidade e identidade de grupo. Os Europeus, portanto, constantemente tentam “demonstrar independência das forças da natureza” e são “relutantes em reconhecer o fato de que (eles), juntamente com tudo o mais no universo foram causados”, enquanto que para os Africanos “tudo no Universo está relacionado, é dependente e é causado “, incluindo a si mesmos; eles acreditam que “coisas acontecem porque elas fazem” [“things happen because they do.”] *

[ * – Cedric X. Clark, “Some Implications of Nkrumah’s ‘Consciencism’ for Alternative Coordinates in Non-European Causality,” in African Philosophy, Lewis M. King, Vernon J. Dixon, and Wade W. Nobles (eds.), Fanon Center Publications, Los Angeles, pp. 117-118.]

Na análise de Clark, o “por quê” Europeu, que é diferente do “por quê” Africano, questiona a partir de uma consciência que permanece bloqueada para a “ordem inferior” das dimensões espácio-temporais. A consciência Africana, por outro lado, funciona mais no nível da espiritualidade que se torna a dimensão significativa. (Leonard Barrett faz uma observação semelhante no que diz respeito à concepção Africana da doença.) *

[ * – Leonard Barrett, Soul Force, Doubleday, Garden City, N.J., 1974, Ch. 2.]

Esta ênfase diferente na concepção de causalidade é, na opinião de Clark, “a manifestação de um estado totalmente diferente de consciência” em que o Africano é capaz de se mover além do tempo e espaço ordinários para um nível superior em que os eventos podem se tornar significativos em termos de causação cósmica ou universal. *

[ * – Clark, p. 118.]

No entanto, a idéia de causa é problemática mesmo dentro da lógica Européia. Dos quatro tipos de causas de Aristóteles, “material”, “formal”, “eficiente” e “final”, a causa final é crucial para a nossa análise. Segundo Aristóteles a causa final de um objeto, coisa, ou fenômeno é o seu propósito, o fim para o qual ele existe. Em sua opinião determinar a causa final de um objeto ou fenômeno é o objetivo mais importante da ciência. Ao mesmo tempo, esta tradição separa rigidamente ciência e crença. No entanto, a idéia de causa final só pode ser entendida como uma crença! A crença na idéia de “causa final” dá ao pensamento Europeu o seu forte caráter teleológico. Ela leva a uma suposição de que tudo o que existe, existe para um propósito, e esse propósito é a coisa mais importante sobre ele. Esta idéia se manifesta em ideologias tão diversas quanto o pensamento Judaico-Cristão e análise Marxista, e talvez encontra a sua expressão máxima na ideia de progresso, um componente fundamental de ambas as tradições. A ciência Europeia afirma, portanto, o que deve ser tomado como um ato de fé (a crença na causa) de uma forma absolutista e determinista. Claramente, o resultado é o dogma e sua finalidade é ideológica: “cientificismo”.

O que deveria ser método torna-se apenas ideologia, a qual repousa sobre os seguintes mitos, de acordo com Carl spight: (1) que a ciência é fundamentalmente, culturalmente independente e universal; (2) que a única linguagem confiável e completamente objetiva é o conhecimento científico; (3) que a ciência é desapaixonada, sem emoção, e anti-religiosa; (4) que a lógica é a ferramenta fundamental da ciência; e (5) que o método científico leva sistemática e progressivamente em direção à verdade. *

[ * – Carl Spight, “Towards Black Science and Technology,” in Black Books Bulletin, Fall 1977, Vol. I, No. 3, pp. 6-11, 49.]

A função da ciência na cultura Européia torna-se aquela de estabelecer uma fonte invulnerável de autoridade que não possa ser contestada. Em relação a outras culturas, ela tem o papel de estabelecer os dados [the givens] Europeus como verdades “universais”, a cultura Européia como a mais racional, e o modelo racional do universo como a única visão correta. Isto levou ao que De Lubicz chama de “uma investigação sem iluminação” [“a research without illumination.] Para ele, a base de todo o conhecimento científico ou conhecimento universal é a intuição. A análise intelectual é secundária e sempre será, na melhor das hipóteses, inconclusiva. A visão de mundo Africana: O espírito é primário!

A definição Européia de ciência não é a única maneira de se definir o que a ciência deveria ser. Para Hunter Adams, a ciência é a “busca de unidade ou a totalidade dentro ou fora de toda a experiência humana” [itálico de Adams] * e para Wade Nobles, “a ciência é a reconstrução ou representação formal do conjunto compartilhado de idéias, crenças, e conhecimentos (ou seja, o senso comum) de um povo, decorrentes da sua cultura. . . . ” [“science is the formal reconstruction or representation of a people’s shared set of systematic and cumulative ideas, belief, and knowledges (i.e., common sense) stemming from their culture. . . .”] *2

[ * – Hunter Adams, “African Observers of the Universe,” in Journal of African Civilizations, 1979, Vol. I, No. 2.]
[ *2 – Citado em Adams, p. 5.]

A definição de ciência Européia reflete a consciência Européia, e o estilo de pensamento gerado por esta consciência se tornou ideológico. Nesta função ela é identificada como “cientificismo”. Nobles nos adverte: “Assim, o perigo quando se adota acriticamente a ciência e os paradigmas da realidade de outro povo é que se adota a sua consciência e também se limita a arena da própria consciência. *

[ * – Citado em Adams, p. 6.]

O papel de Aristóteles em preparando o terreno para o desenvolvimento do cientificismo como uma atitude Européia em relação à verdade e valor foi significativa. Para ele, o mundo tornou-se uma hierarquia de seres em que cada reino cumpria um propósito para o reino “acima” dele. Esta era uma visão de mundo em curso [em processo de elaboração], uma visão de mundo descrita em termos de relacionamento télico. O mecanismo crucial era a “causa”. Mas a causalidade não é a única maneira de se relacionar fenômenos. A tirania da causalidade mecânica no pensamento Europeu se opõe à percepção da inter-relação, identificação, coincidência significativa, complementaridade cósmicas, e ao “círculo.” A insistência de Aristóteles sobre a idéia de causa era necessária para que as pessoas viessem a aceitar o “propósito” como [sendo] a essência do universo. “Propósito” é um ingrediente essencial da mitologia de progresso e na obsessão técnica que subsequentemente se desenvolveria  na cultura Européia. É impossível se adorar a “eficiência” sem uma prévia ênfase sobre causalidade mecânica e propósito materialista. Todas estas concepções requerem uma modalidade linear. O ciclo de regeneração e renovação interfere com e não pode ser tolerado por este ponto de vista. (De Lubicz fala sobre o “fechado, auto-renovante ciclo de Osíris” da antiga Kemet. *)

[ * – De Lubicz, p. 91.]

Na visão de mundo Africana é o eterno ciclo de vida que oferece a possibilidade de transcendência, de inter-relação harmoniosa, de totalidade, integração e autêntica organicidade. O conceito é espiritualmente gratificante. O Europeu, por outro lado, é perceptivelmente e fenomenalmente (experimentalmente) limitado pela sua concepção linear da realidade. Não existe qualquer ligação entre o passado, presente, e futuro a não ser uma ligação “causal”. Não há tempo sagrado. A história é limitada ao secular. Mesmo a imagem religiosa mais significativa na tradição Européia – aquela do Cristo – só é vista como tendo valor na medida em que ela possa ser colocada dentro de uma sequência “histórica.” Ela não tem uma validade sagrada, mas uma secular. O predomínio de modelos lineares, talvez, ajude a explicar o mal-estar espiritual das sociedades Européias.

Edward Hall acredita que a alienação do Europeu da natureza está relacionada com a dominância da linearidade na visão de mundo Européia. “Nós vivemos fragmentados, vidas compartimentadas em que as contradições são cuidadosamente seladas [ocultadas] uns dos outros. Temos sido ensinados a pensar linearmente, ao invés de compreensivamente.” *

[ * – Hall, p. 11.]

“Não é que as relações lineares não ajudem a ordenar certos aspectos da experiência, mas que elas não vão por si só gerar uma visão holística.” *

[* – Ibid, p. 243.]

Ao insistir na dominância de um modo, o Europeu perdeu de vista o todo. Mas isso era necessário! Assim como o modo de objetivação teve de ser elevado à supremacia para que as pessoas/mentes “certas” pudessem conseguir o controle. A linearidade foi fundamental para o sistema de “lógica” que Aristóteles introduziu, o qual foi depois igualado à verdade. Vernon Dixon cita de Metafísica:

É impossível para a mesma coisa, ao mesmo tempo pertencer e não pertencer à mesma coisa no mesmo sentido; e quaisquer outras distinções que você possa acrescentar para atender a objeções dialéticas, deixe-las serem adicionadas. Este, então, é o mais certo de todos os princípios. . . . *

[ * – Aristóteles, Metafísica, 1005B, citado em Dixon, “World Views and Research Methodology” (“Visões de Mundo e Metodologia de Pesquisa”, p. 75.]

Dixon caracteriza a lógica Européia (Aristotélica) como “ou/ou lógica” [“either/or logic”], a qual é baseada nas leis da contradição, o meio excluído, e leis de identidade. Ele diz que “ou/ou lógica tornou-se tão arraigada no pensamento Ocidental que é sentida como sendo natural e evidente.” Ele contrasta a lógica Européia com a que ele chama de “lógica diunital” da visão de mundo Africana, em que as coisas podem ser “separadas e unidas ao mesmo tempo.” de acordo com esta lógica, algo tanto está em uma categoria quanto não está nessa categoria, ao mesmo tempo. * Esta circunstância é impensável dada a visão de mundo Européia.

[ * – Dixon, pp. 75-76.]

Um problema evidenciado repetidamente quando os Europeus olham para “não-Europeus”, ou o que eles consideram culturas “pré-Européias” é a sua incompreensão da relação entre o um e os muitos, entre unidade e diversidade. Para pessoas outras que não Europeus estas [relações] existem simultaneamente e não são vistas como contraditórias. O Europeu na maioria das vezes vê essas concepções como exemplos da incapacidade de pensar “logicamente”. Lévy-Bruhl referiu-se à mentalidade “pré-lógica”. Isto é porque os Europeus necessitavam de ser capazes de dizer que havia apenas “um caminho para a realidade”, e esse caminho poderia, então, ser controlado por uma cultura, uma civilização, um tipo de pessoa – sim, até mesmo uma raça. E o que se desdobra nestas páginas é a maneira pela qual esse controle, esse poder, foi alcançado: a necessidade do monólito! A asili do desenvolvimento Europeu nos permite compreender estes desenvolvimentos “eidológicos” (Bateson) como preparação para a instituição da poderosa cultura monolítica de Estado que se tornou a Europa.

Supremacia do Absoluto, o Abstrato, e o Analítico

Em A República, Glaucon e Adimantis procuram a “virtude” abstrata em oposição à “virtude” sempre ligada a uma situação concreta. Havelock vê novamente isso como parte do atraso da Grécia “homérica” em oposição à Grécia “Platônica”. Na primeira modalidade, só se aprendia a partir de exemplos concretos de virtudes. A “revolução” Platônica no pensamento não era apenas “separar o conhecedor do conhecido,” mas também introduzir um tipo especial de abstração que se identificaria com o pensamento Europeu. Em Eutífron, uma preocupação semelhante surge. Sócrates convence Eutífron que ele não pode “reconhecer” a piedade quando ele a vê, porque ele não tem nenhuma “idéia” dela. As ações de Eutífron são portanto, segundo Sócrates, atormentadas pela “inconsistência”. Ela está acima de toda permanência e consistência que são alcançadas através da abstração Platônica, a forma “imutável” à qual todas as coisas sujeitas a mudanças podem ser referidas. Mas não será isso  meramente uma ilusão — na melhor das hipóteses um método operacional? Situações como aquela com a qual Eutífron é confrontado sempre surgirão na condição humana. Haverá sempre momentos em que o dever de cada um para com os Deuses e o dever de um para com o pai conflitem. Ter uma “idéia” de piedade não necessariamente ajudará a tomar a decisão correta — se, de fato, existe alguma. O compromisso fanático com tal “idéia” tende a resultar em posturas moralistas, hipócritas, e anti-humanas. A “Piedade”, afinal, tem a ver com significado e valor e, como tal, está necessariamente ligada ao “humano”, ao existencial e ao concreto. Platão inventa a “idéia” que é não-humana [other than human], e o que ele afirma alcançar ao fazê-lo é livrar a “verdade” da ambigüidade inerente ao humano. A própria República é uma “Idéia” ou “Forma”. É um estado de perfeição que resolve os problemas humanos eliminando-os. Na República, a ambigüidade e inconsistência do concreto desaparece à medida que é substituída pela abstração Platônica: “A Idéia do Bem”.

O fato é que a existência da “piedade” e da “virtude” como abstrações, e como “objetos” intelectuais distintos do “conhecedor” [“knowing self”] deve ser demonstrada. Não pode ser presumida. O único argumento convincente é que a ilusão de objetivação e o uso de tais abstrações podem, sob as circunstâncias apropriadas, ser ferramentas úteis com aplicabilidade limitada. Não é razoável aceitá-las como dados ontológicos ou como sendo necessárias para todos os tipos de “saber” [“knowing”], como argumenta Platão. Mas então, ele deve produzir esse argumento, porque sua intenção não é apenas filosófica, mas também ideológica, isto é, social e política.

Havelock só elogia a epistemologia Platônica. Para ele esta representa o “avanço” na inteligência humana. O objeto que o conhecedor conhece deve ser uma abstração. Deve ser a qualidade em isolamento, a “coisa em si.” As formas Platônicas são dessa natureza (ainda que certamente impossíveis de se imaginar). De acordo com Havelock:

Os objetos abstraídos do conhecimento como conhecidos e declarados, são sempre idênticos consigo mesmos — imutáveis — e sempre quando as declarações são feitas sobre eles ou quando eles são usados em declarações, essas declarações têm de ser atemporais. *

[ * — Havelock, p. 226.]

O que é aquilo que o conhecedor “conhece?” Somente essas identidades abstraídas. De acordo com Platão, elas têm uma realidade maior que os casos concretos, porque são mais “permanentes”. Contudo, parece-nos que o concreto tem uma realidade maior: o material como manifestação do espírito. Havelock diz de Platão: “Ele tenta concentrar-se na permanência do abstrato, seja como fórmula ou como conceito, em oposição ao caráter flutuante ‘hoje aqui — amanhã não mais’ da situação concreta”. Platão habilmente cria a ilusão de “permanência”. Ele traça a notória “linha” para separar o invisível do visível, o “inteligível” daquilo que só pode ser percebido ou sentido; E as coisas (idéias) que “são” daquelas que meramente “parecem ser”. Nos escritos de Platão, as “Idéias” e as “Formas” são escritas com maiúsculas e assim adumbram a simbolização escrita do “Deus” Europeu, enquanto que as coisas no mundo sensual, as opiniões e a poesia são escritas em minúsculas — assim como o são os “deuses” de povos que não são Europeus.

Em sua obsessão pelo abstrato e pelo absoluto, Platão tomou emprestado do ensinamento das Escolas de Mistérios que o precederam e das quais ele aprendeu. (Há também estudiosos Eurocêntricos que dizem que foi o contrário: que tradições atribuídas ao antigo Egito na verdade vieram mais tarde e foram influenciadas por Platão. *)

[ * — Francis Yates, Giordano Bruno and The Hermetic Tradition, Universidade de Chicago Press, Chicago, 1978.]

Ele tomou a idéia de uma verdade sagrada, eterna, simbolicamente declarada, acessível apenas através da iluminação espiritual, e secularizou-a e distorceu-a para uso ideológico. É interessante que os mistérios do universo para Platão se tornem profanos, à medida que o esotérico se torna exotérico, e ao mesmo tempo enganosamente elitista. Embora seja um sistema epistemológico com o qual todos são forçados a se relacionar, somente os poucos muito especiais são capazes de conhecer as “Idéias” e assim, devem ensinar e governar o resto. Novamente a criação do poder.

Esta idéia da abstração Platônica levanta um ponto interessante. É importante que todos nós possamos ver as relações entre fenômenos e eventos particulares e que os “entendamos” ou os organizemos. Queremos que nossos filhos sejam capazes de pensar “conceitualmente”, ou seja, se sintam confortáveis com conceitos que podem ser usados para dar sentido às coisas, para resolver problemas. Nós não queremos que eles sejam para sempre limitados à circunstância familiar, incapazes de aplicar um conceito a uma “nova” situação ou problema. Existe também a realidade cultural muito simples que em todas as sociedades e culturas as pessoas devem abstrair da experiência para se organizar, para construir e para criar e desenvolver. A abstração tem seu lugar. Ela não é uma ferramenta cognitiva (metodologia) Européia, mas sim “humana”. Contrariamente ao pensamento Europeu, ela não começou com Platão ou os Gregos.

Platão separa o mundo em duas partes — ou melhor, cria dois mundos: o mundo da “aparência” e o mundo da “realidade”. Esta separação continuou a caracterizar o pensamento científico Europeu. Para Stanley Diamond isso é problemático, pois “os conceitos se tornam entidades reais ao invés de metáforas e, como tais, têm poder sobre as pessoas“. Os conceitos se tornam reificados. Isso, de fato, parece ter sido o objetivo de Platão. Platão “isola o abstrato do concreto (e) o intelectual do emocional”. *

[ * — Diamond, p. 193.]

No entanto, como observa Diamond, a abstração Platônica não é senão um tipo de abstração e é este estilo que se enraizou no pensamento Europeu:

. . . Todo sistema linguístico é um sistema de abstração; cada triagem de experiência e conclusão a partir dela é um esforço abstrato; Cada ferramenta é um símbolo do pensamento abstrato: de fato, toda convenção cultural, todo costume é testemunho da capacidade humana genérica para abstrair. Mas tais abstrações estão indissoluvelmente ligadas ao concreto; Elas são alimentados pelo concreto, e elas são, eu acredito, finalmente induzidas e não deduzidas. Elas não são, em suma, abstrações especificamente Platônicas, e não têm as conotações psicológicas politizadas desta. *

[ * – Ibid, p. 194.]

Diamond percebeu a importância do estilo Platônico de abstração. É ideológico na intenção. Seu papel é estabelecer a autoridade epistemológica e, naturalmente, outros tipos de autoridade podem ser derivados e apoiados por ele. A natureza especial desta relação no desenvolvimento Europeu será desenvolvida nos capítulos que se seguem. Aqueles colonizados pela Europa (assim como os próprios Europeus) são ensinados que a abstração Platônica é ‘a abstração’ e que, uma vez que seus sistemas de pensamento não são baseados em tais abstrações, eles são incapazes de pensar “abstratamente”. Este é apenas um aspecto do assalto da Europa ao resto do mundo.

Certamente a abstração é valiosa em situações específicas, quando se raciocina sobre certos tipos de coisas, por exemplo, conceitos de “oposto”, “semelhança”, “diferença”, etc. Mas todos sabemos que existem muito poucos casos em que essas categorias abstratas podem ser aplicadas com precisão e sem ressalvas às realidades concretas. Platão sabia disso e, portanto, chamou a realidade como a conhecemos de “irreal”. Ele diz que esta é apenas a nossa percepção, que é contraditória, e não a “Realidade” (com um “R” maiúsculo). Talvez meu principal argumento com o argumento Platônico seja o ditado de que o modo de abstração deve ser aplicado às nossas concepções morais e às nossas relações uns com os outros, ou como diz Kant, nossos “juízos”. O imperativo Kantiano é, afinal, moralmente e existencialmente irrelevante. Para ser significativo ele deve ser aplicado a situações humanas concretas e ser qualificado e condicionado por essas situações. O uso de formulações abstratas “universais” na experiência Européia tem sido para controlar as pessoas, para impressioná-las e intimidá-las. Essas formulações têm significado político e não significado moral ou ético. Elas não ajudam as pessoas a viver melhor. É por isso que Eric Havelock está errado quando insinua que os Gregos foram capazes de viver mais moralmente após a influência de Platão. E é por isso que, apesar da ascendência do pensamento científico Europeu, a cultura Européia é, em muitos aspectos, menos moral do que a maioria das culturas que têm uma base autenticamente moral.

A abstração é então uma ferramenta que todas as pessoas usam para se integrar no seu ambiente e para organizar seu pensamento e seu conhecimento. Claramente, a ênfase Platônica que veio a dominar o pensamento, o comportamento, e a organização social Europeus não teve esse propósito. A interpretação de Alvin Gouldner está mais próxima da minha do que a da maioria dos estudiosos Europeus:

O esforço de Platão para encontrar as Idéias universais transcendentais que ele postula serem reais provavelmente está relacionado com o problema muito prático enfrentado pela moralidade Grega de seu tempo: encontrar uma base comum entre crenças diversas e estabelecer uma base para unificá-las, para compor reivindicações e valores convincentes para que todos não precisassem ser tratados relativisticamente, como se fossem de igual valor. O desenvolvimento de definições universais pode, portanto, não ter surgido apenas da agitação desinteressada de uma curiosidade ociosa, ansiosa por pensar mais claramente por si mesma, mas também como resposta à crise dos sistemas morais e de crenças Gregos. Em nível sociológico, trata-se de um esforço para identificar um terreno oculto entre as opiniões beligerantes e uma retórica que serve para obter o consentimento para um método que visa produzir um consenso. *

[ * — Alvin Gouldner, Enter Plato, Basic Books, New York, 1965.]

Mesmo em sua timidez, o retrato de Gouldner das implicações da filosofia Platônica e, principalmente, dos motivos de Platão, é refrescantemente honesto em sua falta de chauvinismo Europeu comum. As implicações de que as intenções de Platão podem ter sido mais do que “acadêmicas” são estranhamente sacrílegas em uma sociedade completamente secular. Talvez os Sofistas fossem os críticos mais eficazes da Ordem Platônica dentre os “ancestrais” dos Europeus. Eles a atacaram em sua base epistemológica. Assim, eles se tornam os piores vilões morais, já que a imoralidade é equiparada ao relativismo. Lewis Richards diz:

De acordo com a filosofia dos Sofistas, não existe nenhuma verdade objetiva, mas apenas crenças. “O homem é a medida de todas as coisas”, disse Protágoras. Pode haver muitas opiniões contraditórias sobre a mesma coisa e todas elas serem igualmente verdadeiras. O sábio é aquele que pode mudar as opiniões de muitos através da arte da persuasão. Isso explica como eles acreditavam que poderiam provar “a lógica errada como sendo a correta e a correta como sendo a errada”. *

[ * — Lewis Richards, Ancient Greek Literature in Translation, Vol. II, Chicago, 1986, p. 372.]

— Faríamos bem em examinar mais de perto os escritos dos Sofistas numa perspectiva Africano-centrada. Parece que eles eram perigosos, porque se alguém os acreditasse, os “argumentos” meticulosos nos diálogos Platônicos poderiam não se sustentar. As coisas não são necessariamente o que são levadas a parecer. Na sociedade Euro-Americana contemporânea a habilidade que compensa é aquela que permite fazer a agressão parecer “defesa”, a opressão parecer “liberdade” e o imperialismo cultural parecer “iluminação”. Os Sofistas, dizem-nos, eram perigosos porque “minavam os conceitos de religião, família, o comportamento moral e do Estado”. (Mas não é isso que Platão tinha que fazer?) “Eles ensinavam que a religião era uma invenção dos filósofos, que os deuses eram as criações do homem, e que as leis eram aprovadas pelos fortes para sua própria proteção. O perigo de tais ensinamentos para a sociedade eram vastos. Os Jovens especialmente eram capazes de se tornarem influenciados e arruinados”. *

[ * — Ibid, p. 64.]

Mas, de fato, as visões Platônicas levariam ao monolito e ao controle imperial, enquanto os Sofistas parecem ter tido uma visão mais pluralista, reconhecendo a validade na diversidade cultural e na visão de mundo. Nas palavras de Gouldner, esse reconhecimento os leva a:

. . . Uma crítica das distinções convencionais entre Gregos e bárbaros, aristocratas e plebeus, escravos e senhores, vendo-os como artifícios contrários à natureza e, de fato, vendo os próprios deuses como invenção dos homens. Os costumes e crenças diversificados que encontram levam alguns Sofistas a concluir que, quando os homens discordam de instituições, leis ou costumes, isso não significa necessariamente que alguns deles devam estar certos e outros errados; E que não há necessariamente um único padrão invariável de verdade pelo qual a validade das crenças sociais possa ser julgada. As instituições e as leis, nesta perspectiva, devem ser avaliadas em função das diferentes condições que prevalecem em diferentes comunidades. *

[ * — Gouldner, p. 190.]

Obviamente, isso não podia ser. Esta posição epistemológica era incompatível com o objetivo Platônico. Não admira que Platão passe tanto tempo “refutando” os Sofistas em seus diálogos. A visão dos Sofistas não produzia poder, não se adequava às exigências da asili Européia e, portanto, foi rejeitada como um modelo epistemológico.

Compreender a função da modalidade abstrata-absoluta é compreender o desenvolvimento Europeu e a sua relação com padrões alternativos de desenvolvimento, isto é, com outras culturas. Uma crítica eficaz da cultura Européia deve traçar o seu desenvolvimento de uma concepção crítica para a seguinte, no ponto em que a necessidade de novas ordens de solidez tem sido sempre satisfeita por outro dogma, outras declarações ideológicas da supremacia Européia. Este processo leva a uma desespiritualização cada vez mais intensa e a um maior controle.

A cultura que Platão iniciou não é boa para a mente criativa nem para aqueles que não são Europeus. À luz dessa interpretação, a raiva de Platão em relação aos Sofistas faz mais sentido. Eles se tornam inimigos, quase o símbolo do mal por causa de sua rejeição do racional. Afirmar explicitamente que o homem era a medida de todas as coisas, como disse Protágoras, era minar a nova ordem. Naturalmente, a visão Platônica implicava a mesma coisa, mas limitava-a ao “homem racional”, e ele definia a “razão”. Uma vez que a nova “medida do homem” tinha sido decretada, ela não poderia ser alterada. Bem mais de mil anos depois, na mesma tradição, São Simão e outros fariam eco ao decreto de Platão. Eles diriam que a nova sociedade deveria ser derivada dos princípios do pensamento racional. O absolutismo era um requisito essencial para a realização de tal estado. Os Sofistas haviam dito que havia muitas e contraditórias opiniões sobre a mesma coisa e que todas elas poderiam ser verdadeiras! Que blasfêmia! Pior, sedição!

Arthur O. Lovejoy usa a frase “pathos metafísico” de uma forma que parece reunir o “eidos” e o “ethos” de Gregory Bateson em uma única idéia. Um sentimento do eterno dá prazer estético à mente Européia, diz Lovejoy. *

[ * — Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being, Harvard University Press, Cambridge, 1966, p. 12.]

A idéia de imutabilidade e abstração pura são agradáveis ao utamaroho Europeu. Lovejoy diz do pensamento Platônico:

Tendo chegado à concepção de Idéia das Idéias, que é uma perfeição pura, alheia a todas as categorias do pensamento ordinário e sem necessidade de nada, exterior a si mesma, ele imediatamente encontra justamente neste Ser transcendente e absoluto o fundamento lógico necessário da existência deste mundo. . . . E se alguma razão para o ser do mundo sensível deva ser encontrada, ela deve necessariamente, para Platão, ser encontrada no Mundo Intelectual e na própria natureza do único Ser Auto-Suficiente. O não-tão-bom, para não dizer o ruim, deve ser apreendido como derivado da Idéia do Bem, como envolvido na essência da Perfeição. O mesmo Deus que era o Objetivo de todo desejo também deve ser a Fonte das criaturas que o desejam. *

[ * — Ibid, p. 45.]

A experiência do sagrado e do eterno, ao contrário do tempo profano e secular, parece ser essencial para a realização espiritual humana ou pelo menos satisfação. Mas na maioria das culturas essa experiência é alcançada de outras maneiras. O poder do drama ritual como um mecanismo cultural capaz de reestruturar categorias ordinárias de tempo e espaço é profundo, surpreendente, e impressionante: um tipo diferente de transcendência, de fato, a partir do construto artificial que serve de base para o pensamento racional. Esta não é uma transcendência em que participamos existencialmente. O drama ritual, por outro lado, age para transformar a psique para redefinir a realidade por um momento especial. Torna-se uma realidade fenomenal. O quadro conceitual Europeu trata os fenômenos como objetos e assim tira o poder da realidade vivida. Como Norman Brown disse, “O racionalismo Secular é realmente uma religião”. *

[ * — Norman Brown, Life Against Death, Wesleyan University Press, Middleton, Conn., 1959, p. 274.]

William James é um filósofo Europeu que parece insano quando visto em termos de filosofia Européia, por causa de sua recusa em aceitar sua longa tradição, sua rejeição do utamawazo Europeu. James critica o que ele chama de “idealismo monista” ou a “filosofia do absoluto”. Ele diz que este é essencialmente “não-humano”; “Ele não age nem sofre, não ama nem odeia, não tem quaisquer necessidades, desejos ou aspirações,  fracassos ou sucessos, amigos ou inimigos, vitórias ou derrotas”. O “Absolutismo”, diz ele, dita que nada nesta vida é real. “A grande reivindicação da filosofia do absoluto é que o absoluto não é hipótese, mas um pressuposto implicado em todo pensamento, e necessitando apenas de um pequeno esforço de análise para ser considerado como uma necessidade lógica”. *

[ * — William James, The Writings of William James, John H. McDermott (ed.), Random House, New York, 1968, pp. 498-500.]

A própria concepção “pragmática” de verdade de James é a seguinte:

Idéias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar, corroborar e verificar. Idéias falsas são aquelas que não podemos. . . . A verdade de uma idéia não é uma propriedade estagnada inerente a ela. A Verdade acontece a uma idéia. Ela se torna verdadeira, é tornada verdadeira pelos acontecimentos. Sua verdade é de fato um evento, um processo: o processo de sua verificação de si própria, sua veri-ficação. Sua validade é o processo de sua valid-ação. [itálico de James] *

[ * — Ibid, p. 431.]

Platão não teria tido qualquer paciência para o “pragmatismo” de James e nem a tradição Européia tem. Ela não “se ajusta” às necessidades ideológicas dessa cultura minoritária. Não “serve” os outros modos dominantes da cultura. Não satisfaz as necessidades de poder da asili.

O modo sintético produz concepções cósmicas. A visão de mundo Européia conseguiu deixar a cultura sem nenhuma cosmologia autêntica, sem nenhuma metafísica verdadeira. Tudo é físico, material, e separado. A abordagem final do conhecimento é a objetivação e a análise. Willie Abraham fala sobre a “tendência Européia para rasgar (separar) as coisas” [“tendency to rip things apart”]. *

[ * — Willie Abraham, The Mind of Africa, University of Chicago Press, Chicago, 1962, p. 19

Há algumas coisas, diz ele, que não podem ser “divididas” sem destruir sua integridade. Parece que o humano seria um desses. A abordagem científica Européia despedaça os seres humanos a fim de compreendê-los. A visão essencialista assume que o/a homem/mulher é irredutível. O modo analítico divide as coisas. Abstração remota e absoluta é tornada aplicável ao aqui e agora através de uma metodologia analítica. O que parece ter ocorrido muito cedo no desenvolvimento Europeu foi uma predileção por um dos métodos cognitivos que nós, como seres humanos, fomos capazes de empregar. O absoluto, o abstrato e o analítico servem o utamaroho Europeu, um utamaroho que necessita da sensação de controle.

A evidência empírica apóia essa interpretação. Como mencionado anteriormente, no início da história do pensamento científico Europeu, as habilidades relacionadas à linguagem e os métodos de “saber” estavam associados a uma porção do cérebro que foi rotulada como “principal” (“maior”) [“major”], enquanto que a porção que gerava outros tipos de respostas foi chamada de “secundária” (“menor”) [“minor”], e como é indicado pela relação semântica destes dois termos, a “secundária” [“menor”] foi considerada como sendo “menos desenvolvida” do que a “principal” [“maior”]. Isso era natural ou “cultural”, dado a predileção da mente Européia por modelos evolutivos unilineares que permitem a comparação de fenômenos numa escala “progressiva”. Mais tarde, no entanto, na década de 1960, em experimentos sobre o cérebro, descobriu-se que ambos os hemisférios do cérebro, o “direito” e o “esquerdo” estavam envolvidos em funções congnitivas “superiores” e que estas duas metades não estavam em oposição ou antagonismo uma à outra como a visão de mundo Européia predisporia a pensar, mas que suas funções eram complementares. Cada hemisfério, de acordo com a teoria do “cérebro dividido” [“split-brain”], é adaptado para “diferentes modos de pensar, ambos altamente complexos”. *

[ * — 10B. Edwards, Drawing on the Right Side of the Brain, J. P. Tarcher, Los Angeles, 1979, p. 29.]

O termo “modo” aqui é muito importante. É o Kuntu da filosofia Africana: a maneira pela qual uma coisa é percebida, apreendida, tornada inteligível e expressa. É a modalidade e, como tal, efetua os contornos do que recebemos, percebemos e experimentamos. É “mídia” e, portanto, tem um relacionamento complexo e íntimo com a comunicação. O Kuntu pode fazer muito para determinar, limitar, retratar, distorcer ou enriquecer o fenômeno que está sendo apresentado.

Roger Sperry no Instituto de Tecnologia da Califórnia levou a cabo investigações para aprofundar a compreensão da natureza “bimodal” de nossos cérebros. Seu trabalho produziu as seguintes informações: (1) que há um “cabo” de conexão de fibras nervosas entre os dois hemisférios do cérebro; (2) que, quando esse cabo é cortado, cada hemisfério opera independentemente; (3) que cada hemisfério percebe sua própria realidade, mas que esta realidade é apenas parcial ou incompleta sem a do outro hemisfério. O cérebro intacto tem um “corpo caloso” (corpo de conexão) que facilita a comunicação entre os dois hemisférios e assim unifica o ser  pensante/sensível [the thinking/feeling being]. Os princípios expressos são os de uma cosmologia Africana na qual temos a “geminação” [“twinness”] fundamental do universo; As funções complementares de opostos que cooperam para formar o bom funcionamento do todo. Mas nossas noções do que constitui a inteligência foram moldadas pela visão de mundo minoritária da Europa Ocidental e, portanto, temos dificuldade em pensar holisticamente a esse respeito, uma vez que o mundo Europeu se baseia em, primeiro, separação, dicotomização e depois “domínio” de um dos opostos.

Os dois hemisférios são agora conhecidos como “esquerdo” e “direito”. O hemisfério esquerdo é considerado por funcionar em um modo analítico verbal, enquanto o hemisfério direito é não-verbal, global, ou “sintético”, espacial, complexo e intuitivo. Claramente, assim como esta última era anteriormente conhecida como a função “secundária” (“menor”), ela tem sido consistentemente e sistematicamente, e mesmo — pode-se dizer — institucionalmente, sido desvalorizada na civilização/cultura Européia. Raramente ela é reconhecida como sendo uma fonte de “inteligência”. Ela não é nem “testada” nem encorajada. Inteligência na sociedade Européia tem sido identificada com o modo cognitivo gerado e controlado pelo hemisfério esquerdo do cérebro. Hunter Adams prefere falar sobre “estilos culturais de saber” ao invés de divisão do cérebro desta maneira. *

[ * — Hunter Adams, “Strategies. Toward The Recovery of Meta-Conscious African Thought,” lecture at City College of New York, 6 June, 1987.]

Talvez a mais recente safra dessa visão Eurocêntrica, “cientificamente” afirmada, seja encontrada no trabalho de Julian Jaynes. Sua teoria é que a consciência humana como “nós” a conhecemos não começou a se desenvolver até o século II antes da Era Cristã! Isso significa que a Grande Pirâmide de Gizé e os cálculos envolvidos na sua criação, a medicina, a matemática, a química, e a organização estatal do Egito antigo (Kemet), para não mencionar a Suméria, foram todas realizadas sem “consciência”. “Uma civilização sem consciência é possível”. *

[ * — Julian Jaynes, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, Houghton Mifflin, Boston, 1982, p. 47.]

A teoria de Jaynes é interessante e ultimamente do clássico gênero Eurocêntrico, enquanto na superfície dá a impressão de ser única e inovadora. É uma variação nova sobre um tema velho. Para Jaynes, a consciência tem as seguintes características: (1) “espacialização.” (2) “Excerção” — nós só “vemos” uma parte de qualquer coisa em particular. É irônico que ele diga isso, uma vez que é a modalidade Européia de cérebro-esquerdo que impede que as pessoas compreendam globalmente. (3) “O Análogo ‘Eu'”, que nos permite imaginar-nos fazendo as coisas, isto é, “A Metáfora ‘Eu.'” “Desta característica da consciência, Jaynes diz: “Nós podemos olhar para fora a partir do eu imaginado. Ou podemos retroceder um pouco e ver a nós mesmos.” (4) “Narratização”, a partir da qual “constantemente vemos a nós mesmos como as figuras principais nas histórias de nossas vidas”. (5) “Conciliação”, “traz[endo] as coisas juntas como objetos conscientes”. *

[ * — Ibid, pp. 59—65.]

De acordo com Jaynes, os seres humanos nos tempos antigos podiam falar, escrever, ouvir, ler, aprender, tomar decisões, pensar e raciocinar, mas não eram “conscientes”:

. . . A consciência é uma operação e não uma coisa, um repositório, ou uma função. Ela opera por meio de analogia, por meio da construção de um espaço analógico com um “eu” análogo que pode observar esse espaço e se mover metaforicamente nele. Ela opera sobre qualquer reatividade, extrai aspectos relevantes, narra e concilia-os em um espaço metafórico onde tais significados podem ser manipulados como coisas no espaço. A mente consciente é um análogo espacial do mundo e os atos mentais são análogos dos atos corporais.
A consciência opera apenas sobre coisas objetivamente observáveis. [Itálicos adicionados.] *

[ * — Ibid, p. 66.]

Ele leva a visão de Havelock um passo adiante: “Não há, em geral, consciência na Ilíada . . . . Os inícios da ação não estão em planos, razões, e motivos conscientes, eles estão nas ações e discursos dos deuses. Os heróis Ilíacos não tinham egos. *

[ * — Ibid, pp. 69, 72, 73.]

Por que esses povos antigos ainda não eram”conscientes”?
De acordo com Jaynes, foi por causa da estrutura de seus cérebros, que tinha duas “câmaras” distintas. Eles usavam uma só parte para falar, pensar, aprender, etc. A outra era usada para a “voz” dos “deuses”. Em outras palavras, os seres humanos humanos eram informados o que fazer por “vozes” em suas cabeças. “Vozes” disseram-lhes para construir pirâmides e civilizações. Eles tomaram essas vozes como o discurso autoritário de seres divinos, e assim eles obedeceram. Uma pergunta que vem à mente é: O que eles não poderiam fazer? Bem, diz Jaynes, eles não eram capazes de “instrospecção.” (Basta apenas ler os antigos textos Keméticos para saber que ele estava enganado.) E eles não podiam ser “auto-dirigidos”. As vozes da mente bicameral eram uma forma de controle social; A última etapa no desenvolvimento da linguagem, um desenvolvimento que tornou possível a civilização. No estágio bicameral da “civilização”, “a linguagem dos homens envolvia apenas um hemisfério, a fim de deixar o outro livre para a linguagem dos deuses”. *

[ * — Ibid, pp. 103—104.]

Parece que uma das coisas que levou Jaynes ao desenvolvimento de sua teoria foi sua observância de esquizofrênicos. Ele nos diz que as alucinações esquizofrênicas são como as orientações dos deuses na antiguidade. O estresse é a instigação em ambos os casos. Durante as eras da “mente bicameral” o limiar do estresse dos seres humanos era menor, como o dos esquizofrênicos de hoje. *

[ * — Ibid, p. 93

O estresse, diz ele, vem da tomada de decisão, e é isso que causou alucinações dos deuses. Jaynes escreve:

. . . A presença de vozes que tinham de ser obedecidas era o pré-requisito absoluto para a fase consciente em que é o eu que é responsável e pode debater dentro de si, pode ordenar e dirigir, e que a criação de tal eu é o produto da cultura. Em certo sentido, nos tornamos nossos próprios deuses. *

[ * — Ibid, p. 79.]

A teoria de Jaynes é bastante psicológica. A diferença entre seres humanos “conscientes” e “inconscientes “, ou melhor, “pré-conscientes “, reside na estrutura de seus cérebros. Os dois lobos temporais do cérebro bicameral ligados pela minúscula “comissura anterior” através da qual “vieram as direções que construíram nossa civilização e fundaram as religiões do mundo, onde os deuses falavam aos homens e eram obedecidos por serem a volição humana,” * tornaram-se o cérebro “moderno”com os hemisférios direito e esquerdo como nós o conhecemos. O hemisfério esquerdo, de acordo com Jaynes, contém as “áreas da fala”, o córtex motor complementar, a área de Broca e a área de Wernicke.

[ * — Ibid, pp. 104—105.]

Esta última é a “mais indispensável ao discurso normal.” Isto, juntamente com a sua sensação de que o cérebro direito é “em grande parte não necessário,” * levou-o a concluir que o cérebro direito é um remanescente “vestigial” da “câmara” das vozes dos deuses nos tempos antigos. Essas “vozes” que fizeram com que a civilização passada fosse construída eram, afinal, apenas “excitação” no que corresponde à área de Wernicke, um hemisfério no hemisfério direito do cérebro humano contemporâneo.

[ * — Ibid, pp. 101—103.]

Mas mudanças culturais/ambientais deveriam causar alterações fisiológicas no cérebro. A escrita e o comércio interferiam com as “vozes”. Escrever deixou de sublinhar o auditivo, e o comércio significava interação com outros grupos de pessoas que estavam ouvindo “outras” vozes, o que era, no mínimo, confuso. Os deuses também falharam no “caos da revolução histórica”. * O resultado foi a “consciência”. O resultado é também uma contínua valorização da modalidade cognitiva do cérebro esquerdo pelo Europeu.

[ * — Ibid, p. 221.]

Sob a complexidade e a ingenuidade, mesmo a criatividade intelectual da teoria da consciência de Jaynes, são bem visíveis as características do utamawazo Europeu, bem como suas tendências ideológicas: a evolução unilinear, universal, o “progresso,” e a superioridade intelectual da cultura Européia. As diferenças entre as civilizações anteriores e as que vieram mais tarde são entendidas com desdém; “As diferenças contemporâneas entre os hemisférios em funções cognitivas pelo menos ecoam tais diferenças de função entre homem e deus como vistas na literatura do homem bicameral”. *

[ * — Ibid, p. 106.]

Para Jaynes o processo não terminou; não poderia. A “Evolução” não pára; Afinal de contas o “progresso” não é atingido. Essa é a beleza dessas idéias para a mente Européia. E assim ele imagina que nós estamos ainda nas agonias de “transição” do domínio da mente bicameral, ainda lutando contra a autoridade dos deuses, ou as suas “vozes” — embora agora só possamos “ler” as suas vozes (exceto para aqueles de nós que são “esquizofrênicos.”) Jaynes nunca diz em direção a que “nós” estamos nos movendo. Será em direção a um cérebro com apenas um hemisfério [one-hemisphered brain]? A ilusão tornar-se-á então a realidade, e isso é verdadeiramente psicótico. Concordo com Jaynes em um ponto. Nós vemos a mesma coisa, mas a vemos a partir de perspectivas diferentes. A “Ciência” tornou-se secularizada; sua visão do humano, profana. E à medida que isso acontece, os povos (Europeus) procuram pela “autorização” de perda dos deuses passados. *

[ * — Ibid, pp. 439—440.]

Mas, tipicamente, Jaynes falsamente “universalizou” um fenômeno cultural. Ele está descrevendo a ciência Européia e o mal-estar Europeu. Na sua visão, “nós” estamos passando por um estágio necessário na marcha para a “iluminação”, que, se eu interpreto corretamente, resulta quando os seres humanos “percebem” que não há nada mais do que eles mesmos, que eles não podem buscar por nenhuma autorização maior para as suas decisões. Isso leva à desacralização final e total do universo. (Graças a Deus a Europa representa apenas uma pequena minoria do mundo, dada a natureza da concepção Européia do humano!)

Mas há outras visões sobre as modalidades da consciência humana. Erich Neumann oferece uma conceituação influenciada por Jung, até certo ponto reminiscente da distinção entre cérebro-direito/cérebro-esquerdo. Sua distinção é entre “consciência matriarcal” e “consciência patriarcal.” A consciência matriarcal é anterior, está ligada ao “espírito da lua” e ao “tempo da lua”, pois é fundamentada nos ritmos e cíclicos naturais; Ela é intuitiva e torna-se “impregnada” de idéias, ao invés de “desejá-las.” O entendimento nessa modalidade não está divorciado do sentimento. Envolve processos naturais de transformação, de modo que o conhecimento e a compreensão afetam o ser que conhece. Consciência matriarcal também está associada com a calma escuridão da noite que está grávida de crescimento.

A consciência patriarcal se refere à “luz do dia e ao sol”. Ela está associada ao pensamento independente. No entanto, Neumann diz que ela é auto-enganadora [self-deceptive], “interpretando a si mesma como um sistema absolutamente livre.” Ela é “altamente prática”, eficiente e rápida para reagir. Ela sucedeu à consciência matriarcal no desenvolvimento, destacando-se do inconsciente.

Vemos processos de abstração, que auxiliam na livre disposição e aplicação de idéias e . . . levam à manipulação de abstrações como números em matemática e conceitos em lógica. No sentido psicológico, tais abstrações estão no mais alto grau quando sem conteúdo emocional. *

[ * — Erich Neumann, “On the Moon and Matriarchal Consciousness,” in Fathers and Mothers: Five Pages on the Archetypal Background of Family Psychology, Spring Publications, Zurich, 1973, p. 46.]

Na “consciência patriarcal” o conhecedor não é afetado pelo que é conhecido; O conhecedor controla a idéia. Enquanto a consciência matriarcal envolve a “participação afetiva”, “o pensamento abstrato da consciência patriarcal é frio em comparação, pois a objetividade exigida nele pressupõe um distanciamento possível apenas ao sangue frio e à cabeça fria”. *

[ * — Ibid, p. 48.]

Para Neumann, ao contrário de Jaynes, ambas as modalidades representam formas de consciência, mesmo estando ligadas intimamente ao inconsciente. Mas, numa visão Africano-centrada, isso não é negativo, uma vez que nos permite estar em sintonia com um universo no qual participamos como uma forma de ser. Claramente ambas as formas de consciência são necessárias. Elas se complementam. O cérebro inteiro tem duas metades. Talvez a cultura Européia tenha sido moldada por uma consciência Platônica, “patriarcal”, e procura destruir a “consciência matriarcal” por causa da destrutiva natureza de confronto do utamaroho Europeu. A “Consciência matriarcal” representa uma perda de controle na visão Européia. E enquanto luta para ressurgir, até mesmo as feministas Européias lutam contra ela.

Quando Platão deificou a “consciência patriarcal”, ele reificou a “forma” que inibiu a posterior “transformação” (“consciência matriarcal”) do espírito humano. Como resultado, a cultura Européia não permite que seus membros se tornem seres humanos completos (“inteiros”) (o simbolismo de Yurugu [o ser incompleto]). Jaynes pode estar correto, mas apenas com relação ao Europeu. Talvez eles tenham sucesso na eliminação de um dos hemisférios de seus cérebros, ficando portanto para sempre fora de equilíbrio, em um estado de perpétuo desequilíbrio. (Ou será isso, de fato, como eles surgiram?) Esta é certamente uma descrição da cultura.

De acordo com Levy-Bruhl, que ofereceu uma versão anterior da teoria Eurocêntrica, a “lógica” começou com o pensamento “civilizado”, baseado no princípio da contradição. Os “Primitivos” faziam uso de “representações coletivas pré-lógicas.” O modo de participação contradiz a ênfase Européia no reconhecimento de entidades distintas. Na teoria antropológica, esse estilo de pensamento cognitivo tem sido chamado de “primitivo”, “nativo” e às vezes “popular.” Mas será que não estamos realmente lidando com duas visões de mundo diferentes, que, por sua vez, geraram diferentes concepções epistemológicas e ontológicas? De fato, o objetivo desta discussão tem sido o de examinar os aspectos “assumidos” (“aceitos”) [“taken-for-granted” aspects] da cultura ou “mente” Européia, a qual é, afinal, um fenômeno minoritário [minority phenomenon] *, de modo que eles não possam mais ser considerados como sendo universais: duas (ou mais) visões de mundo, ao invés de dois estágios de desenvolvimento do pensamento humano como Levy-Bruhl, Julian Jaynes, e inúmeros outros teóricos Europeu os têm.

[ * — Hall, p. 191.]

A metafísica Africana, as “culturas majoritárias” Nativo-Americanas e Oceânicas (é seguro generalizar aqui), todas pressupõe uma unidade fundamental da realidade baseada na inter-relação orgânica do ser; Todas se recusam a objetivar a natureza e insistem na espiritualidade essencial de um verdadeiro cosmos. O que se tornou conhecido como o ponto de vista “científico” foi realmente a visão Européia que assumiu uma realidade excluindo influências psíquicas ou espirituais sobre o ser físico e material. Essa visão também resultou na eliminação de um verdadeiro conceito “metafísico” e de uma autêntica cosmologia. David Bidney diz que,

Levy Bruhl. . . exibiu um preconceito etnocêntrico ao assumir que apenas a posição positivista e antimetafísica corrente em seu tempo era lógica e científica e que os postulados metafísicos eram à priori pré-lógicos e pré-científicos. *

[ * — David Bidney, “The Concept of Meta-Anthropology and its Significance for Contemporary Anthropological Science,” in Ideological Differences and World Order, F.S.C. Northrop (ed.), Yale University Press, New Haven, 1949, p. 325.]

Dessacralização da Natureza:
Desespiritualização do Humano

Desde o início, deixe-me dizer que, ao discutir essas concepções Européias, teremos um problema com a terminologia de gênero. Em primeiro lugar, é estranho, mas importante, não usar o termo “homem” para referir-se ao “humano” como o Europeu tem feito em discurso. Em segundo lugar, a confusão é ainda mais complicada pelo fato de que ao discutir o Europeu, estarei falando sobre os homens Europeus na maior parte, porque Platão, e aqueles que seguiram em seu rastro, ignoraram as mulheres e não as incluíram em seus auto-conceitos de “filósofo”, “rei”, ou “o Europeu”, e é por isso que eles poderiam se referir coletivamente como “homem Europeu.” Em um sentido estamos falando de idéias que foram efetuadas e foram adotadas por mulheres, crianças, e homens Europeus. A questão, então, torna-se complicada, e o leitor deve indultar-me enquanto tento lidar com esses problemas gerados pela visão de mundo Européia.

A forma como o Europeu é ensinado a ver a natureza e a sua relação com ela é particularmente importante, porque é, em parte, as consequências desta concepção que são mais distintivas da cultura Européia. A ontologia Européia gera uma concepção da natureza e do humano, e da realidade.

Qual é a idéia implícita da natureza e seu significado que emerge dos diálogos de Platão? Alvin Gouldner diz:

Na opinião de Platão. . . Os fins não residem na natureza, mas nas Idéias universais ou Formas eternas que transcendem a natureza, nas quais a natureza apenas “participa” imperfeitamente e fora das quais ela é inerentemente desordenada. Do seu ponto de vista, portanto, a natureza não pode ser controlada pela influência externa de algum objetivo ou projeto regulador.

[ * — Gouldner, p. 191.]

Em outros lugares Gouldner fala sobre as idéias daqueles que viriam a reestruturar a sociedade:

Ao conceber toda a natureza como intrinsecamente hostil ou indiferente à mente — tendo, portanto, uma disposição permanente para a desordem — as mudanças propostas pelo planejador são consideradas, feitas, e mantidas apenas contra a natureza, não com a sua cooperação. Do ponto de vista de Platão, a mente e a razão, e portanto a ordem, não estão na, mas acima da natureza, e precisam dominá-la. *

[ * — Ibid, p. 121.]

A natureza emerge como o mundo do devenir [world of becoming], o mundo sensível de uma ordem inferior ao “ser” e, portanto, para ser sempre controlado, condicionado e moldado de acordo com as idéias absolutas e perfeitas que emanam do “Mundo do Ser” [“World of Being”]. E o ser humano, na medida em que faz parte dessa natureza imperfeita, que apenas “imita” mas não pode “ser”, também deve ser controlado e moldado. *

[ * — Ibid, p. 306.]

O que começa a emergir é uma visão da natureza e do ser humano que os coloca em oposição uns aos outros, em virtude do fato de que só a parte do ser humano que é diferente da natureza (a racional) é superior a ela. Essa idéia da relação basicamente hostil entre “humano” e natureza, na qual o humano procura continuamente controlar a natureza é caracteristicamente Européia. Ela perpassa a cultura Européia de forma linear (num sentido histórico cronológico) e colateralmente ou sincronicamente, na medida em que efetuou o curso do desenvolvimento Europeu e informou o comportamento coletivo e as construções sociais da cultura.

A visão Cristã da natureza exibe novamente a influência da idéia Platônica da natureza desordenada e caótica, até mesmo “hostil”, que deve ser controlada. O “padrão” ou “projeto” (padrão) ao qual Gouldner se refere, é o que o Cristão usa para medir a moralidade de outros povos e moldá-los. Katherine George comenta a visão Cristã da natureza como evidenciada nos relatos de terras “descobertas” recentemente no século XVI:

A atitude dominante nesses relatos concebia a civilização — a civilização Greco-Romana em particular — como uma disciplina essencial imposta às irregularidades da natureza; uma vez que a natureza — natureza cega — sem restrição e orientação, corre para monstruosidades, assim cultura sem civilização corre para desordem e excesso. *

[ * — Katherine George, “The Civilized West Looks at Primitive Africa: 1400-1800,” in The Concept of the Primitive, Ashley Montagu (ed.), The Free Pree, New York, 1968, pp. 178, 182.]

Natureza crua, natureza “caída”, que para o Grego era desordem, é para o Cristão ainda pior: é pecado. *

[ * — Ibid, pp. 178, 182.]

Rheinhold Niebuhr tenta apresentar uma explicação mais “moderna” dos conceitos Cristãos, uma interpretação mais filosófica e politicamente mais atraente em termos dos estilos-de-vida Europeus contemporâneos do que aquela oferecida pela herança escolástica da Igreja. Os resultados de uma mente astuta que se esforça para fazer das idéias Cristãs algo distinto e simultaneamente apropriado ao utamawazo Europeu e para resgatar a Igreja das tendências mais bárbaras da história Européia são muito interessantes. Niebuhr está lutando uma batalha perdida, pois separar a ideologia Cristã do imperialismo cultural Europeu seria forjar uma declaração religiosa inteiramente nova. Isto, é claro, ele não pode fazer, já que está empenhado em demonstrar o modo como suas interpretações filosóficas estão enraizadas nas origens da idéia Cristã. (Inconscientemente, talvez, seja precisamente a herança Européia que ele quer reivindicar).

Embora o estilo e a sutileza de Niebuhr façam com que suas idéias pareçam estranhas no início, é possível reconhecer, se soubermos olhar, uma interpretação caracteristicamente Européia da relação entre “humano” e natureza:

A existência humana distingue-se obviamente da vida animal pela sua participação qualificada na criação. Dentro dos limites ela rompe as formas da natureza e cria uma nova configuração de vitalidade. Sua transcendência sobre o processo natural oferece-lhe a oportunidade de interferir com as formas estabelecidas e as unidades de vitalidade como a natureza as conhece. Esta é a base da história humana, com a sua progressiva alteração das formas, em distinção da natureza que não conhece história, mas apenas uma repetição infinita dentro dos limites de cada forma dada…. Uma vez que o homem é profundamente envolvido nas formas da natureza por um lado, e é livre delas por outro; Uma vez que ele deve considerar as determinações de sexo, raça e (em menor grau) geografia como forças de destino inelutável, mas pode, no entanto, arranjar e reorganizar as vitalidades e unidades da natureza dentro de certos limites, o problema da criatividade humana está obviamente cheio de complexidades. *

[ * — Rheinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, Vol. I, Charles Scribner’s Sons, New York, 1937, pp. 26-27.]

E finalmente Niebuhr diz,

Natureza e espírito possuem recursos de vitalidade e forma. Os recursos da natureza podem ser mais negativos. As vitalidades da natureza e suas formas podem ser os pressupostos indispensáveis da criatividade humana e não seus agentes ativos; mas eles não podem ser desconsiderados. . . As vitalidades e unidades da natureza podem desempenhar um papel mais negativo na destrutividade humana do que as do espírito. O impulso natural do sexo é, por exemplo, uma condição indispensável de todas as formas superiores de organização familiar, e é a força negativa das aberrações destrutivas do sexo. Da mesma forma, a coesão natural da tribo e da raça é o fundamento de criações políticas superiores, bem como o determinante negativo da anarquia inter-racial e internacional. *

[ * — Ibid, p. 26.]

Apesar das qualificações contínuas de Niebuhr, a visão da relação entre “humano” e natureza que ele oferece é ideologicamente consistente e característica do pensamento Europeu. O relacionamento com a natureza é de arrogância e exploração, em oposição a de admiração, respeito, e harmonia. Em suma, a natureza não é de confiança. O humano só confia em suas faculdades racionais que não são naturais, mas “culturais.” Termina-se em conflito com a própria natureza, que representa o círculo desvalorizado da repetição em oposição à linha valorizada do progresso histórico. A que categoria pertence “deus”?

Os conceitos de natureza, de realidade, de “humano” e de verdade são intrinsecamente ligados um ao outro e inextricavelmente entrelaçados na “especialidade” ou, visto de outra maneira, na “alteridade” da visão de mundo Européia. É uma visão particular da natureza que permite a ciência Européia, uma “ciência” que se baseia numa epistemologia que envolve a separação do ser humano de si mesmo para isolar e valorizar a aparentemente peculiar capacidade humana de racionalizar. Portanto, como o conceito de humano se torna limitado, o mesmo ocorre com o conceito de realidade. Theodore Roszak coloca ênfase em Francis Bacon e René Descartes para esta tendência Européia, enquanto eu comecei com uma ênfase em Platão.

. . . A dominação permanece como objetivo; Bacon nunca se desvia de sua convicção de que “o comando sobre as coisas naturais — sobre os corpos, a medicina, os poderes mecânicos e outros infinitos deste tipo — é o fim adequado e definitivo da verdadeira filosofia natural”. *

[ * — Roszak, Where The Wasteland Ends, p. 164.]

A obra de Roszak critica a “objetivação”, o “reducionismo”, a “alienação” e o poder no pensamento Europeu de uma maneira sem paralelo:

. . . O que a epistemologia Baconiana-Cartesiana fez foi conferir alto status filosófico a esse ato de alienação, insistindo que ele fornecia nosso único acesso confiável à realidade. Muito mais diretamente do que encorajou o comportamento insensível, esse enobrecimento da psique alienada degradou progressivamente cada outra forma de consciência que os seres humanos possuem.

Uma vez que elevamos tal modo psíquico à mais alta dignidade cultural, identificando-a como a única maneira intelectualmente produtiva de abordar o universo. . . Haverá conhecimento, poder, domínio sem limites. Estamos licenciados para desvendar todos os mistérios e para refazer o mundo — incluindo a própria natureza humana. *

[ * — Ibid, pp. 170, 173.]

A visão de Roszak sobre o “modo psíquico” que torna possível a ciência Européia é radicalmente diferente da de Eric Havelock, que elogia Platão por introduzir uma nova modalidade. Na verdade, foi Platão, e outros que o seguiram, que lançaram as bases sobre as quais Bacon e Descartes poderiam erigir suas teorias. Roszak fala de Bacon e seus discípulos:

Eles haviam encontrado a grande verdade: rompa relações com o meio ambiente, estabeleça entre si e ele a dicotomia alienante chamada objetividade, e você certamente ganhará poder. Então nada — nenhum senso de comunhão ou intimidade pessoal ou pertencimento forte — impedirá o seu acesso aos mistérios delicados do homem e da natureza. Nada inibirá sua capacidade de manipular e explorar. Este é o mesmo poder que ganhamos sobre as pessoas quando nos recusamos a honrar sua reivindicação de respeito, compaixão, amor. Eles se tornam para nós meras coisas sobre as quais exercemos poder. Entre nós e eles não há nenhum comércio dos sentimentos, nenhuma troca de sentimentos ou empatia. *

[ * — Ibid, p. 168.]

Roszak declarou quase poeticamente o que se tornou a vanguarda da tese deste estudo: que a epistemologia Européia está simbioticamente relacionada ao imperialismo Europeu. A objetivação do humano e do natural permite tratar ambos como “coisas.” Povos e culturas que se recusam a considerar a si mesmos e a natureza como sem-espírito [spiritless] são considerados “estúpidos.”

O conceito de “reducionismo” de Roszak explica por que a vida deve ser retirada da natureza para facilitar o método:

O reducionismo flui de muitas fontes diversas: de um desejo esmagador de dominar, do esforço apressado de encontrar explicações simples e abrangentes, de um desejo louvável de desinflar o preguiçoso obscurantismo da autoridade religiosa; mas sobretudo de um sentido de estranhamento humano da natureza que só poderia aumentar de forma excessiva à medida que o compromisso da sociedade Ocidental com a visão única se tornasse cada vez mais exclusivo. Com efeito, o reducionismo é o que experimentamos sempre que a consciência sacramental é afastada pela idolatria, pelo esforço de transformar o que está vivo em uma mera coisa. *

[ * — Ibid, p. 248.]

Ao discutir a cosmologia Européia, Arthur Lovejoy isola certas idéias ou princípios que, na sua opinião, têm sido fundamentais para a filosofia Européia. Essas idéias encontram suas origens em Platão e podem ser traçadas através de suas várias expressões na história subsequente do pensamento Europeu. Ele conclui que, basicamente, três idéias estão tão intimamente associadas na história intelectual Européia que elas juntas produziram “uma das principais concepções do pensamento Ocidental”; Expressas em um único termo, elas são representadas por (1) a “Grande Cadeia do Ser” [“Great Chain of Being”]. *

[ * — Lovejoy, The Great Chain of Being, p. 21.]

Dois dos aspectos geradores desta idéia tomada isoladamente têm sido, o “princípio da Plenitude”:

. . . Não só para a existência deste mundo, mas para cada uma de suas características, para todo tipo de ser que este contém— em rigor, de fato, para cada ser particular — deve haver uma razão última, auto-explicativa e “suficiente”.

. . . e (2) o “Princípio da Continuidade”:

. . . Não há “saltos” repentinos na natureza; infinitamente diferentes como as coisas são, elas formam uma seqüência absolutamente suave, em que nenhuma ruptura parece confundir o desejo de nossa razão para a continuidade em toda parte. *

[ * — Ibid, p. 327.]

Estes culminaram em “duas grandes ontologias racionalistas do século XVII” e no argumento para o otimismo. Segundo Lovejoy, a idéia de uma “escala ontológica” em combinação com as hierarquias zoológicas e psicológicas de Aristóteles produziu um terceiro princípio de “gradação unilinear” que foi enxertado nos dois princípios de “plenitude” e “continuidade”. *

[ * — Ibid, p. 59.]

Lovejoy se preocupa em traçar as “fontes históricas” dessas idéias cosmológicas e ontológicas. Ele diz que os princípios subjacentes à concepção da Cadeia do Ser e seus grupos de idéias relacionados — “plenitude”, “continuidade,” e “gradação” — devem sua gênese à Platão e Aristóteles e sua sistematização aos Neoplatônicos. ” *

[ * — Ibid, pp. 183, 63.]

A escala do ser, como implícita no princípio da expansividade e auto-transcendência do “Bem”, torna-se a concepção essencial da cosmologia Neoplatônica. *

[ * — Ibid, pp. 183, 63.]

Diferença de tipo implicava automaticamente uma diferença de valor, que gerou “diversidade de hierarquia”. *

[ * — Ibid, pp. 183, 63.]

À medida que avançamos em direção a um modelo teórico para a explicação do imperialismo cultural Europeu, Lovejoy nos deu motivos para reflexão. Claramente uma das características marcantes da visão de mundo Européia é seu tratamento da “diferença”, e talvez o que se desenvolveu foi um utamaroho que relacionava-se à “diferença” percebida intensamente, xenofobicamente e agressivamente defensivo. Essa relação pode ter sido causada e efetuada por uma visão-de-mundo que dimensionava a diferença em termos de valor relativo: uma asili que exige poder. Acompanhado pelo modo de objetivação, isso estimula uma ideologia e um comportamento político que permite que os Europeus se sintam justificados em tratar os “diferentes” povos como objetos desvalorizados. Uma vez que a visão-de-mundo tem força ideológica, outras visões de mundo eram (são) ameaças políticas e, portanto, é necessária uma agressão cultural pela qual a visão-de-mundo Européia seja imposta a povos “diferentes”. Este modelo teórico será reiniciado ao longo deste estudo. Seu principal impulso é a insistência na relação íntima e causal entre (utamaroho), ontologia, eidos, epistemologia (utamawazo) e comportamento político/cultural na experiência Européia.

Lovejoy diz que Aristóteles, em De Anima, sugere um arranjo hierárquico de todos os organismos, uma idéia que teve uma grande influência na filosofia subseqüente assim como na história natural. A hierarquia era baseada nos “poderes da alma” possuída por um organismo: os das plantas eram nutritivos, os do “homem” eram racionais. Cada organismo possuía os poderes daqueles abaixo dele na escala, bem como seu próprio “poder” adicional e definitivo.*

[ * — Ibid, pp. 58-59.]

Em última instância, isso resulta em um universo que constitui uma hierarquia com os mais “naturais” dos seres ocupando as posições inferiores de classificação e os mais “espirituais” — Deus e os anjos — como os seres mais elevados e “superiores.” O humano é único, por ser ao mesmo tempo natureza, carne, e espírito e, portanto, entre os seres (animados), ele é o mais “racional” e, por isso, o “mais elevado.” O uso do termo “espírito” é um tanto problemático. Niebuhr, Hegel, e Aristóteles utilizam-no de modo muito diferente do meu uso do termo. A utilização por eles conota o intelecto e o racional, como oposto à natureza. Em minha opinião o espírito é a natureza, e humano, assim como “supranatureza” [“supernature”]. Ele é o metafísico. É responsável pelo sentido moral, comprometimento, valor, e emoção humanos: pela criatividade e cultura humanas. Ele constitui o substrato a partir do qual o intelecto nasce e pelo qual este é devidamente fundamentado.

O Platonismo, a teologia Cristã e a cosmologia da Cadeia do Ser contêm uma concepção do ser humano como não estando em casa no mundo natural. Eles não estão “em paz” consigo mesmos por causa da natureza “dualista” — a coexistência na pessoa de duas essências conflitantes; “a carne e o espírito.” Lovejoy diz, do conceito de lugar do ser humano na natureza gerado pela idéia de “Cadeia”;

. . . despedaçado por desejos e propensões conflitantes; como um membro de duas ordens do ser ao mesmo tempo, ele vacila entre ambas, e não está completamente em casa em nenhuma. Ele tem portanto, afinal, uma espécie de singularidade na natureza; mas é uma singularidade infeliz. Ele é, em um sentido no qual nenhum outro elo na cadeia é, um estranho monstro híbrido; e se isso lhe dá uma certa sublimidade patética, também resulta em incongruências de sentimentos, inconsistências de comportamento e dispatias entre suas aspirações e seus poderes que o tornam ridículo. *

[ * — Ibid, p 199.]

E quando as entidades “espirituais” são removidas do quadro — como costuma ser uma vez que a cosmologia é construída — o que resta é uma hierarquia com seres humanos no topo olhando para baixo sobre a natureza (seu próprio reino especial). Lovejoy cita um livro de filosofia escolástica da Idade Média: “Como o homem é feito por causa de Deus, ou seja, para que o sirva, assim é o mundo feito por causa do homem, para que o sirva”. *

[ * — Ibid, p. 187.]

Uma vez que “deus” é postulado para dar a impressão de prioridade espiritual e o sentimento de satisfação intelectual que chega à mente Européia a partir de um primeiro princípio absoluto, “ele” é eliminado e, para todos os efeitos práticos, o ser humano se torna esse deus. Page duBois diz,

deve ser lembrado que não só bárbaros [barbaroi], os estrangeiros foram considerados por Platão como sendo privados da capacidade de raciocínio. Mulheres e escravos, assim como animais, faziam parte de uma “cadeia” que descendia da Idéia do bem, de deus. A hierarquia que Platão fixou entre os tipos durou por muitos séculos e ainda opera no discurso Ccidental sobre a diferença. . .

A clarificação de idéias de superioridade e inferioridade em termos de diferença sexual, racial, e de espécies é um passo importante na história da filosofia Ocidental e das relações sociais de dominação e submissão para os que seguem a tradição. *

[ * — duBois, p. 13.]

A concepção Européia da natureza, as conseqüências cosmológicas dessa concepção e o lugar que o ser humano tem nesta cosmologia são ingredientes significativos da mitoforma Européia [European mythoform]. Aqui são levantadas várias questões ontológicas críticas que se relacionam com o pensamento, o comportamento e o valor (ideologia) Europeus. Os Europeus assumem um lugar muito especial para “si” no universo e, ao mesmo tempo, sentem-se “inseguros” nesse universo. Se há algo de “natural” neles, isso é oposto e está em conflito com o que é considerado a parte mais valiosa deles. Essa linha de pensamento (e deve-se levar em conta que este é um dos pressupostos mais profundos, mais conscientes — isto é, reflexivos — e inconscientes da crença Européia) tem várias implicações culturais. Em primeiro lugar, o Europeu atribui à abstração a “prioridade do homem” no universo e, ao longo da história da civilização Européia, tem havido a tendência de traduzir essa idéia concretamente na prioridade do “homem” Europeu no universo dos “homens” (humanos). Enquanto outras criaturas “não-racionais” existem para servir o “homem”, outros povos “menos racionais” existem para servir ao “homem” Europeu (e as mulheres, é claro, devem servi-los, já que elas são os menos racionais dos Europeus). Este tema nas suas formas mais flagrantes é pejorativamente referido no linguajar contemporâneo como pensamento “racista”, e caracterizado como uma aberração de mentes “ilógicas”, num esforço para separá-lo do melhor da tradição Européia. Mas, ao contrário, tal pensamento é “normal”, até mesmo compreensível e bastante “lógico”, se aceitarmos os dados do utamawazo Europeu.
O argumento seria algo assim: O “homem” Europeu é o mais racional dos povos. É dentro dele que o natural e o patológico são melhor controlados. Os outros povos estão mais próximos dos animais na Cadeia [hierarquia]. O Europeu, portanto, serve ao plano racional de seu deus guiando e controlando outros povos. Os presidentes Americanos sempre falam em termos da missão Americana no exterior ser a de trazer “liberdade” a todos os povos. Os revolucionários Anti-Americanos são sempre equiparados à “barbárie”, enquanto a América é vista como a defesa da “civilização.” Estes termos e argumentos são todos baseados na mesma mitoforma.

Vimos que a concepção Européia é aquela de seres humanos em guerra consigo mesmos e com seu ambiente natural. Este sentimento é ao mesmo tempo reflexivo e produtivo da “vontade-de-poder” [“will-to-power”] e do desejo de controlar a natureza e outras pessoas e o que é natural (emocional) em si. Eles não têm lugar em um relacionamento harmonioso com seu ambiente, uma vez que suas concepções não lhes permitem experimentar a paz que essa relação oferece. Niebuhr diz que a “falta de moradia essencial do espírito humano é o fundamento de toda a religião” [the “essential homelessness of the human spirit is the ground of all religion”]. *

[ * — Niebuhr, p. 14.]

O que acontece quando essa religião é inadequada? Incapaz de alcançar a paz e a segurança da espiritualidade, o Europeu procura a realização na vontade-de-poder [will-to-power], em “domínio sobre”, ao invés de em “harmonia com.” Seu efeito sobre o mundo é de discordância. As ambições imperiais e as estruturas que elas ditam são a expressão sintomática de uma falta de paz espiritual. Um ser que não está em paz consigo mesmo, que não está em casa no universo, é compelido a romper o que o rodeia — a refazer e controlar esse universo. O Europeu busca a paz na ordem imposta pelo homem, e, é claro, não a encontra. E assim a perseguição imperial continua infinitamente, assim como a busca do “progresso”. Isto, como um mal-estar, encontra suas origens mesmo antes de sua cristalização na cultura Platônica, a qual foi talvez um resultado de um utamaroho latente da “era-do-gelo.” Embora as concepções Platônicas tenham facilitado a institucionalização do utamaroho Europeu e da supremacia Européia no mundo, existem outras expressões “pré” e “não”-Platônicas ” deste mesmo utamaroho na mitologia guerreira e no comportamento da Europa do Norte em sua experiência pré-Cristã . Embora a desvalorização da natureza possa ter sido intelectualizada por Platão, encontramos sua expressão “religiosa” no início do pensamento Hebraico. (Ver Cap. 2.)

A objetificação da natureza é o que permite sua exploração e estupro. Em outras culturas, a natureza é experimentada subjetivamente, assim como outros seres humanos. O Europeu procura a ordem perfeitamente racional — uma ordem que não tem lugar para o natural (como irracional) e isso é a personificação do pesadelo humano. Na maioria das culturas, parece haver uma compreensão intuitiva e sofisticada das implicações da exploração da natureza e da criação de uma relação antagônica entre o ser humano e a natureza. A discussão ecológica contemporânea é lamentavelmente ingênua quando expressa em termos de “detergentes com fosfatos baixos” e reciclagem de papel. As implicações reais para a sanidade ecológica tocam as crenças mais profundas dos Europeus e a base filosófica de sua cultura, como Theodore Roszak aponta em Where the Wasteland Ends. A questão é se é possível para eles alterar seu conceito de natureza e de sua relação com ela. Tal mudança implicaria, obviamente, mudanças correspondentes no conjunto conceitual proposto pela visão de mundo Européia e, portanto, envolveria muitos outros aspectos da cultura e da ideologia Européias com os quais o conceito de natureza se inter-relaciona. (Ver Cap. 2.) O asili da cultura mudaria. A cultura deixaria de existir como é agora conhecida. Seria uma “configuração” diferente com membros diferentes.

Willie Abraham, em The Mind of Africa, sugere que há duas visões principais da natureza humana: Estas são a visão “essencialista” e a visão “científica.” Essas duas visões ajudam a fornecer as bases filosóficas e ideológicas de dois tipos de cultura correspondentemente diferentes. A visão “essencialista” é que “há um elemento constante no homem que é irredutivel, e é a essência de ser um homem.” A civilização Africana, acredita Abraão, é “essencialista na inspiração.” *

[ * — Abraham, The Mind of Africa, p. 42.]

Na visão “científica,” a natureza humana pode ser alterada; O humano pode ser resolvido em elementos; E é possível prever e controlar a reação humana. “A visão científica depende da análise, da desintegração e, em seguida, do controle de variáveis selecionadas”. * Nesta perspectiva, é possível analisar o “material” humano em elementos e depois reorganizá-los de acordo com um princípio dominante desejado.

[ * — Ibid, p. 24.]

Quais são as implicações dessas distinções para a “construção” de modelos culturais? Abraham caracteriza a cultura Européia como “racionalista” (científica), e a cultura Akan (que ele diz ser paradigmática para a civilização Africana), como “metafísica” (essencialista).

O “humanismo” no discurso Europeu é geralmente assumido como representando a abordagem mais elevada e mais politicamente desinteressada ou “universalista” do humano. Na realidade, o “humanismo” geralmente implicou a deificação tipicamente Européia do racional e a ascensão do ser humano à supremacia no universo em virtude de suas faculdades racionais. São as implicações interlocutoras dessa linha de raciocínio que se tornam politicamente significativas. Abraham diz:

. . . . A essência do humanismo consiste na substituição de Deus o criador pelo homem o criador. . . . A cultura na era da iluminação significava cultivar a razão. . . . A idéia subjacente ao humanismo racional é uma idéia racional. Ela já estava envolvida no relato de Aristóteles sobre o homem como animal racional e a teoria política democrática que ele baseou nessa idéia. A idéia é que não podemos pensar que seja acidental que possuamos a razão. . . Para os seres humanos, esta é uma característica definidora. Isto é o que deve ser entendido por considerar a razão uma capacidade, ou uma faculdade, ou uma disposição, ao invés de uma seqüência de atos episódicos.

O culto ao racionalismo está tão profundamente enraizado nas concepções ontológicas e epistemológicas Européias que leva até a uma “ética racionalista”:

Uma vez que as sensibilidades eram consideradas sujeitas à razão. . . a ética e a estética foram aceitas como sendo racionalistas. O ponto culminante disso foi na ética racionalista de Kant, que fundou a validade dos juízos morais e estéticos sobre os comandos da razão.” *

[ * — Ibid, pp. 15-16.]

Isso, é claro, é a elaboração do imperativo Platônico. É o desenvolvimento de um tema. Abraham observa que, na cultura Européia, “a arte é identificada com a realidade, a supernatura [é identificada] com a própria natureza, (e) ideais [são identificados] com meras verdades.” O artista pode não ter sido banido do Estado, mas ao servir o Estado ele/ela veio a aceitar a concepção Platônica da “verdade.” Sua criação começou a refletir a ordem racional. Por outro lado, na teoria Akan do humano, “fatores espirituais são primários,” o que contrasta fortemente com as concepções Européias. Para o Akan, diz Abraham, o ser humano é “um espírito encapsulado, e não um corpo animado, como a história do Gênesis o tem.”*

[ * — Ibid, p. 48, pp. 61, 51.]

Essa concepção da natureza humana vai além da existência tridimensional finita do ser humano concebida na Europa, uma das razões pelas quais os antropólogos Europeus interpretaram errado o conceito Africano de Comunhão Ancestral. Os ancestrais Africanos não são deuses, mas extensões espirituais dos seres humanos na terra, representando uma outra etapa do desenvolvimento humano. Eric havelock discute o modelo Platônico:

As parábolas do Sol, da Linha e da Caverna têm sido oferecidas como paradigmas que iluminarão a relação entre o conhecimento ideal, por um lado, e a experiência empírica, por outro, e nos sugerirão a ascensão do homem através da educação a partir vida dos sentidos para a inteligência raciocinada [reasoned intelligence]. *

[ * — Havelock, Preface to Plato, p. 205.]

Essa metáfora ontológica é tão poderosa que influenciou fortemente a percepção Européia de seu próprio lugar no universo. Isso os permitiu falar de culturas “superiores” e “inferiores.” Na primeira [“superiores”], as pessoas estão mais próximas da “luz” da civilização, enquanto aquelas na última [“inferiores”] se chafurdam na “escuridão” da ignorância, conscientes apenas do que “sentem.” Havelock descreve a visão da humanidade oferecida na República (compare com a descrição anterior de Abraham da concepção akan do ser humano):

Aqui, a concepção dessa autonomia é agora elevada a um plano em que a alma alcança sua plena auto-realização no poder de pensar e de conhecer. Esta é a sua suprema faculdade; Em última instância é sua única [faculdade]. O homem é um “caniço pensante” [“thinking reed”]. *

[ * — Havelock, Preface to Plato, p. 205.]

De acordo com Havelock, essa nova definição da psique humana que Platão procurava encorajar significava não “o fantasma ou espectro do homem, nem o hálito do homem, nem o sangue da sua vida, uma coisa de sentido e autoconsciência”, mas sim “o fantasma que pensa,” que é capaz de “decisão moral” e de “cognição científica” … algo único em todo o reino da natureza. *

[ * — Ibid, p. 197.]

O que é surpreendente, afinal, não é que o Europeu considere o ser humano como sendo único e especial, pois cada categoria de seres no universo é única e especial; Mas antes, é a importância que ele atribui a essa singularidade que é tão distintamente diferente. O modo epistemológico que Havelock descreveu, o qual se tornou característico da cultura Européia, pressupõe um conceito racionalista do humano, cuja função própria não é sentir, mas superar o sentimento com o “pensamento.” O pensamento é propriamente assim chamado quando isolado do sentimento e quando baseado na “objetivação”; Isto é, a separação do “eu” do objeto contemplado. A natureza humana está acima de tudo e é mais propriamente racional. Essa faculdade racional dá ao homem poder e independência. Em as Leis, Platão diz sobre o “homem”:

A natureza humana estará sempre atraindo-o para a avareza e o egoísmo, evitando a dor e perseguindo o prazer sem qualquer razão, e os trará para a frente, obscurecendo o mais justo e o melhor; E assim trabalhando a escuridão em sua alma enfim encherá de males tanto ele quanto toda a cidade. *

[ * — Plato, Laws, Bk. IX:875C. The Dialogues of Plato, trans. Benjamin Jowett, Random House, New York, 1937, p. 620.]

E a definição de Platão da “liberdade” humana seria realizada quando o homem for totalmente “racional”; Isto é, quando a “razão” governa a “paixão.”

O auge da arrogância é abordado na concepção racionalista do ser e do ser humano. O Europeu concebe seu deus em sua própria imagem e não o reverso. Lovejoy diz:
O homem é a criação na qual Deus se torna completamente um objeto para si mesmo. O homem é Deus representado por Deus. Deus é o homem que representa Deus na autoconsciência. O homem é Deus totalmente manifestado.

Os Europeus assumem que seu deus criou o universo de acordo com a lógica do racionalismo científico, sua própria invenção. “A história que devemos revisar é, portanto, entre outras coisas, uma parte da história do longo esforço do homem Ocidental para fazer com que o mundo em que ele vive pareça racional a seu intelecto”. *

[ * — Lovejoy, p. 324.]

A formulação Cristã da tradição Européia também é, como observamos, consistente com essa concepção do ser humano. Lovejoy diz,

O reconhecimento do fato de que o homem é uma criatura que não está em harmonia consigo mesma não foi, naturalmente, devido principalmente à influência da noção de Cadeia do Ser. Outros elementos do Platonismo e, no Cristianismo a radical oposição Paulina da “carne” e do “Espírito,” fizeram dessa teoria dualista da natureza humana uma das concepções dominantes no pensamento Ocidental. *

[ * — Ibid, p. 198.]

Novamente o que vemos é uma concepção consistente da natureza humana reforçada nas diversas modalidades da cultura, tornando possível o colóquio técnico/científico mais bem sucedido em nossa experiência. Friedrich Juenger diz: “Um estado avançado da tecnologia é acompanhado por teorias mecânicas da natureza do homem.” *

[ * — Juenger, The failure of Technology, p. 155.]

Parece que ao subordinar a humanidade existencial à máquina, o Europeu acabaria com uma baixa estimativa do valor humano. E, é claro, paradoxalmente, há em um sentido real e trágico, uma correspondente desvalorização do humano. Mas o Europeu com astúcia política e coerência ideológica lida com esse problema, reduzindo sua estimativa de outras pessoas, racionalizando assim seu comportamento agressivo e degradante em relação a elas. Ao mesmo tempo, a parte dele que poderia ter sido sensível e emocional também foi degradada. Ontologicamente, o Europeu se vê como perfeito através da perfeição da máquina; Ele se torna a máquina perfeita. A máquina que opera eficientemente se torna uma extensão de seu ego. O poder [da máquina] de “fazer” e de “produzir” é o seu poder. Uma vez que todo o conhecimento estava ligado ao objeto, eventualmente isso afetaria as definições ontológicas também: apenas o objeto existia. A epistemologia de Platão é também uma ontologia. O “Verdadeiro” é aquilo que existe — o “Ser.” Tudo o mais é “tornar-se” ou mais tarde “não-ser”. Ironicamente isso levou de uma filosofia “idealista” a uma visão materialista da realidade, já que a única coisa que existia era aquilo que poderia ser objetivado. O Espírito não podia ser transformado em objeto, não podia ser controlado para ser conhecido — não era valorizado. Portanto, não existia. A objetificação levou à materialização onde a matéria, estudada “cientificamente” era tudo o que restava. Mesmo a psicologia e as relações humans seriam governadas por causalidade mecânica e fisiológica (Freud). A objetificação leva a relações inorgânicas.

A concepção racionalista do humano conduz inevitavelmente à máquina e à ordem tecnológica. Uma concepção materialista do humano é o que o racionalismo torna-se na “encenação” existencial da cultura, pois o racionalismo nega a espiritualidade humana. É somente a matéria isolada que, em última análise, tem significado para a mente Européia; é somente a matéria que pode ser feita para parecer perfeitamente racional. Então tudo deve ser materializado. A visão Européia do ser humano envolve o universo perfeitamente ordenado — com o significado e o valor sendo derivados apenas desta base material racionalista. O racionalismo científico leva ao racionalismo tecnológico; organização para a eficiência.

Os comentários conclusivos de Lovejoy apresentam uma das críticas mais devastadoras teoricamente das principais correntes do pensamento filosófico Europeu. Sobre a “ontologia racionalista” da Europa, ele diz:

Na medida em que o mundo foi concebido nessa tradição, ele parecia um mundo coerente, luminoso, intelectualmente seguro e confiável, no qual a mente do homem poderia prosseguir seu negócio de buscar uma compreensão das coisas com plena confiança, e a ciência empírica, uma vez que conhecia antecipadamente os princípios fundamentais com os quais os fatos deveriam, em última instância, concordar e receber um diagrama do padrão geral do universo, poderia saber em linhas gerais o que esperar e até antecipar revelaçõs de observação real. *

[ * — Lovejoy, p. 328.]

Sua estima da idéia da Cadeia de Ser e suas implicações:

A história da idéia da Cadeia do Ser — na medida em que essa idéia pressupunha uma inteligibilidade racional tão completa do mundo — é a história de um fracasso. . . . O experimento, considerado como um todo, constitui uma das mais grandiosas empresas do intelecto humano. . . À medida que as consequências dessa persistente e abrangente hipótese se tornaram cada vez mais explícitas, mais aparentes se tornaram suas dificuldades; E quando elas são totalmente extraídas, eles apresentam a hipótese da racionalidade absoluta do cosmos como sendo inacreditável. . . . Ela conflita, em primeiro lugar, com um fato imenso, além de muitos fatos particulares, na ordem natural — o fato de que a existência como a experimentamos é temporal. Um mundo de tempo e de mudança — isto, pelo menos, a nossa história tem mostrado — é um mundo que não pode ser deduzido nem reconciliado com o postulado de que a existência é a expressão e conseqüência de um sistema de verdades “eternas” e “necessárias” inerente à própria lógica do ser. Como esse sistema só poderia se manifestar em um mundo estático e constante, e como a realidade empírica não é estática e constante, a “imagem” (como Platão a chamou) não corresponde ao suposto “modelo” e não pode ser explicada por ele. *

[ * — Ibid, p. 329.]

Lovejoy vê que o racionalismo admite contradições “racionais” e que, na tentativa de excluir toda “arbitrariedade”, torna-se “irracional”. Ele diz que o mundo da “existência concreta” é um mundo “contingente” e como tal é a negação da “lógica pura.” “A vontade”, diz ele, “é anterior ao intelecto”. *

[ * — Ibid, pp. 332-332.]

Mas se for esse o caso, por que Platão, Aristóteles, e tantos de seus descendentes passam tanto tempo tentando provar o oposto, de fato, vivendo como se o oposto fosse verdade?

Claramente, as formas de pensamento Européias têm funcionado, e elas têm funcionado bem. Os teóricos tinham compromissos ideológicos com uma ordem social que facilitaria o governo de certos tipos de pessoas. O utamawazo descrito neste capítulo tornou-se uma ferramenta. A ferramenta foi tão bem sucedida em um tipo de empresa que suas deficiências em outras áreas poderiam ser facilmente ignoradas. Assim como sua definição do humano era aquela que encorajava a manipulação dos seres humanos, mas ignorava o “humano” ao mesmo tempo. “A utilidade de uma crença e sua validade são variáveis independentes.” O estudo etnológico do pensamento Europeu demonstra o poder de suas concepções ao serviço do utamaroho expansionista, confrontativo e dominador, não sua verdade ou validade universal.

[ * — Ibid, p. 333.]

Modelos Alternativos

Mas isto é, afinal, apenas uma descrição do utamawazo Europeu, e a Europa representa uma fração das criações ideológicas e culturais do mundo. Existem outras possibilidades. Vernon Dixon contrasta as “visões-de-mundo axiológicas” Européia-Americana e Africana da maneira [apresentada] na Figura I: *

[ * — Dixon, “World Views…” p. 57.]

O universo Africano é personalizado, não objetivado. O Tempo é experimentado. Não há infinito abstrato e futuro opressivo; [o Tempo] cresce organicamente a do passado e do presente. O Valor é colocado sobre “ser” ao invés de “fazer.”*

[ * — Ibid, p. 56.]

O universo não é entendido através da interação fenomênica, que produziu poderosos símbolos e imagens, que por sua vez comunicam verdades. A “lógica diunital” indica que no pensamento Africano uma coisa pode ser tanto A como não-A ao mesmo tempo. Embora Dixon não o diga explicitamente, o que ele chama de “lógica diunital” pode ser entendido como o reconhecimento e a afirmação da ambigüidade e multidimensionalidade da realidade fenomenal. Aquilo que é contraditório na lógica Aristotélica Euro-Americana não é contraditório no pensamento Africano. O utamawazo Europeu não pode lidar com paradoxos.
Figura - Marimba Ani - visão-de-mundo - Europeia vs Africana -.jpg

Este não é o lugar para discutir em profundidade as visões-de- mundo das civilizações majoritárias [a maioria]. Entretanto, é apropriado fazer algumas observações óbvias sobre o que os sistemas de pensamento majoritários Africano, Ameríndio e Oceânico têm em comum com a exclusão do pensamento Europeu. Todas as visões mencionadas são de natureza espiritual, ou seja, têm bases espirituais e, portanto, rejeitam o racionalismo e a objetivação como modos epistemológicos valorizados. Obviamente, eles têm aspectos racionalistas e pragmáticos, mas estes não dominam. Essas visões geram uma cosmologia autêntica, a inter-relação de todo ser. Eles rejeitam a lógica Aristotélica como o caminho primário para a verdade última, ao mesmo tempo que reconhecem o modo simbólico e não o literal como apropriado para a expressão do significado. Muito claramente esses povos compartilham uma visão de uma ordem harmoniosa alcançada através do equilíbrio, à medida que procuram entender e manter essa ordem. Nós que fomos educados em sociedades Européias crescemos assumindo que é só com o triunfo sobre tais visões de mundo que começa o “verdadeiro conhecimento.” No entanto, o que deve nos chamar atenção enquanto estudantes de cultura é o fato de que, de todas as civilizações do mundo, a visão-de-mundo do utamawazo Europeu é a mais estranha (visão minoritária); é a  mais evidente em seu materialismo e racionalismo. Max Weber chamou isso de “universalismo”. Por qual lógica a anomalia se torna a norma? Obviamente com a introdução da ideologia e do juízo de valor. Weber confundiu uma agressão cultural esmagadoramente bem sucedida com “universalismo.” A visão de mundo Européia é muito superior às outras mencionadas em sua capacidade de gerar acumulação de material, eficiência tecnológica e poder imperial. Isso não a torna universal.

Felizmente, estes não são os objetivos de toda a humanidade, nem a definição de todos os asilis culturais, e outras visões da realidade levaram muitos a construir modelos diferentes, a prever a possibilidade de novas e diferentes definições funcionais. Já vimos que a teoria Africano-centrada está se movendo em direção a novas definições de ciências. *

[ * — R.A. Schwaller De Lubicz, The Sacred Science, Inner Traditions, New York, 1982, p. 9.]

Em The Sacred Science [A Ciência Sagrada], De Lubicz oferece uma interpretação da antiga filosofia Africana. Ele a chama de “Teologia Faraônica.” É uma “ciência sagrada” porque lida com conhecimento “revelado” e com o “começo das coisas.” Baseia-se numa base irracional e portanto não é uma ciência racional. Ela baseia-se na suposição de uma “origem energética comum a todos os corpos,” uma derradeira fonte espiritual “que sozinha é capaz de animar a matéria,” “uma energia cósmica indefinida.” De Lubicz reconhece duas mentalidades irreconciliáveis baseadas na separação de dois conceitos; Uma que “aponta para uma energia cinética imanente na matéria,” e a outra que “apela para uma energia cósmica indefinida.”

Com o raciocínio absurdo, nossa ciência vê no universo nada mais que um circuito fechado, um aglomerado e uma decomposição da mesma matéria. Tal visão é certamente menos razoável do que a admissão de uma fonte indefinida de energia que se torna matéria, embora esta última solução represente um problema puramente metafísico. A partir daí, é apenas um passo muito pequeno para ver um princípio divino na harmonia do mundo. *

[ * — R.A. Schwaller De Lubicz, The Sacred Science, Inner Traditions, New York, 1982, p. 9.]

As interpretações de De Lubicz e Jaynes são antagônicas: Um [De Lubicz] entende que os antigos Kemitas tiveram uma consciência aumentada; O outro [Juenger] diz que eles não tinham consciência. Isso é por causa da diferença de perspectivas. Na visão de De Lubicz, a mentalidade materialista separa-se do início espiritualista com Xenófanes na escola de filosofia Eleática, em cerca de 530 antes da Era Comum. Com a divisão vem o início da separação entre a ciência e o pensamento e ritual religiosos. Estes são dicotomizados no pensamento Europeu de modo que a “religião racionalista” em Aquino, Leibniz, et al. aborda o absurdo, como grandes mentes engalfinhadas com a busca de provas “científicas” e materialistas da existência do mais espiritual dos seres. Mesmo agora, o pensamento Cristão sofre de uma doutrina que ignora a contradição inerente a uma “fé” baseada na historicidade secular. A ciência Européia ascendeu sobre o fim da religião espiritual.

Nas primeiras escolas daquilo que viria a ser considerado “Filosofia Grega,” os ensinamentos da “Ciência Faraônica” são evidentes e aquilo que continuou a ser desenvolvido como “ciência” foi fortemente influenciado pelo que precedeu em Kemet (antigo Egito). O que começou a mudar, no entanto, foi a abordagem e atitude da objetivação. As novas formas tinham um utamaroho (vida espiritual) diferente. A definição do utamawazo tornou-se crítica. Os Gregos, incapazes de compreender o princípio espiritual na base da “ciência sagrada”, simplisticamente “antropomorfizaram” as verdades cósmicas. Sua resposta religiosa resultou na redução da filosofia Africana, como expressa através dos símbolos dos Neters, através da atribuição de “caráter(es) físico(s) aos princípios metafísicos”.

[ * — Ibid, p. 18.]

De acordo com De Lubicz, aqueles que rejeitaram esta versão adulterada dos antigos mistérios buscaram a verdade através de um racionalismo extremo. Duas tendências se desenvolveram na Europa arcaica: um grupo reivindicou um corpo de ritual religioso cuja base eles não podiam entender; O outro grupo tomou os aspectos científicos pragmáticos e os desenvolveu em uma ciência sem significado. Trata-se da crônica divisão Européia entre fé e razão, que se intensificaria ao longo dos séculos do desenvolvimento Europeu. A doutrina racional levou à negação do divino, do sagrado. No entanto, a racionalidade, por si só, jamais poderia refletir a verdade cósmica e, ironicamente, não poderia dar satisfação intelectual nem satisfação espiritual definitiva. Isso tinha sido entendido em Kemet e ainda é entendido fora da tradição Européia. Como De Lubicz argumenta, sempre deve haver mistério envolvido; “Uma irracionalidade na origem que torna impossível a construção filosófica racional.” *

[ * — Ibid, p. 18.]

É quase como se as pessoas fora da tradição Européia (a maioria) formassem uma coletividade que reconhecesse e estivesse confortável com o minúsculo “mistério” no início e no final. Esta visão origina-se com os primórdios humanos na África. Ayi Kwei Armah escreve em Two Thousand Seasons [Duas Mil Estações]: “Nós não encontramos esse truque de mentira a nosso gosto, o truque de assegurar o conhecimento certo de coisas possíveis de pensar, coisas possíveis de se perguntar sobre, mas impossíveis de conhecer de uma maneira tão definitiva.” *

[ * —Ayi Kwei Armah, Two Thousand Seasons, Third World Press, Chicago, 1979, p. 4.]

Existem vários teóricos cujo trabalho toca a diferença notável entre a visão-de-mundo Européia e aquela da maioria; vários que não presumem que isso seja uma indicação da superioridade da “civilização Ocidental”, isto é, que não abordam a comparação Eurocentricamente. Muitas vezes, tais teóricos irão contrastar as Filosofias Orientais com as da Europa. Fritjof Capra, em O Tao da Física, tenta conciliar a ciência Ocidental e o misticismo Oriental. No processo, ele caracteriza essas duas visões da realidade, assim como Dixon fez com as visões Africana e Euro-americana. Na discussão de Capra, a visão Oriental sai vencedora: a visão Oriental (e Grega antiga) é orgânica. Todas as coisas são percebidas como sendo inter-relacionadas e diferentes manifestações da mesma realidade final. A unidade básica do universo é a chave para a compreensão dos fenômenos, e o objetivo é “transcender a noção do eu isolado e identificar-se com a realidade última.” Espírito e matéria são unidos. As forças causais são propriedades intrínsecas da matéria. *

[ * — Capra, pp. 10-11.]

Chama atenção repetidas vezes o som familiar desta caracterização. Ela é quase idêntica à nossa descrição da visão-de-mundo Africana. Quantos de nós foram obrigados a perguntar, por que a visão-de-mundo Européia é a que difere tão drasticamente daquelas das culturas majoritárias [a maioria]. O Europeu resolve esse problema inventando o conceito de “modernidade”, baseado no progresso.

O que segue é a caracterização de Capra da “filosofia Ocidental”, em contraste com a filosofia “unificadora” das antigas civilizações dos Milésios, Indianos, e Chineses:

A divisão desta unidade começou com a escola Eleática, a qual assumia um Princípio Divino que está acima de todos os deuses e homens. Este princípio foi, em um primeiro momento, identificado com a unidade do universo, mas foi visto mais tarde como um Deus inteligente e pessoal que está acima do mundo e que dirige-o. Assim começou uma tendência de pensamento que levou, em última instância, à separação do espírito e da matéria e a um dualismo que se tornou característico da filosofia Ocidental. *

[ * — Ibid, p. 7.]

Capra, assim como De Lubicz, coloca a origem dessa tendência na escola Eleática. A tendência torna-se um tema dominante e muito mais tarde arraiga-se na filosofia de René Descartes, que divide ainda mais a realidade em “mente” e “matéria.” Os resultados foram a maior fragmentação do universo em que percebemos “uma multidão de objetos e eventos separados.” A mente tendo sido separada do corpo tem a tarefa de controlá-lo. O ser humano é dividido em uma “vontade consciente” que se opõe aos nossos “instintos involuntários.” O Europeu experimenta um universo mecanizado construído para lidar com um mundo composto de partes mutuamente hostis. *

[ * — Ibid, p. 9.]

Isso resulta, como vimos, na alienação da natureza, enquanto que a “física” antes da escola Eleática não incluía uma palavra para a “matéria,” porque via todas as formas de existência como manifestações da ‘física’, dotadas de vida e espiritualidade.” Capra diz que as “raízes da física, como de toda a ciência Ocidental, devem ser encontradas no primeiro período da filosofia Grega no século VI a.C, numa cultura onde a ciência, a filosofia e a religião não estavam separadas”. *

[ * — Ibid, p. 6.]

Ele está quase certo. Mas seu erro torna-se evidente quando visto de uma perspectiva Africano-centrada. Capra deve saber que Táles et al. não cresceu a partir do “nada.” Como George James e outros têm apontado estes “primeiros” Gregos aprenderam a sua “ciência”, filosofia, e religião da civilização da “ciência sagrada.” Naqueles tempos todo mundo viajava para o Egito (Kemet) e estudava lá. A omissão da África feita por Capra nesta comparação de filosofias é flagrante.

Vine Deloria, em God is Red [Deus é Vermelho], contrasta a visão-de-mundo Nativo-Americana, que é “religiosa,” com a filosofia Ocidental como expressa no Cristianismo. Na visão-de-mundo dos Nativo-Americanos, todas as coisas vivas compartilham um criador e um processo criativo e, portanto, se relacionam umas com as outras. * Sua busca espiritual é determinar o relacionamento apropriado que as pessoas têm com outros seres vivos. O universo manifesta energias de vida, “o inteiro fluxo-de-vida da criação.” A pessoa é dependente de tudo no universo para a sua existência. Ao invés da determinação de subjugar a natureza (visão-de-mundo Européia), “a consciência do sentido da vida vem da observação de como os vários seres vivos parecem engrenar e fornecer toda uma tapeçaria”.

[ * — Vine Deloria, God is Red, Delta Books, New York, 1957, p. 102.]

Vimos que os Europeus têm problemas com a diferença (Page du Bois). Esta “visão fragmentada Ocidental é estendida ainda mais à sociedade, que é dividida em diferentes nações, raças, religiões, e grupos políticos.” Isso resulta em conflitos que são uma causa essencial das atuais “crises sociais, ecológicas e culturais” * (Capra).

[ * — Ibid, p. 9.]

Isso em oposição à abordagem Nativo-Americana que diz que “nas diferenças há a força da Criação e que essa força é desejo deliberado do Criador”. *

[ * — Ibid, p. 103.]

Tanto estes como muitos outros escritores falaram sobre a “alienação da natureza” dos Europeus em oposição à ideia de “identidade e unidade de vida” em que o simbolismo expressa a realidade. *

[ * — Ibid, p. 175. ]

Este olhar superficial sobre diferentes sistemas de pensamento é necessário, não apenas para demonstrar a possibilidade e existência de visões-de-mundo alternativas, mas também para chamar a atenção para o chauvinismo nas interpretações Européias dessas visões-de-mundo. Vimos repetidamente que as definições epistemológicas e ontológicas Européias são colocadas, pelos teóricos Europeus, no contexto de desenvolvimento intelectual e cognitivo “avançado,” em comparação com o que eles chamam de pensamento “antigo”, “primitivo,” ou “pré-científico.” O que essa interpretação faz é excluir a viabilidade de uma definição alternativa da realidade, na medida em que esses mesmos teóricos representam uma cultura agressiva bem-sucedida que tem os meios para impor suas interpretações a outras.
Permitam-me lembrar enfaticamente que essa imposição foi feita ao equiparar “Europeu” com “moderno” ou “científico” e todas as outras culturas com “pré-Europeu” ou “primitivo.”

De acordo com Henri e H.A. Frankfort:

Os antigos, como os selvagens modernos, viam o homem sempre como parte da sociedade, e a sociedade, como imbuída na natureza e dependente das forças cósmicas. Para eles, a natureza e o homem não se opunham [um ao outro] e, portanto, não precisavam ser apreendidos por diferentes modos de cognição. . . fenômenos naturais eram regularmente concebidos em termos de eventos cósmicos. . . a diferença fundamental entre as atitudes do homem moderno e a do homem antigo em relação ao mundo circundante é esta: para o homem moderno e científico, o mundo fenomênico é, antes de tudo, um “isso” [“it”]; enquanto para o homem antigo — e também para o primitivo — [o mundo fenomênico] é um “Tu” [“Thou”]. *

[ * — Frankfort and Frankfort, p. 4.]

Os Frankforts camuflaram seu nacionalismo cultural em termos universalistas. (Não é de admirar que não exista um “deus moderno” para os Europeus). Neste estudo, fizemos da cultura Européia o foco, e, portanto, interpretações como estas tornam-se dados etnográficos a serem explicados em termos da asili Européia. Eles nos permitem compreender a natureza do utamawazo e utamaroho Europeus. A questão passa a ser a do por que é necessário que os Europeus se vejam numa posição evolucionária superior em relação a outros eus culturais. Continuaremos a abordar esta questão e outras nos capítulos que se seguem.

O Caráter do Utamawazo Europeu
Não devemos deixar esta discussão com a impressão de que o pensamento Platônico conduziu a mudanças vastas e imediatas na natureza da cultura Européia. Para começar, não havia, em certo sentido, nenhuma “Europa” em seu tempo. Mas em outro sentido, o que nós identificamos como a asili Européia, a semente da cultura, já tinha sido plantada. A plantação desta semente teve que ter tido lugar nos primeiros dias do desenvolvimento tribal Indo-Europeu, onde já havia um utamaroho muito definido, ou mesmo mais cedo com os primeiros homosapiens a habitar as estepes da Eurásia e a região do Cáucaso por um tempo suficiente para se tornaram “não-Africanos.”

Isto significa que o trabalho de Platão foi ainda mais importante no processo de definição do utamawazo, porque ele tinha sido prefigurado no germe da cultura, necessariamente se a asili viria a ser realizada. Significa também que, à medida que a cultura, por meio de seus membros, lutava para assumir uma definição particular, ela estava se desenvolvendo de acordo com um código já existente, um tanto no sentido em que consideramos uma determinada combinação de genes como determinante de uma forma humana particular. A semente luta para se desenvolver. O germe insiste em cumprir seu papel de formulador. A história Européia é uma história de sangrentas guerras e batalhas internas que lutam para manter um caráter particular e eliminar influências opostas: “hereges,” “infiéis,” “bárbaros.” É uma história de comportamento agressivo em relação a outras culturas. Toda diferença ameaça a realização da asili [Européia]. É como a luta de uma criança para nascer. A batalha é travada porque a asili existe, e o pensamento Platônico é tão significativo (determinante) porque se adequava à asili. Sua teoria epistemológica ajudou na formulação de um utamawazo que complementasse a asili.

Com Platão, a epistemologia tornou-se ideológica. Além do mais, ao contrário do que alguns alegaram, as concepções platônicas não tornaram o conhecimento acessível às massas por meio da sua dessacralização. O que ele fez foi assegurar que, pelo menos até a “Galáxia de Gutemberg”, os poucos não teriam nenhuma ameaça dos muitos, porque os muitos não tinham acesso à vida intelectual do Estado.

[ * — Jennifer Brown, “Plato’s Republic as an Early Study of Media Bias anda Charter for Prosaic Education,” American Anthropologist, Vol. 74, No. 3, 1973, p. 673 ]

Isso se deveu à ascendência do modo letrado associado à falta de tecnologia de impressão e de produção em massa, bem como ao fato de que apenas alguns poucos privilegiados eram treinados para serem “letrados” nesse sentido. O plano de Platão era infalível; Porque mesmo quando as massas Européias ganharam acesso séculos mais tarde, os mecanismos de controle eram tão bem estruturados que as suposições que eles tinham de assimilar para serem considerados “letrados” garantiam que eles pensariam como ele planejara. Era como se sua mão alcançasse séculos de existência cultural, à medida que o estilo cognitivo (utamawazo) Europeu se tornou uma extensão do Platonismo. Não só todos os intelectuais Europeus, mas todos os intelectuais seriam treinados na academia (legado de Platão), um testemunho do sucesso do imperialismo cultural Europeu. A Academia preservou uma tradição cultural, uma raça de pessoas, e uma sociedade dominante. Não importa as controvérsias mortíferas e as então-chamadas revoluções políticas que podem ocorrer, a Academia garante que a infra-estrutura ideológica permanecerá intacta.

O tema emergente é o poder. O que começa a se desenvolver a partir dessa discussão inicial é um retrato do utamawazo Europeu como resposta a uma asili que busca poder. Uma definição particular de poder se apresenta na busca pela predileção, temperamento, e necessidade Europeus. O poder é aqui definido, não como o “poder-de-fazer,” que resulta da doação e recebimento de energia das forças no universo e da interação com essas forças à medida que elas se manifestam nas várias modalidades do ser natural; Em vez disso, [o poder] é definido como “poder-sobre” e é predicado na, ou melhor, origina-se na separação. Este é o fanático objetivo Europeu. O “Poder-de-fazer” busca equilíbrio e harmonia. O “Poder-sobre” funciona apenas através da modalidade de controle. Ele impede a relação cósmica, comunal ou simpática. É essencialmente político e materialista.

A asili-semente da cultura prefigura, em seguida dita, o desenvolvimento de estruturas, instituições, “arranjos” * que facilitam a realização do poder-sobre-o-outro. As formas que são criadas dentro da experiência cultural Européia podem então ser entendidas como mecanismos de controle na busca do poder. Isso é o que todas elas têm em comum. Essa é a chave para sua explicação cultural. A base ideológica da cultura é a vontade-de-poder [will-to-power].

[ * — Armah, p. 321.]

O utamawazo ou pensamento culturalmente estruturado reordena o universo em relações que “preparam-no” para a ilusão de controle. A separação deve vir primeiro. A asili força sua própria auto-realização através da estrutura cognitiva do utamawazo da seguinte maneira:

Dicotomização. Todas as realidades são divididas em duas partes. Isto começa com a separação de si do “outro”, e é seguido pela separação do eu em várias dicotomias (razão/emoção, mente/corpo, intelecto/natureza). O processo continua até que o universo seja composto de entidades diferentes.

Relações Oposicionais, Confrontantes, Antagonistas. O eu “conhece a si mesmo” porque é colocado em oposição ao “outro,” que inclui a parte natural e afetiva do eu. Essa “auto-percepção” é a origem da consciência Européia. O “outro” — aquilo que é percebido como sendo diferente do eu —  é ameaçador, estabelecendo, portanto, uma relação antagônica entre todas as entidades que são “diferentes.” Isto apresenta um princípio de relações de confronto em todas as realidades. Na verdade, a própria cognição é tornada possível através da confrontação.

Segmentação Hierárquica. O processo mental de separação e separação original atribui valor qualitativamente diferente (desigual) às realidades opostas das dicotomias e uma estratificação de valor para todas as realidades dentro de um dado conjunto ou categoria. Esse processo de avaliação e desvalorização é acompanhado pelo de segmentação e compartimentalização de entidades derivadas independentemente. O efeito é eliminar a possibilidade de uma relação orgânica ou simpática, estabelecendo, assim, bases para o domínio da forma ou fenômeno “superior” sobre o que é percebido como inferior: a relação de poder. Abstraídas do todo maior, essas realidades opostas nunca podem ser percebidas como complementares ou interdependentes.

Pensamento Analítico, Não-Sintético. A tendência à divisão e ao segmento torna o Europeu confortável com a modalidade analítica na qual as realidades são despedaçadas para serem “conhecidas.” Este é um processo essencial em todos os sistemas cognitivos em um nível de compreensão. Mas uma vez que a inter-relação orgânica desestimula os padrões de pensamento hierárquico necessários para a confrontação, o controle, e o poder, torna-se impossível, dentro dos parâmetros do utamawazo Europeu, compreender o todo, especialmente como uma realidade cósmica. Culturalmente esta tendência inibe o movimento para um nível mais elevado, mais sintetizador de compreensão. É no nível da síntese que a oposição seria resolvida e, dadas as premissas fundamentais desse sistema cognitivo, não haveria mais nenhuma base para o conhecimento: o poder-sobre-o-outro.

Objetificação. Com estas características do utamawazo um eu autônomo foi criado. Esse eu autônomo é gradualmente identificado com o “pensamento puro.” A conceitualização do “pensamento puro” é possível graças a uma ênfase cognitiva no absolutismo e na abstratização. O eu como mente sem emoção cria os “objetos” próprios do conhecimento através do ato de controlar o que é inferior a ele em um sentido fenomenal. Nesse sentido, tudo aquilo que é “outro”, à parte do eu pensante, é objetivado e, portanto, capaz de ser controlado por esse eu; Enquanto o eu consciente é cuidadoso para permanecer afetivamente separado. Portanto, através do modo de objetificação, o conhecimento se torna um mecanismo que facilita o poder-sobre-o-outro.

Abstratização-Absolutista. Isso também impõe a universalização, bem como a reificação das verdades. Essa universalização não deve ser confundida com a busca indutiva de princípios autênticos de uma realidade cósmica; Isso é desencorajado pela limitada mentalidade analítica e segmentadora. Em vez disso, é um universalismo ditado pela necessidade de usar a epistemologia como ferramenta de poder e como mecanismo de controle.

Racionalismo e Cientificismo. O racionalismo extremo não é razoável; Muito pelo contrário. É a tentativa de explicar toda a realidade como se tivesse sido criada pela mente Européia para fins de controle. É a crença de que tudo pode ser conhecido através da objetificação e que a apresentação resultante da realidade é uma imagem precisa do mundo. Se toda a realidade pode ser explicada desta maneira, então nós como seres pensantes temos controle sobre tudo. O racionalismo intenso é a derradeira experiência de controle para a mente Européia. Ideologicamente, ele justifica o controle do eu Europeu sobre os outros.
O Cientificismo é a fusão da religião e da racionalidade. Aqui o deus Europeu torna-se o grande cientista e a busca racionalista é o critério do comportamento moral. A necessidade de experimentar o controle cria um utamawazo cientificista em que a previsibilidade e a racionalidade ajudam a defender o eu-conhecedor contra qualquer possível ameaça do desconhecido. O conhecimento intuitivo é desvalorizado e desconfiado, pois só é possível através da autoconsciência cósmica; ele não garante o controle. não ajuda a criar a ilusão do poder-sobre-o-outro. A modalidade intuitiva não está desconfortável com o mistério.

Modo Letrado Autoritativo. O símbolo escrito torna-se enunciação autoritativa [authoritative utterance], permitindo que a mente Européia objetivasse ainda mais a realidade à medida que universalizasse o controle Europeu. Símbolos reducionistas colocados em uma modalidade linear não-simbólica ajudam a alienar ainda mais o eu-conhecedor de seu ambiente autenticamente afetivo. Mais controle, mais poder. A linearidade conceitual seculariza ainda mais os aspectos axiológicos da cultura, vinculando-a também ao processo de objetivação.

Desacralização. Este é um derivado necessário de todas as características do utamawazo Europeu, à medida que a natureza é alienada e objetivada e abordada com uma mentalidade quantificadora, que vê o universo como realidade material apenas, para a “mente” superior agir sobre.

As características esboçadas, todas, partem da e resultam na ilusão de um universo desespiritualizado. O poder Europeu é a negação do espírito, assim como o controle Europeu é ameaçado pelo reconhecimento do espírito. Todas essas características quando compreendidas ideologicamente, isto é, em termos da natureza da asili Européia, produzem a possibilidade de poder e criam a ilusão de controle. A busca do poder é a natureza da asili Européia. O utamawazo é uma manifestação da asili. Ele é criado para ajudar na realização da asili. O que resta a ser demonstrado é o modo como estas características encorajam o desenvolvimento de uma ordem técnica e de um comportamento imperialista em relação a outras culturas. Devemos explicar como o utamawazo parelha com o utamaroho (força de energia) para apoiar o impulso ideológico (asili) da cultura: a busca de dominação. A asili torna cada aspecto do utamawazo político em seu uso (aplicação), toda ação motivada pelo utamaroho, tanto defensiva quanto agressiva: a suposição de uma realidade conflituosa.

Identificamos o logos-da-asili e a fonte da cultura; é uma semente que uma vez plantada dita a lógica do desenvolvimento cultural. Nos capítulos seguintes usaremos este conceito para explicar a relação entre os modos dominantes da cultura, seguindo o caminho ao longo do qual o logos da asili conduz.


 

 

 

                                                           Capítulo 2

                                                  Religião e Ideologia

 

Um Ponto de Partida

           A religião está integralmente relacionada com o desenvolvimento da ideologia no Ocidente. Por essa razão e devido à natureza única da cultura Européia, é fundamental deixar claro o que quero dizer por “religião.” Isso é importante porque o que é identificado formalmente na experiência Européia como religião muitas vezes tem muito pouco a ver com o que é geralmente entendido como “o religioso” em um sentido fenomenológico. *

[ * — Mircea Eliade, The Sacred and the Profane, trans. Williard R. Trask, Harcourt Brace, New York, 1959. ]

Esta discussão centra-se na experiência Européia da religião como uma instituição formalizada existente em relação às outras instituições da cultura Européia, em oposição à “religião” como expressão de crenças sobre o mundo sobrenatural e como base para o comportamento ético, ou como uma determinante de valor.

Também é importante distinguir entre “religião” e “espiritualidade.” A espiritualidade repousa sobre a concepção de um cosmo sagrado que transcende a realidade física em termos de importância e significado. Ao mesmo tempo, a espiritualidade nos permite apreender o sagrado em nosso ambiente natural e comum: eles se tornam elementos de uma linguagem simbólica. A religião refere-se à formalização do ritual, dogma, e crença, levando a uma declaração sistemática de princípios sintacticamente supra-racionais que podem ou não partir de uma concepção espiritual do universo. Na maioria das vezes, ele funciona para sacralizar uma ideologia nacionalista.

Se alguém procura um sentido do sobrenatural, do sagrado, ou do extraordinário na cultura Européia, sem dúvida a única área de experiência que se aproxima do “religioso” neste sentido é a da “ciência.” É apenas o que é considerado ciência e método científico que é considerado com o temor e humildade que em outras culturas representa a “atitude religiosa.” O cientificismo, como tal, não é o foco desta discussão imediata, mas sim o conjunto institucionalizado de idéias e práticas que os Europeus chamam de “religião.” O cientificismo entrará na discussão somente enquanto funciona normativamente para fornecer os modelos ou paradigmas da teologia Européia.

O outro sentido de “religião,” isto é, crenças sobre a natureza do ser humano e do universo, foram discutidos no Cap. 1 como concepções metafísicas. A ética Européia autenticamente normativa é traçada em uma seção posterior deste trabalho. Tais crenças não são facilmente reconhecíveis se alguém comete o erro de procurá-las apenas no que é rotulado como “religião” numa sociedade abertamente secular. Os dois usos do termo se sobrepõem ocasionalmente, como já se tornou aparente no capítulo anterior, e o faremos mais na discussão a seguir, à medida que observamos a maneira pela qual os temas das premissas epistemológicas e ontológicas Européias encontram expressão na declaração religiosa formalizada da cultura Européia.

Afirmar que uma cultura é “secular” baseado na teoria social Européia é principalmente associá-la com o que nos termos da ideologia Européia é o fenômeno da modernidade. Mas uma compreensão etnológica da cultura Européia usando o conceito de asili leva a uma conclusão que é mais abrangente do que aquela que a compreensão de “secular” implicaria. Não estamos simplesmente discutindo a separação entre Igreja e Estado. A relação da religião Européia com outros aspectos da cultura é sintomática de uma persistente desespiritualização e desacralização da experiência e pode ser mostrada como uma característica da “Ocidentalidade” desde seus estágios arcaicos. O utamawazo, utamaroho, e a ideologia Europeus determinam a natureza da declaração religiosa formalizada no Ocidente e não o inverso. Isso é o que significa para uma cultura ter uma base “não-religiosa”. Isso significa que a declaração religiosa formal apenas reflete conceitos metafísicos fundamentais e ideologia. Estes não são sua fonte. Ela não é idêntica a eles, como é o caso nas culturas Africana e Islâmica tradicionais e clássicas. Esta secularização da cultura Européia começa com a institucionalização da religião Européia. Começa com a Igreja.

Esta discussão começa, portanto, com as influências Platônicas sobre o desenvolvimento da religião institucionalizada Européia, suas origens Judaicas, e sua solidificação na ideologia e organização da Igreja Cristã primitiva. Mais tarde discutiremos o significado ideológico do paganismo Europeu. Ao longo desta análise, no entanto, nosso foco é sobre a religião institucionalizada Européia como a manifestação do utamaroho, utamawazo, e compromisso ideológico Europeus. O conceito de asili particulariza esta afirmação “religiosa” e expõe sua legitimação do comportamento Europeu.

 

A Influência Platônica

Em grande parte, quaisquer que sejam as imagens dramáticas e a profundidade espiritual associadas ao que se chama de “Cristianismo,”originam-se em culturas cronologicamente “mais antigas”, * culturas que existiram como tradições estabelecidas séculos antes da Cristalização da Europa arcaica ou do estabelecimento do Cristianismo. Estamos discutindo aqui o que os Europeus isolaram como características valiosas de uma declaração religiosa apropriada.

[ * — John G. Jackson, “Egypt and Christianity,” in Journal of African Civilizations, Vol. IV, Nov. 1982, pp. 65-80; Yosef Ben-Jochannan, African Origins of Major “Western Religions,” Alkebu-lan Books, New York, 1973; J.M. Robertson, Pagan Christ, University Books, New York, 1967; Gerald Massey, Ancient Egypt: Light of the World, rev. ed., Random House, New York, 1973; T.W. Doane, Bible Myths; And Their Parallels in Other Religions, University Books, New Hyde Park, New York, 1971.]

Tomarei a liberdade de usar o termo Cristianismo para se referir especificamente às suas manifestações Européias; Isto é, aos usos “Europeus” e às respostas “Européias” às idéias religiosas apresentadas por tradições culturais-ideológicas anteriores. Pois, tendo mudado as ênfases e oferecendo interpretações diferentes, os Europeus podem de fato ser creditados com a criação de uma formulação que respondeu unicamente às necessidades de seus eus culturais. Nesse sentido, que enfatizava os usos ideológicos da religião (a abordagem da asili), o Cristianismo Europeu era um fenômeno “novo.”

Os diálogos, o Eutífron, a Apologia, e a República são todos, de alguma forma, preocupados com o problema da justificação moral da escolha da ação de um indivíduo (Eutífron, Apologia) e do Estado (República). No Eutífron, Sócrates conseguiu convencer Eutífron da inconsistência lógica de seu apelo a “aquilo que os deuses amam” como critério ou definição de “ato piedoso.” Segundo Sócrates, o problema de Eutífron é que seus deuses são muitos, imprevisíveis, e, como os homens, falíveis. Às vezes eles não concordam uns com os outros sobre o que “lhes agrada.” E como são “muitos,” aquilo que agrada a um pode não agradar a outro. Sócrates demonstra a Eutífron que na procura de um “primeiro princípio” adequado é necessário ir além dos deuses para algo antes deles como ponto de referência. “Os deuses amam aquilo que amam porque aquilo é santo”, e não o contrário. Esta prioridade é, naturalmente, lógica.

Na Apologia, Sócrates explica suas ações dizendo que elas eram divinamente inspiradas: Ele foi feito para agir como o faz; Ele foi compelido a “fazer perguntas,” uma atividade que aparentemente é ameaçadora à autoridade do Estado. Sócrates torna-se o inimigo do Estado à medida em que ele demonstra aos jovens Atenienses que os políticos são os menos sábios de seus participantes. O ponto que nos interessa é a maneira pela qual Sócrates defende suas ações. Ao identificar seu comportamento como tendo sido feito “necessário” pela ordem dos deuses, ele está, de fato, dizendo que não pode deixar de ser Sócrates, que não pode deixar de ser como é. Sócrates está sendo acusado de “impiedade,” e, portanto, é necessário que ele traga os deuses para sua defesa; Mas mais do que isso, ele faz isso por causa da natureza daquilo que ele está defendendo. *

[ * — Clifford Geertz, “Religion as a Cultural System,” in Anthropological Approaches to the Study of Religion, Michael Banton (ed.), Prager, New York, 1966.]

Sócrates está, afinal, defendendo um “modo de vida” inteiro; não apenas uma ação específica ou concreta que, em termos Platônicos, é o erro de Eutífron. Para fazer isso, ele deve apelar para algo que está fora da, mais rica do que a, independente daquela vida; Algo a que ela possa ser referida. O princípio moral da justificação de “todas as ações” não pode ser em termos de qualquer coisa “humana”, pois isso seria inconsistente, ambíguo e imperfeito, como Eutífron foi levado a ver. O apelo de Sócrates só pode ser feito ao divino; aquilo que está além do espaço e do tempo, aquilo o que o “criou.”

Agora o dever de interrogar outros homens foi imposto por deus; E foi mostrado a mim por oráculos, visões, e em todos os modos em que a vontade do poder divino nunca foi intimidada a ninguém. [Platão, Apologia, 33]

Deus ordena que eu cumpra a missão do filósofo de sondar em mim mesmo e a outros homens. [Platão, Apologia, 28]

Não é que Sócrates de repente se tornou um sacerdote. Parece que ele está descrevendo “o religioso” na experiência; A criação do significado através da transcendência além do comum, além do profano. Mas, se fosse esse o caso, claramente não representaria uma “nova” atividade humana, nem uma nova concepção de religião. Eutífron tem o hábito de fazer precisamente isso. Na visão Platônica, a natureza desse “deus” ou “princípio” que Sócrates procura é uma extenção do humano. Não é “maior do que” nem [está] “fora” do comum. Pelo contrário, é uma necessidade lógica da razão humana, ou seja, a razão como Platão a define. Sócrates está falando de um ponto de referência absoluto e imutável: o fundamento da razão.

Ambos Eutífron e Sócrates apelam aos deuses para a justificação de suas ações que estão sendo contestadas. Mas Sócrates deixa claro que a lógica do argumento de Eutífron é defeituosa. Eutífron não faz uso polêmico efetivo da autoridade dos deuses, enquanto Sócrates, em sua própria defesa, usa o divino para construir um argumento logicamente rigoroso para a validade moral de suas ações. Isso nos leva diretamente a um componente crítico da religião Européia. É a “sintaxe da proposição matemática,” nas palavras de Havelock, que se torna o modelo do preceito e da idéia moral. Desta forma surge o “ideal monoteísta” Europeu, e sua afirmação religiosa torna-se racionalista. Os argumentos do Eutífron e da Apologia fazem a suposição de que há apenas um sistema de lógica, um modo, e isso vem a parecer “lógico” dentro dos limites epistemológicos da cultura Européia. Platão identifica o “bem” com o “verdadeiro”, e para ele isso significa que o moralmente verdadeiro tem como modelo metodológico o matematicamente verdadeiro. É por isso que é importante que os Guardiões sejam treinados primeiro na “arte do número”:

O conhecimento em que a geometria visa é o conhecimento do eterno, e não de qualquer coisa perecível e transitória . . . Então a geometria atrairá a alma para a verdade, e criará o espírito da filosofia, e levantará aquilo que agora é infelizmente permitido cair.

E toda a aritmética e cálculo tem a ver com o número?

Sim.

E elas parecem conduzir a mente para a verdade?

Sim, de uma forma muito notável.

Então este é o conhecimento do tipo que estamos procurando, tendo um duplo uso, militar e filosófico; pois o homem de guerra deve aprender a arte do número, ou não saberá como organizar suas tropas, e o filósofo também, porque ele tem que sair do mar da mudança e se apossar do verdadeiro ser, e, portanto, ele deve ser um aritmético.*

[ * — Plato, República, Livro VII: 531, 525, trans. Benjamin Jowett, Random House, New York, 1977.]

A República é um estado “ideal” porque é melhor e, portanto, o que um estado deve ser; Mas também é “ideal” no sentido de que ela não existe e não pode existir de forma concreta. O estado ideal é em si mesmo uma “Forma” para ser participada, aproximada, imitada, mas nunca em consonância com o devir, isto é, o experimentado. A República não é de modo algum limitada pelas circunstâncias particulares da experiência humana. Assim como, na concepção Européia, a “progressividade” filosófica e ética da imagem de Cristo reside na apresentação de um modelo de perfeição moral, a ser imitado mas nunca atingido. Assim, a República representa a ordem perfeita para a qual o Estado Europeu deve “avançar” continuamente. Como “ideia,” como “modelo normativo,” ela não é simplesmente modelada a partir do “bem”, mas é a encarnação [personificação] do “bem.” Os problemas no Eutífron, na Apologia, e no Críton são criados pela discrepância no mundo do devir entre o “moral” e o “natural.” Este problema é eliminado na República; O Estado se torna totalmente moral por ser totalmente racional. A virtude é identificada com a “objetificação”; o espírito é reduzido à matéria e à capacidade de manipulá-la.

Este modo de pensar que funcionou tão bem para produzir o tipo de ordem técnica e social que os Europeus desejam também criou um desastre moral e espiritual. A declaração religiosa formal assumiu a forma do Estado racional e não deixou aos Europeus nenhum acesso aos reservatórios necessariamente espirituais da moralidade humana. Essa tendência se intensificou ao longo dos séculos; até agora, quando o Ocidente é confrontado com tremenda auto-dúvida.

Mas o ponto a ser feito aqui é que o modelo epistemológico em que nasceu a abstração Platônica (o “absoluto” normativo) está subjacente à expressão do “ideal monoteísta,” à síndrome da “religião racional,” e à codificação escrita como valores na formalizada declaração religiosa Judaico-Cristã.

Stanley Diamond afirma sucintamente a razão para o “ideal monoteísta,” bem como a razão para o seu fracasso como um veículo religioso, em uma frase. “O monoteísmo absolutamente puro existe no domínio da matemática, não da religião!” Precisamente! E é por isso que ele se tornou o ideal Europeu, uma vez que (“logicamente”) o monoteísmo puro pode ser entendido como uma tentativa de expressar a abstração Platônica como a justificação necessária de todas as proposições morais. Quando os teólogos Europeus tomaram a partir de onde Platão parou, eles deveriam ter percebido que eles seriam para sempre atormentado com o dilema de reconciliar o que deveria ter permanecido dois modos epistemológicos filosóficos distintos; Platão equivocadamente os identificara como um.

Diamond diz que esta tendência para a integração da vida mental e emocional e o desenvolvimento da “idéia ética exaltada e positiva” implica “progresso” para a mente Européia e tornou-se um dos xiboletes da cultura Européia. Mas este é um ponto escorregadio, se alguém não está familiarizado com o modo da filosofia antiga. Para os Kemitas (antigos “Egípcios”), outros Africanos, e muitos povos “não-Europeus” contemporâneos, existe uma autêntica integração de ciência, filosofia, e religião. A diferença entre estes dois tipos de “integração” é que uma reduz a realidade espiritual à matéria, enquanto a outra entende a realidade espiritual como o princípio integrador fundamental de todo ser. A visão Européia resulta na dessacralização do universo e, por extensão, na dessacralização da moralidade.

O monoteísmo para o Europeu torna-se uma característica de crença filosófica superior. Não é importante aqui que outras culturas exibam conceitos religiosos que implicam filosoficamente a prioridade espiritual de um único princípio criativo e que a idéia de monoteísmo, é claro, chegou ao Ocidente a partir de outros experimentos com ela. Mesmo na cultura Européia, onde ela é tão discutida, o conceito de “deus altíssimo” [“high god”] não é experimentado como uma “quantidade desconhecida indefinível” que nunca muda: Vários deuses são chamados por um nome e são personalizados. Mas o que é significativo nessa discussão é que o monoteísmo absoluto e “puro” é expresso como um ideal ou valor na expressão cultural chauvinista Européia Ocidental e que serve como base para a desvalorização de outras culturas. Além disso, a expressão desse ideal é, em parte, um legado da abstração Platônica.

A observação de Havelock sobre a relação de desenvolvimento entre a mídia escrita ou o modo “letrado” e a “objetificação” como um modo epistemológico dominante ou preferido pode ser usada para entender a singularidade da tradição religiosa Judaico-Cristã Européia. A religião, para ser superior e digna do [nome de] “civilizada,” tinha que ser “conhecimento” e ter a natureza da verdade eterna da lógica. Sua codificação escrita ajudou a dar-lhe esse caráter e assim se tornou a evidência Européia de “religião verdadeira.” (Um aluno do meu curso de civilização Africana protestou veementemente que a crença Cristã era superior porque estava “documentada.”) Onde mais senão na mente Européia pareceria tão convincente que o “eu” fosse separado do “objeto religioso” a fim de alcançar uma declaração religiosa apropriada.  Em vez disso, poderia ser argumentado sob uma perspectiva diferente que é exatamente no ponto em que o eu “individual” e a experiência do “outro” desafiam a distinção que nasce um sentido do religioso. Mas para os Europeus, mesmo essa experiência deve ser entendida racionalmente, o que, em última instância, lhes rouba a capacidade de reconhecê-la. George Steiner diz,

O sentido clássico e o sentido Cristão da palavra se esforçam para ordenar a realidade dentro da governança da linguagem. A literatura, a filosofia, o direito, as artes da história, esforçam-se por encerrar dentro dos limites do discurso racional a soma da experiência humana, seu passado registrado, sua condição atual e expectativas futuras. O código de Justiniano, a Summa [teológica] de Aquino, as crônicas mundiais e compêndios da literatura medieval, a Divina Comédia, são tentativas de contenção total. Eles dão testemunho solene da crença de que toda verdade e realidade — com exceção de uma pequena e estranha margem no topo — podem ser alojadas dentro das paredes da linguagem. *

[ * — George Steiner, Language and Silence, Atheneum, New York, 1967.]

A declaração religiosa formalizada Européia foi feita para se ajustar ao modo conceitual que se tornara esteticamente agradável à mente Européia por causa da influência Platônica, da diligência de Aristóteles e da natureza do Utamawazo. Arthur Lovejoy tem isto a dizer sobre o relacionamento de Platão com as formulações religiosas subsequentes:

Os intérpretes de Platão, tanto nos tempos antigos como nos tempos modernos, discutiram interminavelmente sobre a questão de saber se essa concepção do bem absoluto era para ele idêntica à concepção de Deus. Dito assim simplesmente, a pergunta é sem sentido, uma vez que a palavra “Deus” é no último grau ambígua. Mas, se ela for considerada como o que os Escolásticos chamaram de ens perfectissimum, a cimeira da hierarquia do ser, objeto supremo e completamente satisfatório da contemplação e da adoração, não há dúvida de que a Idéia do Bem era o Deus de Platão; e não pode haver ninguém que se torne o Deus de Aristóteles e um dos elementos ou “aspectos” do Deus da maioria das teologias filosóficas da Idade Média e de quase todos os poetas e filósofos Platonizantes modernos.

[ * — Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being, Harvard University Press, Cambridge, 1966, p. 42.]

A influência de Platão foi mais fortemente sentida no trabalho formulativo inicial de Agostinho, e a influência de Aristóteles foi diretamente manifestada em Aquino e nos Escolásticos em suas concepções do “Motor auto-movente” [“seld-moving mover”] e da “Causa Final”, mas mais importantemente em suas tentativas laboriosas Para “provar” a existência de seu deus. Esses esforços se tornam patéticos quando se entende que a necessidade de “prova” em si é sintomática do fracasso humano da cultura. Aristóteles, desta forma, torna-se ele mesmo o “motor primário” da “síndrome da religião e da racionalidade”, que continua a atormentar a teologia Européia.

 

A Herança Judaica

No judaísmo encontramos a primeira declaração consciente formalizada e institucionalizada de certas características críticas da cultura, tendências, e valores Europeus que se intensificaram à medida que a cultura se tornou uma entidade etno-histórica cada vez mais identificável. Isso não inclui a Qabbala, a qual é não-Européia, tanto no sentido espiritual como no sentido racial-cultural. Na verdade, uma advertência a esta discussão seria levantar a questão de até que ponto o nosso conhecimento do Judaísmo é determinado pela tradição dos Cazares [Khazars], que foram convertidos Judeus, e seus descendentes os Askenazim e os Judeus Europeus contemporâneos. (Ver Arthur Koestler, The Thirteenth Tribe, [A Décima-Terceira Tribo], 1976.)

O Judaísmo é muito mais do que uma “religião,” conforme esse termo veio a ser usado na experiência Européia. É uma ideologia política e cultural. Tem dentro dele o germe de um modelo de organização social projetado para o desenvolvimento energético da eficiência tecnológica. É o prelúdio de uma configuração cultural que enfatiza esse aspecto da experiência humana. As características que podem ser identificadas dentro dessa tradição se combinam para dar à cultura dos primeiros Hebreus a direção sócio-tecnológica particular que mais tarde se tornou um componente definitivo da tradição da Européia Ocidental.

A tradição Judaica está associada a uma ferramenta cultural que é geralmente chamada de “codificação” em relação às normas sociais, comportamento sancionado, e religião do povo Hebreu. O termo “codificação”, no entanto, refere-se adequadamente ao arranjo sistemático e à preservação de certos aspectos da cultura. Todas as culturas possuem métodos e meios (canções, mitologia, arte, poesia, ritual) que atuam para padronizar desta forma; Portanto, todos os povos “codificam” o que consideram ser os fatos valiosos e necessários de sua tradição. *

[ * — Na cultura Européia, essa função conservadora deve ser auto-consciente, mecânica, e exigente, a fim de estabilizar a cultura e manter seu impulso ideológico, uma vez que um aspecto crucial da idologia é a constante mudança superficial. Nas culturas Africanas e outras culturas não-Européias, tradicionais e clássicas, esta relação entre estase e criatividade é muito mais orgânica, isto é, até a intrusão da Europa.]

É especificamente o uso do meio da palavra escrita neste contexto que, na terminologia Européia, é connotado pelo termo “codificação” e que, na mente dos Europeus, é tão reverentemente associado com a sua herança cultural. Através do uso da palavra escrita, a cultura torna-se registrada e essa gravação se torna uma atividade impressionantemente cumulativa, dando a impressão de que a própria cultura é mais cumulativa e, portanto, dentro da lógica desse mesmo sistema de valores, evolutivamente superior às culturas que codificam suas tradições através de outros meios.

A escrita, é claro, foi desenvolvida primeiramente não no contexto do Judaísmo nem de qualquer outra parte da tradição cultural Européia. De modo que não é meramente a presença, o conhecimento, ou a “possibilidade” deste meio que é crítica [fundamental] em identificar a peculiaridade da configuração Européia. Mais sutilmente, é a maneira como essa ferramenta figura na cultura em questão que é importante aqui. Na tradição Européia, a escrita assume as características de um valor dominante dentro do sistema de crenças do grupo. Ela não é apenas uma ferramenta entre ferramentas. O meio da palavra escrita é tão valorizado que ele mesmo pode transmitir valor, da mesma forma que a religião faz para todas as culturas tradicionais. Sem a mídia escrita, como poderia o “Deus” Europeu e todos os pronomes referentes a “Ele” serem capitalizados [escritos com letra Maiúscula] ? — Uma expressão Européia primária de reverência. O mesmo se aplica às “Formas” de Platão. O ato de escrever e sua importância tornam-se ideológicos em função. Tornam-se um quadro de referência que atua para determinar e, em muitos aspectos, limitar o modo de percepção dos envolvidos nesta estrutura de valores. Já mencionamos algumas das implicações da “linearidade” no utamawazo Europeu no que diz respeito aos meios de comunicação escritos. (Ver Cap. 1 deste trabalho.)

O ponto a ser feito aqui é o modo como essa atividade valorizada se relaciona com outras tendências Ocidentais da asili Européia, já prefaciadas na cultura Judaica inicial. Quando a expressão escrita se torna um valor dominante, as palavras se tornam vinculativas através da escrita, e os valores são leis percebidas. As leis preservadas através da codificação escrita são mais impressivas para a mente Européia do que meros “valores.” Este processo circular ajuda a manter a ordem em vez dos mecanismos que seriam obrigatórios em outras culturas. As leis escritas tornaram-se a marca da religião Européia. O modo letrado ajudou a transmitir a ilusão de historicidade e, portanto, de “verdade universal.”

A codificação escrita é necessária para o desenvolvimento e crescimento de um certo tipo de ideologia e de um estilo qualitativamente distinto de organização; Não necessariamente mais complexa, mas em muitos aspectos mais opressiva ao espírito humano, pois força a atividade humana a ser cada vez mais orientada tecnologicamente. Os Kemitas (Egípcios) possuíam um sistema que lhes permitiu manter registros escritos milhares de anos antes dos Hebreus. Eles também tinham uma cultura maior e mais tecnologicamente realizada. E por estas razões, Kemet pode parecer, a princípio, o precursor tecnológico da cristalização da cultura Européia.

Mas a civilização Kemética é baseada no sagrado [sacredly based], e sua religião é mais cósmica, mítica, e simbólica na intenção. O conhecimento matemático, astrológico, astronômico e filosófico dos Kemitas, inclusive o colosso material que era Kemet, eram produtos de uma concepção total do universo como espírito. É por esta razão que Kemet ainda permanece um enigma para a mente Européia. A apreensão Africana do universo como harmonia cósmica simplesmente representa uma abordagem filosófica que desafia a visão de mundo Européia. O que é relevante aqui é a diferença entre os usos da codificação escrita e seu valor-lugar na cultura Kemética e Hebraica, respectivamente. Aquilo que estava escrito no Livro da Revelação pelo Dia [Book of the Coming Forth by Day] (“O Livro dos Mortos“) deveria ser enterrado com os mortos e era destinado para seu benefício e uso. Mas a essência filosófica do conhecimento espiritual (que incluía tanto a ciência como a teologia) era representada pelas “escolas” Sacerdotais ou Sistemas de Mistério e só podia ser transmitida oralmente — reservada para um pequeno círculo de iniciados.

A expressão escrita desses ensinamentos era proibida por duas razões: Eles eram “secretos” e eram “sagrados.” A escrita, por outro lado, transmite duas coisas ao seu conteúdo: (1) ela publica, revela, e expande seu conteúdo de uma forma que outros (pré-eletrônica) meios não podem (ninguém jamais se compromete a escrever aquilo que se deseja verdadeiramente permanecer privado); Ela [a escrita] “torna público” o seu conteúdo desta forma. (2) A mídia escrita “profana.” Os iniciados neste sistema de sabedoria espiritual [em Kemet] se comprometiam a manter o segredo. Isto era interpretado para significar a proibição de escrever aquilo que tinham aprendido. Foi somente quando estudantes individuais Gregos, Persa e Jônico (Sócrates e Platão, sem dúvida entre eles) obtiveram acesso às escolas Egípcias, e [posteriormente obtiveram o] controle político da civilização Egípcia, que foram praticados sacrilégios, atos que na nascente estrutura ideológica Européia da Grécia antiga eram convincentes. Já nessa época, na experiência Européia, o uso culturalmente explorador da mídia escrita parece ter sido reconhecido e utilizado. E a interpretação Européia desses ensinamentos sacerdotais Keméticos tornou-se muito da “Filosofia Grega” através de muitos traços de muitas, muitas canetas, como explica George James (1954). Nesta visão, quase poderíamos dizer que a cultura clássica Européia começou com um ato de profanação e plágio.

Quão profundamente diferente era a concepção de significado Hebraica da Kemética e outras concepções “não-Européias.” Era uma concepção que promovia a árdua atividade de gravar por escrito as leis religiosas de seu povo e assim deu à luz a idéia das “escrituras.” Dentro do contexto Europeu, “cultura” e “lei” são reificadas e, portanto, através da escrita, são deificadas; a religião tem maior força, é “mais verdadeira,” porque é codificada por escrito. Partindo de outros pressupostos, contudo, parece que é somente quando as leis se afastam do espírito humano que a conformidade com elas exige que elas sejam colocadas no papel.

 


O Ideal Monoteísta;

Incipiente Chauvinismo Cultural Europeu

 

Nosso interesse aqui é o “monoteísmo” enquanto um valor culturalmente expresso. Nestes termos, a contrapartida da dicotomia “bem/mau” do valor Europeu torna-se a do “monoteísmo/politeísmo.” Para os Europeus, a idéia do deus-único, como a codificação escrita, representa um “avanço” sócio-tecnológico ao longo do espectro evolutivo. O Judaísmo proclama esse ideal. Ele é reconhecido como um conceito Judaico — a despeito de Akhnaten — porque no Judaísmo, torna-se uma ideologia endurecida. A declaração deste ideal expressa o utamaroho Europeu dramaticamente. O que se segue é a caracterização de Hugh Schonfield deste “ideal”:

O Messianismo foi um produto do espírito Judaico. Foi inspirado pela leitura Hebraica do enigma da criação e do destino da humanidade. Embora alguns de seus traços não tenham se originado com os Hebreus, eles os absorveram e os colocaram em relação com uma grande visão da derradeira Irmandade do Homem sob o governo do Deus Único e Pai de todos os homens. A visão não era simplesmente um ideal acarinhado; ela foi associada a um plano para sua realização. De acordo com este plano, Deus havia escolhido e separado uma nação entre as nações do mundo, nem numerosa nem poderosa, para ser a destinatária de suas leis e, por observá-las, oferecer um exemplo universal. A Teocracia de Israel seria a ilustração persuasiva de uma Teocracia Mundial; Seria “um reino de sacerdotes e uma nação santa” testemunhando a todas as nações. Manifestamente de acordo com este ponto de vista, a redenção da humanidade esperava a obtenção por Israel de um estado de perfeita obediência à vontade de Deus. Tanto quanto Israel não conseguiu cumprir as exigências Divinas, por tanto a paz e bem-estar da humanidade foi retardada.*

[ * — Hugh J. Schonfield, The Passover Plot, Bantam, New York, 1967, p. 16.]

Esta caracterização da teologia Hebraica é uma afirmação precisa da auto-imagem Européia: um tipo de pessoa — uma cultura — cuja tarefa é “salvar” todas as pessoas. Esta visão de um mundo maior em relação a uma cultura especial (a  sua própria) contém o germe do “universalismo,” o ingrediente fundamental do imperialismo cultural Europeu. No início do Judaísmo, a indicação deste tema aparece, um tema que seguiremos neste estudo à medida que este se desenvolve historicamente e de forma sincrônica através dos vários aspectos da cultura Européia. A declaração Judaica também lançou as bases para a secularização da história. Ao interpretar a história como o desdobramento da lei divina, o profano tempo linear (historicidade) ao invés do Hantu (o tempo e espaço sagrado) tornou-se a força sancionadora.

Há uma conexão impotante entre a expressão do ideal “monoteísta” e a da ontologia de Platão, expressa em vários de seus diálogos. A humanidade e inconsistência dos deuses é ilógica (Eutífron) e, portanto, imoral. O valor deve ser abstrato, universal, imutável. A República é perfeita porque é modelada a partir de tal abstração. Não é realmente o conteúdo do “ideal” tanto quanto a sua “forma” que é significativo. A “autoridade” lógica e ontológica que emana do “bom” ou de “Deus” deve ser monolítica. É uma estrutura mais adequada, o estado idealmente organizado para o crescimento e nutrição da tecnologia e para um tipo particular de ideologia. O conceito de monoteísmo fornece uma justificação ontológica para o Estado como um eficiente mecanismo de controle assegurado. Embora as guerras sempre tenham sido (e sempre serão, embora a retórica possa tornar-se mais sutil) para todas as pessoas guerras “religiosas,” e embora as declarações religiosas tenham sido sempre declarações de ideologia cultural nacionalista, a declaração religiosa dos Hebreus correspondeu a uma concepção nacionalista qualitativamente diferente. Sua religião apresentou a proposição de que todas as religiões que não abraçaram o ideal do deus-único eram evolucionariamente inferiores. Os adeptos desta declaração religiosa, de fato, declararam guerra (isto é, se opuseram a) todos os povos que não professaram essa idéia. É importante aqui reiterar uma distinção que deve ser mantida em mente entre a religião Judaica e outras nesta conjuntura histórica.

Todas as religiões são, por necessidade, culturalmente nacionalistas, na medida em que professam de alguma forma a especialidade, se não a superioridade moral daqueles que nascem nelas e, de fato, (mais importantemente), envolvem uma explicação das origens sagradas do grupo. Mas há uma diferença crucial entre a maneira pela qual a imagem Européia de sua cultura representa seus membros como avançados em um espectro evolutivo. Esta tese ideológica exige uma visão de si mesmos em comparação com os outros e, portanto, em relação a uma ordem maior. Uma idéia — a sacralização do grupo — não descarta a validade de uma pluralidade de outros grupos. A outra — superioridade evolucionária — é um conceito supremacista e permite apenas uma realidade monolítica.

Para os Judeus, aqueles que não professavam o ideal do deus-único — aqueles que “adoravam imagens” — eram de fato irreligiosos. Era ímpio e imoral adorar muitos deuses. Além disso, era estúpido; era retrógrado. E, portanto, a violenta hostilidade para com todos as outras religiões não era apenas justificada; era moralmente atraente. E aqui encontramos a primeira declaração concreta do que se pode chamar de dicotomia do chauvinismo Europeu, cuja evolução podemos traçar historicamente e ideologicamente.

De acordo com a lógica da ideologia Européia, manifestada em seu estágio inicial de cultura Judaica, a declaração cultural de bem/mau, de nós/eles, torna-se a de Judeu/Gentio. Ser Judeu era ser não apenas especial e “escolhido”, mas também “religioso” e, portanto, culturalmente superior em um sentido evolucionário. Um Gentio é não-Judeu: um bárbaro e pagão, é idólatra e realmente irreligioso (não tem religião), é ignorante, é culturalmente inferior em um sentido evolutivo. Com certa amplificação crítica, isso se tornaria mais tarde a lógica que sustentou o imperialismo cultural Europeu; e tem sido alarmantemente consistente, deixada intacta por mais de dois mil anos, uma tradição imutável em uma cultura que se propagandeia como a encarnação da “mudança” e da autocrítica.

A dicotomia Judaico/Gentio é a primeira forma de expressão no continuum da dicotomia civilizado/primitivo do chauvinismo cultural Europeu. No âmbito dessa expressão chauvinista, o conceito de “escrituras” autoritativas e a codificação escrita da tradição, o ideal monoteísta e a dicotomia Judaico/Gentio combinam-se em configuração única para reforçar-se mutuamente na lógica de um sistema de crenças que pode ser identificado como a mais antiga manifestação institucionalizada do utamaroho Europeu — que busca satisfazer a asili da cultura.

A codificação escrita e sua promulgação encorajam o modo linear de concepção que, por sua vez, estabelece um sistema “lógico” que produz a tese da evolução e do avanço. Esta tese, por sua vez, introduz a deificação da palavra escrita; e assim o ciclo continua. O monoteísmo, que tinha apelo filosófico (não espiritual) à mente Européia e que servia melhor aos propósitos de controle social em um contexto Europeu, foi colocado no valorizado final do espectro “evolutivo.” É mais uma vez significativo que os Europeus nunca deixaram esse aspecto da organização social aberto como uma compreensão superficial da ideologia do progresso implicaria, mas mantiveram a imagem monolítica de seu primeiro modelo.

O ideal monoteísta (e a tese de sua superioridade “evolucionária”) então leva à e, ao mesmo tempo, é recriado pela dicotomia da ideologia nacionalista Européia. O “Nós” torna-se o grupo que é “avançado” [“adiantado”], pratica o monoteísmo, deifica a escrita; o “Eles” torna-se o resto do mundo, o grupo que é atrasado, idólatra, irreligioso, que não possui um corpo impressionante de leis religiosas escritas e, claro, que acredita em” muitos deuses.” Nenhum castigo é muito severo para este grupo e “nós” devemos ir muito longe para garantir que “nós” não sejamos contaminados pelo
atraso [backwardness] “deles.” A declaração Judaica desta posição foi violentamente defensiva, uma vez que a ameaça de fora era, nesse momento, muito real.

Se o seu próprio irmão ou filho ou filha, ou a mulher que você ama ou o seu amigo mais chegado secretamente instigá-lo, dizendo: Vamos, e sirvamos a outros deuses que não conheceste, nem tu nem teus pais;

os deuses dos povos que vivem ao seu redor, quer próximos, quer distantes, de um ao outro lado da terra

Não consentirás com ele, nem o ouvirás; nem o teu olho o poupará, nem terás piedade dele, nem o esconderás;

Mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele, para o matar; e depois a mão de todo o povo.

E o apedrejarás, até que morra, pois te procurou apartar do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão;

— Deuteronômio: 13:6—13:10 (Ver também 13:12, 13, 15,16.)

No contexto Cristão, essa declaração se torna mais forte e poderosamente agressiva (ainda que ao mesmo tempo mais sutil, menos explícita) em oposição à natureza defensiva da declaração Judaica, que busca proteger-se contra a contaminação. Todos os ingredientes necessários já estavam presentes, incluindo a auto-imagem Européia como “salvador do mundo.” Colocado no contexto da ideologia Européia, isso pode ser visto como um veículo ideal para a projeção cultural-imperialista do objetivo Europeu, o que, de fato, tornou-se mais tarde. Essa é uma interpretação Africano-centrada daquilo que na retórica Eurocêntrica é declarado como “uma visão da derradeira Irmandade do Homem sob o governo do Deus Único e Pai de todos os homens.” * A implicação desta “visão” é de fato uma teocracia Européia.

[ * — Hugh J. Schonfield, The Passover Plot, Bantam, New York, 1967, p. 16.]

 

O Cisma Judaico-Cristão

 

A formulação “Cristã” torna-se o próximo estágio identificável no desenvolvimento do utamaroho Europeu como expresso pela religião institucionalizada. O Cristianismo deveu muito à precedente tradição Judaica; Tanto, de fato, que as questões se tornam: Qual era exatamente a diferença nessa “nova” religião? Em que sentido era nova? Por que os seguidores de Jesus se consideram distintos dos outros Judeus, e até mesmo antagônicos, e vice-versa?

De acordo com a tradição Européia, as diferenças teológicas críticas entre os Judeus e Jesus são fixadas em sua reivindicação de ser o “Filho de Deus” e, correlativamente, a recusa dos Judeus a reconhecê-lo como o “Filho” de seu “Deus.” Mas a questão ideológica é colocada nas implicações dos ensinamentos de Jesus para o nacionalismo Judaico, e as implicações culturais imperialistas da elaboração e interpretação de Paulo delas. Nessa perspectiva, o cisma e o antagonismo resultante têm sentido político. Eu não imponho conscientemente motivos políticos em qualquer um desses ensinamentos. Quero preferivelmente referir-me às implicações políticas das idéias quando colocadas no contexto de padrões embrionários de comportamento nacionalista e cultural Europeus. Em outras palavras, o ponto é que algumas afirmações religiosas podem ser usadas para apoiar certos objetivos políticos, enquanto outras não.

Para os Judeus, enquanto seu deus era projetado como único deus “verdadeiro” para a humanidade, a ênfase e característica essencial do Judaísmo não era a possibilidade de aplicação mundial, mas sim a distinção [specialness] do povo Judeu. Segundo eles, somente os Judeus foram “escolhidos” para cumprir a profecia de Deus:

Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus te escolheu, a fim de lhe seres o seu próprio povo especial, acima de todos os povos que há sobre a terra.
Deuteronômio: 7: 6

Mas eles deveriam cumprir esta profecia, apresentando um exemplo normativo a outros povos, não através da conquista.

As implicações político-culturais da estratégia ou interpretação de Paulo dos ensinamentos de Jesus eram bastante diferentes. Na visão de Paulo, os gentios convertidos receberiam os mesmos privilégios que aqueles desfrutados pelos crentes Judeus, e também herdariam a recompensa e as promessas feitas a Israel.*

[ * — Ibid, p. 195.]

A organização Cristã também acrescentou uma estratificação crescente ao modelo Judaico através de uma hierarquia criada a partir da necessidade de “interpretação correta.” Esta não era uma função primeiramente religiosa para os Judeus uma vez que sua doutrina enfatizava a “letra” da lei escrita.

A diferença crítica deve ser encontrada na atenção de Paulo aos gentios, um movimento que foi tanto a causa quanto o efeito da rejeição dos nacionalistas Judeus. Os muitos Judeus que se tornaram os primeiros “Cristãos” não eram, naturalmente, nacionalistas Judeus. É neste contexto e neste ponto que uma distinção começou a existir entre o nacionalismo Judaico primeiramente auto-determinista e o chauvinismo cultural Europeu mais imperialista. Esta é uma distinção que permaneceu consistente com os tempos contemporâneos, pois embora o interesse Judeu possa buscar o poder, ele não é expansionista no sentido de buscar convertidos.

A formulação Judaica era o veículo ideal para o objetivo expressamente limitado da solidariedade cultural Judaica, a solidariedade necessária para a eficiente organização sócio-política e a consolidação dos esforços de seus membros. Era a declaração perfeita de expressão nacionalista para o povo Judeu, pois encorajava sua identificação com o grupo por meio de uma assumida experiência e destino históricos (transcendendo o territorial) e funcionou como um mecanismo defensivo necessário à sua autodeterminação — uma necessidade que foi intensificada por sua circunstância de “minoria” extrema.

À medida que o utamaroho Europeu começou a emergir no contexto mais amplo criado por uma auto-imagem sempre crescente, definida em termos de poder cada vez maior, as necessidades da expressão nacionalista/chauvinista Européia exigiam muito mais do que o Judaísmo proporcionava. O Judaísmo realmente promoveu e incentivou vários dos valores mais críticos vistos como necessários para a asili Européia plantada, mas claramente sua declaração nacionalista era grosseiramente inadequada para a auto-imagem Européia em expansão. Embora fosse uma declaração de autodeterminação política e de coesão social defensiva, ela não era uma declaração de objetivos imperialistas mundiais. A visão Judaica era elitista-isolacionista; A visão Européia expandida buscou o controle e a exploração cultural de outros grupos. Terrence Penelhum diz: “Quando o Cristianismo entrou em cena, ele não veio meramente como apenas mais uma religião, mas como um rival implacável. *

[ * — Terence Penelhum, Religion and Rationality, Random House, New York, 1971, p.6.]

Oswald Spengler torna clara esta diferença na implicação política:

Mesmo nos primeiros dias surgiu a questão que decidiu todo o Destino da nova revelação. Jesus e seus amigos eram Judeus por nascimento, mas eles não pertenciam à terra da Judéia. Aqui em Jerusalém, os homens procuravam pelo Messias de seus velhos livros sagrados, um Messias que deveria aparecer para o “povo Judeu”, no antigo sentido tribal, e somente para eles. Mas todo o resto do mundo Aramaico esperava o Salvador do Mundo, o Redentor e Filho do Homem, a figura de toda a literatura apocalíptica, quer escrita em termos Judaicos, Persas, Caldeus ou Mandeus. Em uma visão, a morte e a ressurreição de Jesus eram apenas eventos locais; Em outra, elas anunciavam uma mudança do mundo . . . . Na visão Judaica, não havia essencialmente necessidade de recrutamento — pelo contrário, uma vez que era uma contradição com a idéia do Messias. As palavras “tribo” e “missão” são reciprocamente exclusivas. Os membros do povo escolhido, e em particular o sacerdócio, tinham apenas de convencer a si mesmos de que seu anseio estava agora cumprido. Mas para a nação Magiana [Magian], baseada no consenso ou na comunidade de sentimentos, o que a Ressurreição transmitiu foi uma verdade completa e definitiva, e o consenso na questão dessa verdade deu origem ao princípio da nação verdadeira, que deve necessariamente se expandir até tomar todos os princípios mais antigos e conceptualmente incompletos.*

[ * — Oswald Spengler, The Decline of the West, Vol. II, Alfred A. Knopf, New York, 1928, p. 219.]

É o utamawazo (estrutura cultural do pensamento) Europeu que faz com que a declaração Cristã pareça ser conceitualmente mais completa.

O significado da observação de Spengler é que, embora o corpo esmagador da formulação Cristã, como ensinado por Jesus e elaborado interpretativamente por Paulo, fosse consistente e não contraditório com a crença judaica, duas características críticas e relacionadas foram acrescentadas. Estas características adicionais moldaram a idéia Judaica em uma afirmação ideológica que apoiava e justificava não só uma nascente definição de valor Européia, mas também uma nova qualidade de imperialismo, um imperialismo que se adequava ao utamaroho Europeu. Uma dessas características foi a definição retóricamente universalista e não-exclusiva do grupo (ou “objeto”) que “poderia ser salvo”; o outro era a característica relacionada do mandato de proselitismo. O Cristianismo, então, se tornou a formulação ideal para a expansão ilimitada de uma cultura com uma ideologia supremacista e, ao mesmo tempo, forneceu a ferramenta ideológica para o controle do império resultante através de seu componente retórico “universalista.”

Por que os Judeus se recusaram a aceitar Jesus como o Messias que haviam esperado há tanto tempo? Possivelmente porque se recusaram a ampliar o grupo cultural-nacional com o qual eles se identificavam e, em parte, porque se recusaram a absorver (embora sempre intimamente etno-historicamente relacionado com) a entidade ideológica maior que estava se formando e que culminaria na cultura da Europa Ocidental. Uma recusa foi ditada pela outra, e a separação e antagonismo entre os dois grupos (Cristãos e Judeus) podem ser vistos como uma [separação] de identificação política e estratégia elaborada em terminologia religiosa. A questão então, assim como agora, é uma de comprometimento [allegiance]. Na medida em que o grupo Judeu se recusa a identificar-se com a expressão nacionalista e destino do grupo maior e dominante, cujo território eles compartilham, eles constituem um “espinho no lado” desse grupo e, portanto, desconfiado e, o que é pior, aterrorizado. Apesar desta vitimização, e por causa da familiaridade com a orientação e compatibilidade dos valores do utamaroho e utamawazo entre o povo Judeu e o grupo maior Europeu Ocidental, os Judeus não são referidos como “pagãos” ou “primitivos” e não são considerados como sendo “evolutivamente inferiores” como outras vítimas da opressão da Europa Ocidental tem sido. Eles são, de fato, totalmente “Ocidentais,” neste sentido. Mesmo Rheinhold Niebuhr reconhece o fato de que o Cristianismo era inconsistente com o nacionalismo Judaico, mas ele não observa a nova declaração nacionalista da ideologia Cristã, ou melhor, ele confunde sua expressão cultural imperialista com um “universalismo” moralmente superior.

A liberdade de Deus sobre os instrumentos de sua vontade . . . é afirmada de acordo com visões [insights] de universalismo profético, como contrárias ao nível inferior de Messianismo nacionalista. Entretanto, é significativo que o Cristianismo não se purifique finalmente do particularismo nacionalista até que São Paulo declare o direito de pregar o evangelho aos Gentios, rejeite a validade da lei Judaica para os Cristãos e substitua a igreja pela nação como a “Israel de Deus.” *

[ * — Rheinhold Niebuhr, The Nature of the West, Vol. II, Alfred A. Knopf, New York, 1971, p. 6.]

Um tratamento interessante da diferença entre as declarações Judaica e Cristã é encontrado em The Passover Plot, de Schonfield. Schonfield está expressamente preocupado em documentar as evidências de sua afirmação de que Jesus, talvez convencido de que ele era de fato o Messias, dedicou sua curta vida a organizar sua “crucificação” e subseqüente “ressurreição”, de modo a garantir o cumprimento da profecia Judaica (que em si mesma provém de tradições não-Ocidentais anteriores). A postura declarada de Schonfield é uma de “erudição objetiva.” Ele quer “lançar luz” sobre um assunto há muito nublado por “preconceito religioso.” Em suas declarações introdutórias ele diz que seu objetivo é “ser de serviço útil” e aquele do “paciente buscando a verdade.” *

[ * — Schonfield, p. 8.]

Mas, de fato, a perspectiva de Schonfield é tanto do nacionalismo Judaico (embora ele provavelmente não se identifique religiosamente como Judeu) quanto do chauvinismo cultural Ocidental. Seu argumento é que a concepção Cristã de Jesus como o Filho de “Deus” des-Ocidentalizou a formulação Hebraica e foi, portanto, um retrocesso do “avanço” intelectual que o Judaísmo fizera das “superstições” dos “pagãos.”

O cristianismo estava ainda muito próximo do paganismo sobre o qual tinha obtido uma vitória técnica para se contentar com uma fé em Deus como puro espírito. Nunca houve na Igreja uma conversão completa do paganismo. Podemos estar vivendo na segunda metade do século XX, mas a necessidade dos Gentios permaneceu para uma personificação humana da divindade. Deus ainda tinha de ser compreendido por meio de um parentesco físico com o homem e suas preocupações terrenas, e ali permanecia ainda o sentido da eficácia do sacrifício substitutivo e propiciatório de uma vítima.*

[ * — Schonfield, p. 8.]

Ouvimos um eco da análise de Spengler, mas curiosamente com a posição inversa. Para Spengler, a idéia Cristã é “conceitualmente” mais completa, enquanto que para Schonfield ela é menos “pura.” Ambos estão usando regras Platônicas consistentes com o utamawazo Europeu. Eles são ideologicamente comprometidos com os mesmos valores. O civilizado é representado pelo tecnologicamente mais eficiente, o conceitualmente mais abstrato, o perceptivelmente menos subjetivo. Nesta crítica da concepção Cristã de Schonfield, uma “desculpa” pela rejeição Judaica de Jesus como Messias é uma declaração perfeita e concisa do ideal religioso Europeu, e a correlativa do modo de religião Europeu. Da imagem Cristã de Jesus ele diz:

Tal homem poderia ter seus momentos divinos, mas nunca poderia ser consistentemente um reflexo do Divino, exceto para aqueles cuja noção de divindade permitisse que os deuses compartilhassem nossas fraquezas humanas. . .

Demasiados Cristãos não conhecem a Deus de outra maneira senão através de Jesus e sua fé em Deus é posta em perigo ou destruída. O Novo Testamento não é inteiramente culpado por isso. A culpa principal reside naqueles que se apegaram à ignorância e à superstição do povo ao lhes dar um Deus criado à imagem do homem.
Contudo, Jesus e sua nação, ensinados diferentemente, podiam amar e adorar a Deus sem recorrer à encarnação.*

[ * — Ibid, p. 4.]

Ironicamente, é precisamente o ingrediente “místico” da lenda de Jesus o que dá ao Cristianismo seu apelo religioso, assim como outros aspectos que são tomados de tradições culturais anteriores. Não há qualquer razão pela qual as afirmações de Schonfield acima possam ser chamadas de “objetivas,” mesmo que seja acordado, no momento, que a “objetividade” é um conceito válido. Seu uso do termo “pagão” corresponde não apenas ao de teólogos Cristãos e Judeus, mas ao de “não-religiosos” e então-chamados cientistas sociais Europeus objetivos.

Existem alguns termos comuns em ambos, tanto no uso ordinário como no científico, que revelam tão descaradamente o utamaroho (personalidade coletiva) e a auto-imagem dos Europeus como [o faz] o [termo] “pagão.”
É talvez o epítome da arrogância e auto-ilusão Européias que os Europeus possam com seriedade descrever os povos do Primeiro Mundo como sendo “irreligiosos”. Schonfield assinala, depreciativamente, que a Igreja absorveu muitos costumes e crenças pagãs.* Ele não menciona, entretanto, o significado político desse fato: Que a maior parte da mitologia Cristã provém de tradições culturais e religiosas mais velhas, que ajudaram os Cristãos a “converter” os Africanos e outros povos não-Europeus.

[ * — Ibid., p. 211.]

Esse fator serviu bem aos objetivos do imperialismo cultural da Europa Ocidental, pois, enquanto as pessoas de outras culturas estavam, em parte, sendo “convertidas” à suas próprias concepções, elas estavam ao mesmo tempo sendo absorvidas por uma organização que as controlava em benefício dos Europeus.

 

 

A Cooptação Romana: Duas Ideologias Imperialistas

 

No final do Principado, o mundo pagão apresentava uma grande confusão de crenças e doutrinas religiosas. Mas os vários cultos pagãos eram tolerantes uns com os outros, pois os seguidores de um deus estavam prontos a reconhecer a divindade dos deuses adorados por seus vizinhos. Ao contrário, os adeptos do Judaísmo e do Cristianismo se recusaram a reconhecer os deuses pagãos e, portanto, estavam em oposição irreconciliável a todo o mundo pagão.*

[ * — Arthur E. R. Boak, A History of Rome to 565 A.D., 4th ed., Macmillan, New York, 1955, p. 393.]

Politicamente, a ideologia Romana era a contrapartida perfeita para essa formulação “religiosa”, como a caracteriza History of Rome [História de Roma] de Arthur Boak. Assim como a projeção Cristã era aquela de uma benevolência que buscava compartilhar o esclarecimento na forma da palavra com aqueles desafortunados o suficiente para terem escapado-na até agora, assim a imagem nacionalista Romana era a de um povo em posse da “civilização” preparado para conceder suas bênçãos aos “bárbaros.” O Cristianismo oferece salvação a todos, desde que eles “venham para o aprisco,” aceitando Jesus como o “Filho de Deus,” ganhando assim a vida eterna; Os Romanos ofereceram a cidadania a todos, contanto que, como diz Aristides, eles possuissem potencial de “talento,” “coragem,” e “liderança”. Limites “culturais” não importavam. Ambas eram ofertas de “civilização” e um estilo de vida supostamente superior evolucionariamente. Essas formulações postulavam uma oposição perpétua entre aqueles que não compartilhavam as ideologias expressas e aqueles que o faziam. Ambas as declarações, de forma significativa, continham justificativas e diretrizes para a “conversão” e “recrutamento” deaquelas pessoas fora do grupo cultural com o qual estavam identificadas. Talvez o ingrediente mais importante compartilhado por essas idologias “Irmãs” (na verdade dois braços da mesma arma ideológica) seja a visão deles do mundo como o “”torrão” [“turf”] de uma única cultura. Todos e cada um sob o controle ideológico e político dos Cristãos e dos Romanos, tudo era válido [was fair game]. Nunca antes ideologias haviam explicitado assim esse objetivo mundial. Isso foi realmente a “vitória técnica” a que Schonfield e Spengler aludem. E essa auto-imagem única que se projeta como o modelo adequado para todos, podemos identificar como Européia. Esta auto-imagem e sua projeção fazem parte de um processo secular [centuries-old] através do qual os Europeus milagrosamente se tornaram o paradigma universal para toda a humanidade.

Embora seja claro que tanto a formulação cristã quanto a Romana poderiam servir como declarações ideológicas de um empreendimento imperialista mundial, também é claro que as duas não poderiam coexistir como ideologias concorrentes. Mas isso não constituía uma oposição irreconciliável. Sua síntese fazia muito sentido político. Ela foi representada na cooptação da Igreja pelo e para o propósito do Estado, ou pode-se facilmente inverter esta afirmação. A solução era, de fato, culturalmente, bem como historicamente, atraente. As duas ideologias, colocadas ao serviço de um grupo cultural e adotando valores e objetivos compatíveis, trabalhavam lado a lado, para comandar as mesmas lealdades, para conquistar o mesmo mundo.

A conversão de Constantino é muitas vezes caracterizada por historiadores Europeus como um “ponto de viragem” na história Européia. Norman Baynes diz que a conversão de Constantino é difícil de explicar com base no que veio antes dele e que ele “desviou o fluxo da história humana”.*

[ * — Norman Baynes, “Constantine The Great and the Christian Church,” in The Proceedings of the British Academy, Vol. XV, Humphrey Milford, London, 1929, p. 3.]

Etnologicamente, não foi um “ponto de viragem”, mas a concretização de uma tendência — um empurrão numa direção já identificável no continuum do desenvolvimento da Europa Ocidental. A “conversão” de Constantino foi exigida pela asili Européia, a semente cultural. Foi um passo necessário para o crescimento e solidificação do Império Romano. As formulações religiosas que haviam existido anteriormente no Estado não eram compatíveis com os objetivos sociopolíticos que orientavam a liderança romana -— não eram compatíveis com o ideal Ocidental. Essas formulações religiosas anteriores não compartilhavam a visão imperialista.

Segundo o próprio relato de Constantino (se devemos usar Eusébio como autoridade), sua conversão estava intimamente ligada aos seus objetivos militares imediatos. Em 312 D.C. Constantino era um dos quatro concorrentes restantes de uma luta sangrenta pelo domínio do Império Romano. Nesse ano ele invadiu a Itália a partir da Gália e “conquistou o controle de todo o Ocidente por sua vitória sobre Maxêncio nas portas de Roma”.*

[ * — Eusebius “The Conversion of Constantine,” in History of Western Civilization, Topic IV, Christianity in the Ancient World, University of Chicago Press, Chicago, 1956, p. 9; orig. published 324 A.D.]

Eusébio diz que Constantino procurou em vão um deus capaz de assegurar o sucesso de seus esforços militares. Ele decidiu tentar o deus de seu pai: o deus Cristão. Ele orou a este deus, pedindo um sinal, e um [sinal] apareceu a ele,

ele viu com seus próprios olhos o troféu de uma cruz de luz no céu, acima do sol, e com a inscrição: “Conquiste por Esta. . .”

em seu sono o Cristo de Deus apareceu a ele com o mesmo sinal que tinha visto nos céus, e ordenou-lhe fazer uma semelhança do sinal que ele tinha visto nos céus, e usá-lo como uma salvaguarda em todos os combates com seus inimigos. . . . O imperador constantemente fez uso deste sinal de salvação como uma salvaguarda contra qualquer poder adverso e hostil, e ordenou que outros semelhantes a ele fossem levados à cabeça de todos os seus exércitos.*

[ * — Ibid, pp. 13-14.]

Esta, então, em um sentido muito real foi a primeira “cruzada.” Em 313 Constantino e Licínio concordaram, no Édito de Milão, com o reconhecimento oficial da religião Cristã pelo Estado. O acordo com Licínio era para “governo conjunto”, mas,

Enquanto Constantino concedia privilégios e vantagens cada vez maiores aos Cristãos, Licínio inverteu gradualmente sua política de tolerância e iniciou medidas repressivas. Tornou-se óbvio que Constantino pretendia ser o único imperador.*

[ * — Boak, p. 432.]

A visão de Timothy Barne sobre essas mesmas questões em seu livro, Constantine and Eusebius [Constantino e Eusébio], é que:

Parece natural concluir que ele foi convertido ao Cristianismo antes da Batalha da Ponte Milviana. Mas o momento de convicção psicológica pode ter seguido, em vez de ter precedido, sua própria confissão: Talvez tenha ocorrido durante a batalha, no momento em que a vitória se tornou certa. No cálculo final, no entanto, os detalhes precisos da conversão de Constantino pouco importam. Depois de 28 de outubro de 312, o imperador consistentemente se considerava um servo de Deus, encarregado de uma missão divina de converter o Império Romano ao Cristianismo.*

[ * — Timothy Barnes, Constantine and Eusebius, Harvard University Press, Cambridge, 1981.]

Este mesmo servo de “deus” provavelmente mais tarde ordenou o assassinato de Licínio, que era seu cunhado, junto com o filho de Licínio de nove anos de idade. Evidentemente, isso não entrava em conflito com o “Cristianismo” de Constantino.

Barnes diz que por volta de 324, Constantino estava aproveitando todas as oportunidades para “enfatizar a verdade do Cristianismo” por causa de suas “simpatias religiosas,” e conclui que “um imperador com essas convicções não poderia tolerar práticas pagãs que todos os Cristãos consideravam moralmente ofensivas.” *

[ * — Ibid, p. 210.]

Barnes continua: “Ele estabeleceu o Cristianismo como a religião oficial do Império Romano . . . Os Cristãos recebiam preferência na nomeação oficial . . . Constantino proibiu a construção de estátuas de culto, a consulta de oráculos pagãos, a adivinhação de qualquer espécie, e o sacrifício aos deuses sob quaisquer circunstâncias.” *

[ * — Ibid, p. 210.]

Constantino não só se preocupava com a propagação do Cristianismo por todo o Império, mas também se preocupava com a unidade ideológica entre os Cristãos. Caso Institucionalizado, o Cristianismo seria de benefício político, seus líderes devem falar a uma só voz. As disputas Teológicas eram de pouca importância no ponto de vista de Constantino quando a unidade da Igreja estava em jogo. Seu papel era, portanto, um de mediação, e ele ordenou que os bispos resolvessem suas diferenças, convocando o primeiro concílio ecumênico da Igreja Cristã, o Concílio de Nicéia, em 325.

Arthur E. R. Boak dá sua interpretação das ações e convicções de Constantino:

É claro que na véspera do encontro final com Maxêncio, ele colocou a si mesmo e seu exército sob a proteção do Deus dos Cristãos, e que ele estava convencido de que sua vitória e seu posterior sucesso em ganhar todo o Império foram devidos ao poder e o favor desta divindade. A partir de 312 d.C., ele considerou a si mesmo como designado por Deus para governar o Mundo Romano. E em troca desse reconhecimento divino, ele sentiu a obrigação de promover a causa do Cristianismo de todas as formas possíveis. Isso significava que o Cristianismo devia receber reconhecimento oficial como religião de Estado; Não só isso, devia se tornar a única religião do Estado, pois os Cristãos não podiam reconhecer outros deuses senão Um. Assim, Constantino viu no Cristianismo a religião que poderia e deveria proporcionar um vínculo espiritual entre seus súditos, bem como uma base moral para a lealdade política a si mesmo como o eleito de Deus.*

[ * — Boak, p. 433.]

É convincente acrescentar, “e uma base ‘moral’ para o imperialismo mundial”.

Boak continua.

Tendo decidido fazer do Cristianismo a única religião do Estado, ele sentiu-se também obrigado a tomar a iniciativa de assegurar a unidade da própria comunidade Cristã. . . . Constantino fez pleno uso de seu poder autocrático para desenvolver um regime totalitário para o qual as fundações haviam sido estabelecidas por imperadores anteriores.*

[ * — Ibid, p. 434.]

Esses relatos e descrições da “conversão” de Constantino, inadvertidamente (apesar das intenções de seus autores) apontam para a conveniência política e adequação do casamento das ideologias Romana e ortodoxa Cristã para as ambições imperialistas da nação Ocidental do século IV. A associação de Constantino com o novo deus — o “deus Europeu” — deu-lhe o apoio adicional oferecido pela sanção religiosa de seu poder político e militar, e a religião que ele escolheu teve a vantagem de incorporar uma visão de poder e controle mundial completos. Eusébio diz: “Assim, então, o Deus de todos, o Supremo Governador de todo o universo, por sua própria vontade nomeou Constantino, o descendente de tão renomado pai, para ser príncipe e soberano, de modo que, enquanto outros haviam sido elevados a este distinção pela eleição de seus semelhantes, sua [de Constantino] é a única cuja elevação nenhum mortal pode se gabar de ter contribuído”.*

[ * — Eusébio, pp. 10-11.]

Esse processo, posto em movimento por Constantino, foi solidificado ainda mais por Teodósio, no Código Teodosiano.

No século V, o Senado era completamente Cristão. Já em 380 d.C., Teodósio ordenou a todos os seus súbditos que aceitassem o credo Cristão formulado no Concílio de Nicéia em 325. Em 391 ele ordenou a destruição da imagem e do templo de Serapis em Alexandria, um passo que soou o gemido de morte do paganismo na parte oriental do Império. No ano seguinte, ele proibiu incondicionalmente o culto pagão sob as penalidades de traição e sacrilégio. Teodósio II continuou a perseguição vigorosa dos pagãos. A adesão às crenças pagãs foi declarada criminosa, e no Código Teodosiano as leis contra os pagãos estão incluídas entre as leis que regulam a vida cívica.*

[ * — Boak, p. 502.]

Constantino havia lançado as bases para a proclamação do Cristianismo como a religião de um Estado Romano ortodoxo. Foi inteligência sua reconhecer a compatibilidade, em vez do antagonismo, entre os objetivos políticos do Estado Romano e a ideologia Cristã. Muitos historiadores Europeus, de fato, iniciam o período Medieval da cultura Européia com a inovação de Constantino.

Para que a identidade dessas ideologias não permaneça muito abstrata ou ambiguamente exposta, vamos apresentar aqui alguns dados etnográficos muito concretos, isto é, as próprias declarações de Constantino sobre seus objetivos e interpretação de sua missão “nova Cristã” [“new Christian” mission]. Constantino diz daqueles que não adoravam seu deus supremo com veneração apropriada,

Eu os destruirei e os dispersarei. . . . O que pode ser feito por mim mais consoante com minha determinação fixa e com o dever de um imperador do que, tendo dissipado erros e cortado todas as opiniões infundadas, fazer com que todos os homens apresentem ao Deus onipotente, a verdadeira religião, a concórdia sincera, e a adoração que Lhe é devida.*

[ * — Baynes, Constantine The Great, p. 15.]

Isto é tirado de uma carta escrita por Constantino a um grupo de bispos no Concílio de Arles sobre a política oficial a ser adotada em relação aos “pagãos” e aos Donatistas. Os Donatistas eram uma seita Cristã que se opunha ao alinhamento da Igreja com o Governo Imperial. Esta posição é análoga à tentativa de colocar um veleiro em um curso “contra-o-vento.” Pois o dado fora lançado; a “Europeanidade” [“Europeanness”] já tinha sido posta em movimento — ganhando impulso rapidamente, seu desenvolvimento bem sucedido (o cumprimento da asili) exigia o modelo monolítico e a justificação ideológica que este alinhamento oferecia. Constantino diz,

Deus buscou o meu serviço e julgou este serviço adequado para alcançar seu propósito. Começando na Grã-Bretanha, Deus havia dispersado os poderes do mal para que a humanidade pudesse ser chamada à verdadeira religião, instruída através do meu intermédio, e que a bendita fé pudesse se espalhar sob a Sua mão guiadora. E do Ocidente, acreditando que esse dom tinha sido confiado a mim mesmo, eu vim para o Oriente, que estava em maior necessidade de minha ajuda.*

[ * — Ibid, p. 17.]

Licínio, no Oriente, que não reivindicava o deus Cristão, permaneceu temporariamente no caminho do controle unificado de Constantino. A perseguição de Licínio aos Cristãos torna-se compreensível como uma necessidade política em seus esforços para impedir a tomada de Constantino. Da mesma forma, a realização das ambições de Constantino foi facilitada por sua missão na difusão da fé.

Eu sabia que, se de acordo com minhas orações eu pudesse estabelecer um acordo comum entre todos os servos de Deus, então a necessidade do Estado poderia, como o fruto desse acordo, sofrer uma mudança em consonância com os desejos piedosos de todos.*

[ * — Ibid, p. 20.]

A interpretação de Norman Baynes dos objetivos de Constantino é declarada como dois objetivos separados; Derrubar Licínio e, assim, “curar o corpo do mundo Romano,” e “unir seus súditos numa mesma crença religiosa comum.” *

[ * — Ibid, p. 19.]

Ele inclusive observa a “estreita ligação entre as fortunas do Estado e a unidade da Igreja,” na mente de Constantino.*

[ * — Ibid, p. 31.]

No entanto, esse historiador do desenvolvimento Europeu inicial nunca interpreta explicitamente os motivos de Constantino como sendo imperialistas. Isto porque esta interpretação do desenvolvimento Europeu não serve os interesses do nacionalismo Europeu. É bem claro, mesmo com suas próprias palavras, que a causa Cristã deu a Constantino uma poderosa ferramenta para unificar Roma sob seu controle e conquistar aqueles que ainda não estavam dentro deste Império. Por isso Constantino opõe-se veementemente à desunião entre os Cristãos confessos: “Abram para mim, por tua unidade, o caminho para o Oriente.” *

[ * — Ibid, p. 20.]

O tema recorrente nas suas diretivas aos seus bispos é a unidade; pois a unidade era a necessidade política imediata. O mundo não poderia tornar-se uma hegemonia Européia até que a cultura Européia se solidificasse.
Constantino diz,

Pois seria uma coisa terrível — uma coisa muito terrivel — que agora, quando as guerras terminaram e ninguém se atreve a oferecer mais resistência, devamos começar a atacar uns aos outros e assim dar desculpa para o prazer e o riso do mundo pagão.*

[ * — Ibid, p. 26.]

Uma das disputas internas dentro da Igreja durante o reinado de Constantino tinha a ver com quem, de fato, era um Cristão; particularmente no que se refere àqueles que desejavam converter-se. Quando Arius anunciou que se “entregara” ao deus Cristão, Atanásio não queria aceitá-lo. Constantino escreveu a Atanásio: “Agora você conhece minha vontade: a todos aqueles que desejam entrar na Igreja, vocês dêem livre entrada.” Isso tinha que ser uma política oficial para que o manto do Cristianismo viesse a fazer seu trabalho para o imperialismo da Europa Ocidental. Sua contrapartida era a oferta da cidadania Romana, à qual todos aspiravam, à “elite” de outras culturas. Ambos eram inclusivas no sentido de que ninguém deveria ser excluído do domínio Europeu. Da cidadania Romana, Aristides, escrevendo cerca de dois séculos antes do tempo de Constantino (cerca de 144 ou 156 d.C.) diz:

Dividindo em dois grupos todos aqueles em seu império — com esta espada eu indiquei todo o mundo civilizado — você tem em todos os lugares nomeados para a sua cidadania, ou mesmo a parentesco com você, a melhor parte do talento, coragem, e liderança do mundo, enquanto o resto, você reconhece como uma aliança sob sua hegemonia. . . . Nem os mares nem o continente são barreiras à cidadania, nem a Ásia nem a Europa se dividem em seu tratamento aqui. Em seu império todos os caminhos estão abertos a todos. Ninguém digno de regra ou de confiança permanece um estrangeiro, mas uma comunidade civil do Mundo foi estabelecida como uma República Livre sob um, como em um centro cívico comum, a fim de receber cada homem o seu devido.*

[ * — Aristides in William H. McNeill, History of Western Civilization: Selected Readings, University of Chicago Press, Chicago, 1953, p. 31.]

As citações anteriores, tiradas da própria correspondência e declarações de Constantino, são incluídas com o objetivo de fornecer exemplos concretos da relação potencialmente isomórfica entre as ideologias imperialistas-mundiais Cristãs e Romanas e a realização real de sua unicidade de propósito através da política de Constantino. A fonte para estas citações é uma conferência dada por Baynes em 1930. Seu objetivo é mostrar que o interesse principal de Constantino era trazer a Cristandade ao mundo pagão. Isto Baynes argumenta em oposição à interpretação divergente que Edward Schwartz apresenta em The Emperor Constantine and the Christian Church [O Imperador Constantino e a Igreja Cristã]. A interpretação de Baynes da análise de Schwartz é a seguinte:

Ele [Schwartz] encontrou o Abre-te-Sésamo para a Compreensão do reinado na resolução de Constantino para explorar em seu próprio interesse a organização que deu à Igreja Cristã sua força corporativa: Através da aliança com a Igreja Constantino procurou alcançar a vitória e o domínio exclusivo do Mundo Romano.*

[ * — Baynes, Constantine The Great, p. 5.]

A interpretação de Theodor Brieger (1800) é também uma afirmação vigorosa do que Baynes denomina a “visão de motivações puramente políticas.” Schwartz é o “representante moderno desse ponto de vista.” Mas Baynes é inflexível:

Creio que sua concepção do caráter e dos objetivos similares de Constantino e Atanásio é essencialmente desumana. Essa prodigiosa simplificação não faz jus à complexidade da personalidade humana. A visão de que Constantino adotou na diplomacia religiosa como seu princípio de ação a máxima Romana “divide et impera” [“dividir para reinar”] eu acho impossível acreditar.*

[ * — Ibid, p. 36.]

De uma perspectiva Africano-centrada, por outro lado, acho que a visão de Schwartz é a mais “humana” das interpretações. É a explicação de Baynes em sua própria admissão que não oferece uma continuidade histórico-cultural. Sua relutância, neste caso, para fazer o que ele supostamente foi bem treinado para fazer como historiador, o obriga a fixar-se sobre a questão absolutamente irrelevante e discutível de saber se Constantino era ou não um “verdadeiro convertido!” Então, torna-se difícil para ele explicar Constantino, e assim ele recorre à teoria da “grande personalidade”:

Se a reconstrução das “dificuldades” passadas é, às vezes, causada pela interposição no curso da história de personalidades excepcionais que resistem à racionalização e permanecem inesperadas e embaraçosas . . . [Constantino foi] um bloco errático que desviou o curso da história humana.*

[ * — Ibid, p. 3.]

Novamente, é compreensível, em termos etnológicos, que as interpretações das políticas religiosas de Constantino como sendo politicamente motivadas são impopulares dentro da tradição da teoria social Européia. A interpretação da qual o ponto de vista de Schwartz é representativo (embora praticamente não reconhecido) é consistente com a realidade do interesse pessoal humano dentro do contexto paroquial de uma determinada cultura e configuração ideológica. Da mesma forma, tal interpretação é diametralmente oposta à postura “desinteressada,” “benéfica,” e “altruísta” do “universalismo” Europeu que foi projetada como parte da propaganda do imperialismo cultural Europeu desde os estados arcaicos dessa cultura. A interpretação de Constantino por parte de Baynes, portanto, nos fornece um exemplo etnográfico do nacionalismo Europeu.

 

 

A Ameaça do Cristianismo Não-Ortodoxo

Uma das preocupações deste capítulo é a relação entre religião e consciência nacional, ou seja, comportamento. Em nenhum lugar esse relacionamento é melhor exemplificado então na história cultural Européia. Em nenhuma [outra] cultura o relacionamento de suporte da religião formalizada é mais bem sucedidamente desenvolvido e elaborado. Um dos correlatos desta visão da relação entre religião e nacionalismo é que, para entender a dinâmica de uma a dinâmica de uma declaração religiosa particular, é preciso primeiro estar ciente do compromisso ideológico das pessoas que se identificam com ela, seu utamaroho e sua relação com outras culturas. Isto é, obviamente, um desvio radical da abordagem usual para o estudo da religião e está em conflito direto com teólogos Cristãos. Aqueles que argumentariam as implicações políticas “revolucionárias” do Cristianismo (ver literatura sobre a Teologia da Libertação) também implicam, de forma pouco convincente, que a busca imperialista de 2000 anos da Europa Ocidental, e então a Euro-América, foi mantida com sucesso apesar de uma religião que falava por objetivos mais humanistas. Isso é simplesmente implausível e não faz sentido. Não é a contradição, mas a consistência o que tem levado ao sucesso imperial da Europa Ocidental.

Elaine Pagels, em sua interpretação do significado dos desenvolvimentos do Cristianismo primitivo, sustenta minha visão na medida em que aponta para as implicações sociais e políticas do Cristianismo apostólico, em oposição àquelas da tradição Gnóstica que a igreja ortodoxa condenou e sobre a qual triunfou (embora não devamos confundir o triunfo político com o triunfo espiritual). Talvez seja mais conveniente começar com uma discussão das origens Africanas ou Keméticas (Egípcias antigas) da mitologia e simbolismo Cristãos, embora Pagels não se refira a elas. Mas, como não podemos aproveitar o tempo aqui para tal discussão, referimos o leitor às obras de Gerald Massey (1973), John G. Jackson (1985), Yosef Ben Jochannan (1973) e outros [Alvin Boyd Kuhn, et Al.]. Basta dizer que a mitologia e o simbolismo em torno de Usir, também conhecido como Asar, e Osiris pelos Gregos, introduziram o conceito de salvador ressuscitado 3000 anos antes do advento do Cristianismo. Um estudo desta tradição também explica por que a data de 25 de Dezembro é usada para a data de nascimento de Jesus, o simbolismo do estábulo como um lugar para seu nascimento, os três “reis magos” [“wisemen”], e assim por diante. *

[ * — Jackson, pp. 65-80.]

Claramente, no entanto, tinha que ter havido algo “especial”, algo “diferente” sobre a formulação do que agora é aceito como Cristianismo bíblico, ou não teria sido tão adequado ao utamaroho Europeu arcaico, como expressado no Estado Romano . No livro de Pagels, The Gnostic Gospels [Os Evangelhos Gnósticos], uma das coisas que já sabemos é reafirmada: o Gnosticismo era inaceitável e considerado heresia por aqueles que estavam no processo de estabelecer a Igreja Cristã ortodoxa. Esses evangelhos foram “apagados” na religião. Pagels oferece-nos uma explicação plausível, que se adapta à minha compreensão da realidade cultural da Europa Ocidental. O Gnosticismo não era suficientemente diferente das fontes Keméticas e outras antigas. Seu utamaroho estava muito perto dessas. Ele não era politicamente orientado nem materialista o suficiente. A ressurreição era entendida simbólica e espiritualmente — muito mais profundamente do que existência “física” infinita. Pagels nos diz que os Gnósticos acreditavam que a ressurreição deveria ser espiritualmente experimentada, que a pessoa experienciava Cristo em um nível espiritual. “Isso pode ocorrer em sonhos, em transe ecstásico, em visões, ou em momentos de iluminação espiritual.” *

[ * — Elaine Pagels, The Gnostic Gospels, Vintage, New York, 1981, p. 5.]

Renascimento para os antigos era, afinal, um resultado da iluminação e do autoconhecimento intenso — um aumentado  nível espiritual de desenvolvimento. Mas, contrariamente a isso, a ortodoxia que se opunha à visão Gnóstica, foi realmente ameaçada por ela, argumentando como Tertuliano fez, que “como Cristo ressuscitou corporalmente do túmulo, assim todo crente deveria esperar a ressurreição da carne.” *

[ * — Ibid, p. 4.]

Curiosamente, esta é precisamente a crítica que Schonfield fez ao Cristianismo, ao compará-lo com o Judaísmo. *

[ * — Schonfield, p. 4.]

Mas, neste caso, a “materialização” do conceito de Deus não serve para aproximá-lo do humano, mas facilita seu uso como justificativa para a autoridade. Tertuliano insiste que a ressurreição de Cristo é inegavelmente física, material em um sentido terrestre muito real. “Tertuliano declara que qualquer um que nega a ressurreição da carne é um herege, e não um Cristão”.*

[ * — Elaine Pagels, The Gnostic Gospels [Os Evangelhos Gnósticos], Vintage, New York, 1981, p. 5.]

A ênfase Gnóstica no crescimento e desenvolvimento pessoal e espiritual, juntamente com a sua desafetação de proselitismo, o tornaram inadequado para a busca imperial.

Pagels levanta a pergunta convincente: “Por que a tradição ortodoxa adotou a visão literal da ressurreição?”*

[ * — Elaine Pagels, The Gnostic Gospels, Vintage, New York, 1981, p. 5.]

E eu acrescentaria: por que eles estavam tão ameaçados pelos ensinamentos Gnósticos e aqueles dos antigos Kemitas? Pagels abre o caminho para as respostas. Ela nos diz que, após a sua ressurreição no Novo Testamento, Jesus “prova” aos discípulos que ele não é “um fantasma”, e “Tomé declara que não vai acreditar que Jesus realmente tenha ressuscitado da sepultura, a menos que ele pessoalmente possa ver e tocá-lo.” *

[ * — Elaine Pagels, The Gnostic Gospels, Vintage, New York, 1981, p. 5.]

Mas, ela continua, outros relatos no Novo Testamento podem levar à conclusão de que algumas pessoas experimentaram visões do retorno de Jesus. “Paulo descreve a ressurreição como “um mistério,” a transformação da existência física para a espiritual.” *

[ * — Pagels, p. 7.]

As questões relacionadas reafirmadas: Por que o Cristianismo ortodoxo insiste na interpretação literal e física, em oposição a uma interpretação mais metafísica, transcendental.  e por que eles rotularam outras interpretações como heréticas? *

[ * — Pagels, p. 7.]

A resposta, de acordo com Pagels, é que a doutrina da ressurreição corporal também serve uma função essencialmente política. . . . [Itálico de Pagels]

Ela legitima a autoridade de certos homens que afirmam exercer liderança sobre as igrejas como sucessores do apóstolo Pedro. A partir do segundo século, a doutrina [da ressurreição corporal] serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos, a base da autoridade papal até hoje.*

[ * — Pagels, p. 7.]

O que Pagels argumenta é que a idéia ou reivindicação da ressurreição de Jesus forneceu uma fonte de autoridade para seu sucessor terrenal: Pedro. Era crucial que uma tal afirmação fosse possível, dado que o líder ou autoridade absoluta no movimento havia desaparecido, e centenas de pessoas alegavam interpretar seus ensinamentos de tantas maneiras diferentes. Para que Pedro fosse a “rocha” estabelecida ou uma organização estruturada e institucionalizada, todos os outros grupos tinham que ser desacreditados. Que melhor maneira do que através de seu contato real com um Jesus ressuscitado fisicamente, que lhe havia explicitamente dado autoridade para iniciar a institucionalização de seus (de Jesus) ensinamentos. * (Veja Mateus 16: 13-19.)

[ * — Ibid, p. 8]

Dada esta necessidade política para uma doutrina da ressurreição física, os ensinamentos Gnósticos de um conceito mais metafísico e simbólico de ressurreição eram os mais ameaçadores ao estabelecimento da igreja. Não só os apóstolos obtiveram a autoridade dessa maneira, mas eles eram os únicos que podiam conferi-la aos que os sucederam. Os Cristãos no segundo século usaram o relato de Lucas para estabelecer as bases para o estabelecimento de cadeias de comando específicas e restritas para todas as gerações futuras de Cristãos, conclui Pagels. * Portanto, os Papas atuais devem depender de sua conexão com Pedro, que originalmente testemunhou a ressurreição física de Jesus, para sua autoridade.

[ * — Ibid, p. 12]

Mas os Gnósticos eram realmente heréticos, porque eles não pareciam preocupar-se com o estabelecimento de uma instituição que exercesse controle total. Eles instistiam que a ressurreição “não era um evento único no passado: em vez disso, simbolizava como a presença de Cristo poderia ser experimentada no presente. O que importava não era a vista literal, mas a visão espiritual”. * E desta forma eles continuavam a tradição das religiões de mistério que precederam o Cristianismo ortodoxo, as quais Constantino, Justiniano, Teodósio e outros estavam tão inclinados a destruir.

[ * — Ibid, p. 12]

A ênfase das formas religiosas Keméticas (Egípcias antigas) e derivadas era sobre a iniciação em um processo de desenvolvimento e iluminação espirituais. A ênfase do Cristianismo ortodoxo era (e é) sobre a aceitação de um dogma que poderia ser a base da estrutura e do controle sociopolíticos.

Esta visão de Pagels coincide com a minha análise da função da religião institucionalizada no desenvolvimento Europeu. A ênfase secular e histórica dentro da doutrina Cristã, e essa inclui as várias formas “não-ortodoxas” que evoluíram como resultado da “Reforma,” é um resultado direto da necessidade de reivindicar superioridade sobre outras religiões, o que, por sua vez, transmite superioridade e controle cultural e, portanto, político. Nenhum Cristão aceitará uma interpretação autenticamente “espiritual” ou metafísica da teologia Cristã. Ser um “Cristão” é insistir em um “Cristo histórico” (em um sentido rigidamente secular); No entanto, este adjetivo deve contradizer o nome que ele pretende descrever. A razão dessa característica estranha do Cristianismo, tal como foi interpretada no desenvolvimento da civilização arcaica Européia, tem a ver com o utamaroho que também estava se tornando padronizado, bem como as necessidades ideológicas da nova ordem. A dicotomia espúria entre história e mitologia se tornaria a serva da dicotomia civilizado/primitivo, tão essencial para o nacionalismo cultural e o imperialismo da Europa Ocidental. De acordo com o nacionalismo Europeu, outras tradições e aquelas anteriores eram apenas expressões de crenças mitológicas: o Cristianismo era uma expressão de fato histórico. Até hoje, a frase de aposição mais ameaçadora que um Cristão declarado pode se deparar é “Mitologia Cristã.” Aceitar sua validade é abalar o fundamento de sua crença.

Os Gnósticos, como os Africanos e muitos não-Cristãos contemporâneos, estavam preocupados com a realização da intuição espiritual, que revelaria a natureza da realidade cósmica. De acordo com Pagels, eles falavam sobre “a possibilidade de encontrar o Cristo ressuscitado no presente”.*

[ * — Ibid, p. 14]

Mas imagine o que isso faria ao estabelecimento da Igreja apostólica como instituição se as pessoas pudessem continuar a “testemunhar a ressurreição.” Os Gnósticos alegavam ter mantido o aspecto esotérico dos ensinamentos de Jesus, que eram necessariamente secretos e só podiam ser revelados aos iniciados.*

[ * — Ibid, p. 17]

Isto é, obviamente, como todos os antigos sistemas espirituais Africanos eram organizados, que ainda representa a estrutura básica do aprendizado e desenvolvimento espiritual entre os Africanos que aderem às suas próprias concepções “não-Européias.” Parece razoável supor que o próprio Jesus foi um iniciado de um “sistema de mistério” derivado, embora adulterado, uma vez que seus ensinamentos podem ser interpretados como consistentes com essas tradições anteriores e foi a partir dessas tradições que o Cristianismo evoluiu.

Ambos Pagels e eu enfatizamos a institucionalização do Cristianismo. Ela diz que “a controvérsia sobre a ressurreição, então, mostrou-se crítica na formação do movimento Cristão em uma religião institucional.* Compartilho essa ênfase por causa do papel crítico desta instituição dentro da matriz do imperialismo Europeu, especialmente em certas etapas do desenvolvimento Europeu.

[ * — Ibid, p. 30]

O gnosticismo não poderia levar a desenvolvimentos subseqüentes — a cooptação Romana, a “conversão” de Constantino, necessárias para a expansão do controle tecno-político imperial. Pois, de acordo com Pagels, os Gnósticos argumentavam que “apenas a própria experiência oferece o critério definitivo da verdade . . . .” Ela nos diz que “eles celebravam todas as formas de invenção criativa como evidências de que uma pessoa se tornou espiritualmente viva. Nesta teoria, a estrutura da autoria [autoridade] nunca pode ser fixada em um quadro institucional: ela deve permanecer espontânea, carismática e aberta.” *

[ * — Ibid, p. 30]

Mas não é assim que os impérios são construídos. Isso não se adequa à asili européia, e a busca imperial Européia tem sido mais bem sucedida do que qualquer outra, porque sempre se baseou na reivindicação de [uma] cultura superior. Nos estágios iniciais da busca, à medida que o utamaroho Europeu tomou forma, uma religião institucionalizada e secularmente codificada, firmemente estruturada, foi a chave para essa reivindicação.

. . . Em termos de ordem social. . . O ensinamento ortodoxo sobre a ressurreição teve um efeito diferente: ele legitimava uma hierarquia de pessoas através de cuja autoridade todas as outras deviam se aproximar de Deus. O ensinamento Gnóstico. . . era politicamente subversivo dessa ordem: ele alegava oferecer a todos os iniciados acesso direto a Deus, do qual os próprios sacerdotes e bispos poderiam ser ignorantes.*

[ * — Ibid, p. 32]

Certamente, não existe um imperativo moral universal ou absoluto que dite que é culturalmente superior reconhecer a existência de um único deus. Portanto, na análise etnológica da cultura Européia, devemos buscar tendências dentro dela que fariam desejável o monoteísmo declarado. Olhamos para a ideologia Europeia — mais especificamente para Roma no momento da sua Cristianização. Uma interpretação político-ideológica do significado do ideal monoteísta, novamente, faz sentido. A análise de Pagels se encaixa: “Como a doutrina da ressurreição corporal de Cristo estabelece o quadro inicial para a autoridade clerical, assim a doutrina do ‘Deus único’ confirma, para os Cristãos ortodoxos, a instituição emergente do  ‘bispo único’ como monarca (‘único governador’) da Igreja”.*

[ * — Ibid, p. 56]

Ela argumenta que outro aspecto da ameaça à ortodoxia que o Gnosticismo representava era a falta de reconhecimento da hierarquia da Igreja. Valentino [Valentinus] diz que os Gnósticos “unem-se como iguais, desfrutando de amor mútuo, ajudando-se espontaneamente uns aos outros,” em oposição aos Cristãos comuns, que “queriam comandar uns aos outros, superando-se mutuamente em sua ambição vazia,” inflados com ” concupiscência pelo poder,” “cada um imaginando que ele é superior aos outros.” Enquanto a “concupiscência pelo poder” é a natureza da asili Européia, Pagels nos diz que os Gnósticos se recusavam a classificar-se “em ordens superiores e inferiores dentro de uma hierarquia e que seguiam o princípio da igualdade estrita.”*

[ * — Ibid, p. 48-49.]

Por outro lado, ela diz que Tertuliano, advogado da ortodoxia, considerava certas distinções essenciais para a ordem da Igreja: a saber, entre Cristãos “recém-chegados e experientes; entre mulheres e homens; entre um clero profissional e pessoas ocupadas com empregos seculares, entre leitores, diáconos, sacerdotes, e bispos — e acima, entre o clero e os leigos.” *

[ * — Ibid, p.51.]

Os Gnósticos enfatizavam a realização espiritual e diziam que se relacionavam com um conceito de Deus que estava além da mera imagem de deus a quem os Cristãos comuns se relacionavam. Eles chamaram esse deus menor de “demiurgo” e disseram que esse “criador” fez falsas alegações de poder. Na explicação de Pagels sobre o pensamento Gnóstico, alcançar a gnose envolvia “chegar a reconhecer a verdadeira fonte do poder divino — ou seja,”a profundidade” de todo ser.” Mas o deus de Clemente, Ireneu, e Tertuliano afirmou: “Eu sou Deus, e não há outro … Eu sou um Deus ciumento.” E para eles, o conceito de uma força transcendente acessível através da iniciação era “heresia” que “encorajava insubordinação à autoridade clerical.” Para Irineu, as reuniões dos Gnósticos eram “desautorizadas.” O conceito de autoridade é fundamental. Se o crescimento espiritual tivesse sido o foco de irineu e outros, os Gnósticos não teriam sido ameaçadores. A Igreja representava uma estrutura de autoridade, e essa estrutura tinha que ser monolítica. Portanto, nas palavras de Pagels: “Se Deus é Um, então só pode haver uma igreja verdadeira, e apenas um representante do Deus na comunidade — o Bispo.” *

[ * — Ibid, pp. 44, 46, 47, 52.]

Este “Deus Único” tornou-se a base para o poder do “Imperador Único” da “Civilização Única” também. A crença nele deu autoridade ao imperador para conquistar todos os não-crentes em seu nome. Em certo sentido, o Gnosticismo era anacrônico, enquanto o Cristianismo ortodoxo era “pontual no tempo.” As formulações religiosas que eram mais espirituais e transcendentes, menos políticas e seculares na intenção, simplesmente não eram expedientes.

 

 

Agostinho e Conservadorismo Político

 

A força da formulação ideológica Cristã na sua função de ferramenta do imperialismo cultural Europeu é dupla: (1) Ela justifica sutilmente dois tipos de atividade política: isto é, apela a dois estratos diferentes da população mundial. (2) Ela unifica os conquistadores enquanto simultaneamente pacifica os conquistados. Isto, em parte, reflete-se nos tons ou “estados-de-espírito” [“moods”] surpreendentemente diferentes do Antigo e Novo Testamentos em termos de suas possibilidades políticas para o Império Romano. O Antigo Testamento é extremamente militarista e agressivo. Ele é muitas vezes uma diretriz revelada: o comando flagrante de que um grupo cultural homogêneo e limitado resista a todas as influências externas através da proibição do casamento entre outros e de outras relações sociais com grupos culturais que aderem a ideologias diferentes. A tarefa do Novo Testamento, por outro lado, é muito mais complicada. O que mais tarde foi interpretado como a diretiva de agressão é declarado como o desejo de espalhar a iluminação. Aquilo que se desenvolveu no mandato de trazer “aqueles que não são como nós sob nosso domínio” é moldado na retórica da “salvação de almas,” e, ao mesmo tempo, vende aceitação passiva a essas “almas.” A declaração Cristã, como um aspecto estabelecido da cultura Européia, é, afinal, uma ideologia nacionalista (na medida em que é a expressão da ideologia de uma cultura particular, assim como qualquer declaração religiosa é) e sua função a este respeito é a de servir os interesses dessa cultura. A docilidade e a falta de agressão dos povos conquistados atende esse interesse, e a diretiva Cristã é de natureza dupla; Enquanto ela fornece uma justificativa para uma ordem mundial ao serviço de um deus Europeu, os seus ensinamentos encorajam os outros a serem não-políticos e desencorajam o seu nacionalismo cultural (identificação com seus deuses e sistemas de crenças nacionais).

Há uma curiosa caracterização de Jesus como um “revolucionário” na literatura de Teologia da Libertação e Teologia Negra. Infelizmente, a perseguição e a impopularidade não necessariamente tornam as ideias revolucionárias. A ideologia Judaica em seu nacionalismo teimoso poderia, nesse sentido, ser considerada mais revolucionária diante da política Romana do que a de Jesus e seus seguidores. Seria muito difícil imaginar, se não colocássemos nossos dados no contexto da asili Européia, como qualquer historiador ou teórico social poderia identificar as chamadas “virtudes Cristãs;” Isto é, a “ética Cristã” ou o modo de comportamento como sendo de alguma forma novo ou inovador no momento de Jesus. O mandato para se considerar e tratar uns aos outros como irmãos e irmãs (ou seja, como membros de um grupo de parentesco “familiar”) existiu provavelmente desde os primórdios da civilização humana na África. A declaração ideológica Africana, deste modo de comportamento como um imperativo étnico é muito mais filosóficamente profunda do que a afirmação Cristão-Européia e, é claro, muito mais consistente e autêntica. Ela se origina em uma visão espiritualista.*

[ * — Dona Marimba Richards, “Let the Circle Be Unbroken; The Implications of African-American Spirituality,” in Presence Africaine, Nos. 117/118, 1981, pp. 247-292.]

O que era “novo” sobre os ensinamentos que pretendiam ter resultado das atividades de Jesus era que eles proclamavam que a pessoa deveria tratar os membros de outros grupos culturais dessa maneira e, o mais importante, deveria tratar os inimigos nessa (mesma) maneira — os “inimigos” são aqueles que eram hostis ao grupo cultural ou a “família” da pessoa. Esta diretiva é, obviamente, debilitante e castradora ao nacionalismo político-cultural e contraria as exigências da autodeterminação. Esta característica, juntamente com a da direção da atenção para “outro mundo” em que a justiça é procurada, pode certamente se combinar para formar uma nova declaração, mas dificilmente pode ser chamada de uma [característica] politicamente revolucionária.

Otto Spengler se preocupa com essa dualidade política da doutrina Cristã em The Decline of the West [O Declínio do Ocidente]. Ele acusa aqueles no Ocidente que buscam aplicar a “fraternidade” e o “amor” adotados por Jesus aos “infelizes” e “oprimidos” na sociedade do seu dia de terem mal interpretado os ensinamentos de Jesus:

Moralizante é o Filisteanismo do século XIX. Atribuir propósitos sociais a Jesus é blasfêmia. Suas declarações ocasionais de tipo social, na medida em que são autênticas e não meramente ditos atribuídos, tendem apenas a edificação. . . . Religião é, primeira e ultimamente, metafísica, coisa do outro mundo [otherworldliness], consciência em um mundo do qual a evidência dos sentidos apenas ilumina o primeiro plano. É a vida dentro e com o supra-sensível.*

[ * — Spengler, Decline of the West, Vol. II, p. 217.]

Spengler argumenta que os ensinos ostensivos de Jesus são irrelevantes para a vida Européia; Ou seja, que eles não deveriam ser usados ​​de maneira a agir contra o interesse próprio da elite Européia Ocidental governante. Ele dá exemplos de passagens que, em sua opinião, apontam para a intenção apolítica (asocial) dos ensinamentos Cristãos. É à interpretação errada desses ensinamentos, de modo a dar-lhes relevância política para a situação dos pobres, dos oprimidos e dos desprezados racialmente, que Spengler se opõe tão veementemente:

“Meu reino não é deste mundo,” e somente aquele que pode olhar para as profundezas que este flash ilumina pode compreender as vozes que saem delas. São os períodos tardios, da cidade, que, já não capazes de sondar nas profundezas, tornaram-se os remanescentes da religiosidade no mundo externo e substituíram a religião pelas humanidades e a metafísica pela moralização e a ética social.

Em Jesus, temos o oposto direto: “Dê a César as coisas que são de César” significa: “Se ajustem aos poderes do mundo dos fatos, sejam pacientes, sofram e não perguntem se eles são ‘justos’.” A única coisa que importa é a salvação da alma, “considere os lírios” significa: “Não preste atenção às riquezas e à pobreza, pois ambas prendem a alma a se preocupar com este mundo.” “O homem não pode servir a Deus e a Mammon” — por Mammon se entende o todo da realidade [the whole of actuality]. É superficial, e é covarde, discutir o significado dessa demanda. Entre trabalhar pelo aumento das próprias riquezas e trabalhar para a facilidade social de todos, ele não teria sentido nenhuma diferença.*

[ * — Spengler, Decline of the West, Vol. II, p. 217.]

De fato, é a interpretação de Spengler que é consistente com a do Estado Romano, de Constantino em diante, e é esse mesmo “potencial” dentro da ideologia Cristã que lhe permitiu ser uma parte consistente da cultura Européia, desde então até o presente. Mas Spengler é desnecessariamente crítico. A doutrina Cristã apenas ajudou o ideal imperialista, não levantou obstáculos a sua realização. Qualquer um que tenha, com ilusões de altruísmo, abordado o campo de batalha armado apenas com a retórica Cristã, o fez totalmente despreparado para fazer qualquer coisa além de promover os objetivos da expansão Européia.

A compatibilidade do “caminho Cristão” com os objetivos do Estado Romano é defendida por Santo Agostinho em A Cidade de Deus [The City of God]. Esta foi uma das muitas “apologias” escritas em defesa do Cristianismo contra seus críticos não-Cristãos, bem como os Donatistas. Através de Agostinho, a compatibilidade política da ideologia Romana e Cristã e, portanto, o papel “contra-revolucionário” dos seguidores de Jesus e de Paulo são claramente demonstrados. Agostinho diz que toda autoridade terrena é “aprovada” e “proveniente” de Deus. Ele cita nas escrituras:

Prestem atenção, Ó Reis, e entendam, pois é o Senhor quem vos dá domínio; o Altíssimo é quem vos dá o poder.”
Sabedoria de Salomão, vi, 3

Pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos

Romanos xiii, 1-2

Norman Baynes parafraseia o método do argumento de Agostinho,

Porque os governantes são escolhidos pela Providência divina, os servos de Cristo são convidados a tolerar até o pior e mais vicioso dos Estados, e isso eles podem fazer percebendo que na Terra eles são apenas peregrinos e que a sua casa não está aqui, mas no céu .*

[ * — Norman Baynes, The Political ideas of St. Augustine’s De Civitate Dei, George Philip and Son, London, 1949, pp. 89.]

Devemos lembrar que o propósito de Agostinho é convencer a Igreja de que o Estado Romano é o seu veículo terrenal apropriado e, ao mesmo tempo, assegurar aos políticos que o Cristianismo não deveria interferir com o Estado, mas, de fato, complementá-lo . Nas palavras de Baynes, “São Paulo exortou a obediência ao estado com o argumento de que o Estado recompensa o bem e castiga o mal.” *

[ * — Ibid, p. 7.]

Na visão de Agostinho, “Deus” ajudou os Romanos, pois, apesar de serem vãos buscadores de glória terrena, de acordo com o padrão relativo do Estado terrenal, eles eram pessoas boas. E, ao recompensá-los, “Deus” tinha em vista um propósito adicional — que os Romanos poderiam, em seu próprio nível, ser um exemplo e uma inspiração para os Cristãos.

Sendo assim, nós não atribuímos o poder de conceder reinos e impérios a qualquer um exceto o Deus verdadeiro, que dá a felicidade no reino dos céus aos piedosos somente, mas dá o poder real [kingly power] na terra aos piedosos e aos ímpios, como Lhe apraz, cujo prazer é sempre justo. . .
O mesmo é verdade em relação aos homens e às nações. Aquele que deu poder a Mário deu também a Caio César; Aquele que o deu a Augusto deu também a Nero; Ele também o deu aos imperadores mais benignos, os Vespasianos, pai e filho, deu-o também ao cruel Domiciano; E, finalmente, para evitar a necessidade de passar por todos eles, aquele que o deu ao Cristão Constantino deu-o também ao apóstata Juliano, cuja mente brilhante foi enganada por uma curiosidade sacrílega e detestável, estimulada pelo amor ao poder.*

[ * — Agostinho, Cidade de Deus, em The Writings of St. Augustine [Os Escritos Básicos de S. Agostinho], Vol. II. Whitney J. Oates (ed.) Random House, New York, 1948, p. 86.]

Agostinho escreve isso a Marcelino:

Que aqueles que dizem que a doutrina de Cristo é incompatível com o bem-estar do Estado nos dêem um exército tal como a doutrina de Cristo exige que os soldados sejam, que eles nos dêem subordinados, tais maridos e esposas, tais pais e filhos, tais mestres e servos, tais Reis, tais juízes, até mesmo tais pagadores e coletores de impostos, como a religião Cristã ensinou que os homens deveriam ser e, em seguida, que eles ousem dizer que isso é adverso ao bem-estar do Estado! Em vez disso, que eles não mais hesitem em confessar que esta doutrina, se fosse obedecida, seria a salvação do Estado. *

[ * — Baynes, “Political ideas,” p. 13 .]

Seria difícil declarar a compatibilidade dessas duas ideologias mais claramente do que o fez Agostinho. Niebuhr tenta absolver Agostinho das implicações desses escritos. Mas mesmo ele não pode fingir ignorar a natureza imperialista da aliança Igreja-Estado na Idade Média que Agostinho justificou, inspirou e ajudou a levar à realização.

[Agostinho identificou] a Cidade de Deus com a igreja histórica, uma identificação que acabaria por ser despojada de todas as reservas Agostinianas para se tornar o instrumento do orgulho espiritual de uma igreja universal em seu conflito com o orgulho político de um império. Esta identificação teve o mérito de introduzir uma instituição religio-política no mundo, que realmente colocou um controle sobre a autonomia das nações; mas ao preço de desenvolver nessa instituição semelhanças perigosas com o antigo Império Romano e de estabelecer o papa como uma espécie de César espiritualizado.” *

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 216.]

Na visão de Agostinho, é o paganismo e as “imoralidades dos deuses pagãos” que a sociedade deve combater. Por estas razões, ele justifica a supressão pelo estado das práticas religiosas não-Cristãs. Com a Igreja reside a autoridade para decidir o que é a “verdadeira fé,” que é dever do Estado proteger e defender. Ao mesmo tempo, os Cristãos devem obedecer as leis e pagar impostos, desde que sua fé não seja violada. (“Dêem a César . . . .”) A influência Platônica de Agostinho é evidenciada em sua concepção da Igreja, que lembra a concepção de Platão da República. A Igreja representa aqueles que estão a caminho da cidade celestial. Segundo Baynes, “ela é o órgão e representante no mundo da cidade eterna de Deus.” *

[ * — Baynes, “Political ideas,” p. 14.]

E a rígida hierarquia de classes, a exploração humana, até mesmo a escravidão, se tornam para Agostinho as manifestações de “justiça” no “mundo do porvir” através do conceito de pecado.*

[ * — Agostinho, p. 491.]

A semelhança entre os papéis de desenvolvimento de Agostinho e Constantino é notável, mas não etnicamente surpreendente. Para Agostinho foi deixada a tarefa de “vender” a idéia da fusão Cristão-Romana, que Constantino havia iniciado. Constantino convencera os Romanos não-Cristãos. Agostinho tinha agora que convencer os Cristãos “não-políticos.” Ele se preocupou com a unificação e solidificação da organização Cristã e, portanto, dedicou muita atenção ao “esclarecimento” da doutrina da Igreja — especialmente em termos de suas implicações políticas e sua supressão de dissidentes.

A batalha de Agostinho foi contra os Donatistas e outros “hereges” dentro, e contra os Maniqueístas (que eram basicamente não-Europeus culturalmente), pois essas vozes representavam a ameaça política de desunião. Sua tarefa era a de forjar uma formulação mais dogmática dos ensinamentos Cristãos; esta seria retomada mais tarde por Aquino. Sua influência filosófica foi aquela de Platão através dos Neoplatônicos. O “monismo” ontológico herdado ditava uma teoria do ser que admitiria apenas um princípio — ao contrário dos Maniqueístas, que diziam que havia dois princípios fundamentais: o bem e o mal. O contributo de Agostinho para a ortodoxia e a unidade da Igreja foi consonante com a missão de garantir seu triunfo como força político-ideológica, e ele provavelmente é o mais responsável por sua natureza monolítica inicial. De nascimento Africano, ele contribuiu para o desenvolvimento do império Europeu, da Igreja, e para que o imperialismo Europeu “Fosse por todo o mundo, pregar o evangelho a toda criatura.” [Marcos 16:15.; João 3-16]

O Gentio (pagão) do nacionalismo Judaico tornou-se o bárbaro (pagão) na sua forma mais antiga e arcaica da Europa Ocidental sob a doutrina Cristã. Muitos dos mesmos critérios para esta distinção são encontrados na nova expressão. A hipótese da evolução teológica está presente na formulação Judaica, com base no objetivo implícito (isto é, superioridade) de crença em e compromisso a um deus como um princípio abstrato ou “espírito puro” e a acumulação de preceitos religiosos documentados em forma escrita . Na expressão Cristã, começamos a ver uma ênfase adicional: o conceito de “revelação.” “Religião revelada” começa a ser intimamente associado à ideia do monoteísmo e à sua natureza “progressiva.” A ilusão da “verdade objetiva” do ensino Cristão é aumentada. Os Judeus não tiveram nenhum problema; Eles já nasceram o “povo escolhido.” Os Cristãos tinham que criar um critério de admissão na fraternidade, com sua inclusividade retórica e sua exclusividade pragmática.

 

Proselitização e Imperialismo: “Salvando” e “Governando”
Este conceito de revelação é de interesse tanto culturalmente (politicamente) quanto filosoficamente (metafísicamente). Tradicionalmente, os antropólogos consideraram a religião revelada como uma característica do estado de “civilização.” Para Taylor, a característica relacionada da crença na retribuição foi uma marca que ajudou a separar o “civilizado” do “primitivo.” A pessoa deveria merecer a boa (“pós”) vida. Este conceito tem estranhas implicações etnológicas. Não pode ser interpretado simplesmente como a visão Cristã da experiência “religiosa” ou “extraordinária” (hierogamia de Eliade). As tradições de outras culturas são repletas com, muitas vezes centradas em torno de, o transcendente como uma categoria da experiência humana. Tradicionalmente, a pessoa nasce em uma religião, assim como ela nasce em uma cultura. A religião é considerada um direito de nascença [birthright]. A cultura é, de fato, o contexto natural para a crença religiosa.

A ideologia Cristã alterou radicalmente esse conceito e, assim, formou uma declaração religiosa potencialmente elitista, “intelectual” em oposição ao “espiritual-emocional”,* e, ao mesmo tempo, universal-imperialista. Não se nasce um Cristão, é preciso ser batizado pelas autoridades apropriadas. Em algumas seitas, Jesus deve ser primeiro aceito como “O Cristo” na esperança de que o deus Cristão se revele aos devidamente piedosos. Essa idéia está relacionada à natureza imperialista do Cristianismo. É justificável (e, de fato, um ato de piedade) para os missionários proselitisar a religião Cristã, porque, em sua opinião, aqueles que eles tentam converter não têm nenhuma religião propriamente dita.

[ * — Carlton W. Molette III, “Afro-American Ritual Drama,” in Black World, Vol. XXII, No. 6, 1973, pp. 54-56.]

É somente por causa das implicações políticas e conseqüências relacionadas que parece tão “imoral” a Tylor que não haja nenhum sistema de punição-e-recompensa associado à cosmologia pós-vida de muitas religiões não-Européias. A menos que o Cristianismo possa oferecer as bênçãos do “paraíso,” em vez das torturas do “inferno”; A menos que os Cristãos possam convencer pessoas de outras culturas de que estes são os destinos alternativos abertos a elas, e que eles (os Cristãos) possuem a chave, então o Europeu perde uma das ferramentas mais persuasivas com as quais controlar outros povos. Nas palavras de Rheinhold Niebhur.

. . . Somente em uma religião de revelação, cujo Deus Se revela ao homem de além de Si mesmo e de além do contraste de vitalidade e forma, pode o homem descobrir a raiz do pecado estando dentro de si mesmo.*

[ * — Rheinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, Vol. I, p. 216.]

E Mbiti, em sua discussão sobre religiões Africanas, diz que,

As religiões Tradicionais não têm missionários para propagá-las, e um indivíduo não prega sua religião para outro. . . . As religiões tradicionais não são universais; Elas são tribais ou nacionais. . . A propagação de uma religião seria propagar a vida inteira do povo.*

[ * — John S. Mbiti, African Religions and Philosophies, Doubleday, Garden City, N.J., 1970, p. 5.]

E Jomo Kenyatta diz,

Na religião Gikuyu, não há nenhuma provisão para sacerdócio oficial, nem há pregação religiosa. Campanhas de conversão são, é claro, uma coisa desconhecida. Isto é devido ao fato de que a religião é entrelaçada com tradições e costumes sociais das pessoas. Assim, todos os membros da comunidade são automaticamente considerados como tendo adquirido, durante seus ensinamentos de infância, tudo o que é necessário saber sobre religião e costume. O dever de transmitir esse conhecimento às crianças é confiado aos pais, que são vistos como ministros oficiais da ética religiosa e dos costumes sociais.*

[ * — Jomo Kenyatta, Facing Mt. Kenya, Vintage, New York, 1965, p. 232.]

Todas as religiões promovem a expressão nacionalista cultural, e o Cristianismo só é universal na medida em que o nacionalismo cultural Europeu se caracteriza pela ambição imperialista universal ou internacional. Este tema se repetirá repetidamente ao longo de nosso estudo. E o seu reconhecimento é crucial para a compreensão da singularidade da mente Européia e da eficácia política da ideologia imperialista cultural Européia na busca do poder mundial. É um tema que está mascarado e sutilmente expresso na apresentação da cultura Européia. O caráter internacional da ambição ou objetivo político Europeu tem sido continuamente e tragicamente (por seus “objetos”) confundido com o universalismo espúrio da identificação cultural e ideológica Européia. Em muitos aspectos, é claro, este é precisamente o efeito desejado de tais formulações que se tornam parte dos armamentos do imperialismo Europeu. O proselitismo do Cristianismo talvez tenha o maior efeito culturalmente imobilizante e desmoralizante sobre seus “objetos.”

Desde a sua criação, a Igreja participou no e apoiou o empreendimento imperialista Europeu. A cultura Européia não é diferente de outras culturas a este respeito, uma vez que a relação entre religião e nacionalismo é, na verdade, um fato cultural universal. Nenhum grupo cultural vai à guerra sem invocar os nomes de seus deuses nacionais, e os motivos para declarar a guerra geralmente são reformulados em um nível consciente em termos religiosos ou certamente em termos que são consistentes com a ideologia religiosamente declarada. A natureza desse relacionamento no contexto Europeu apenas é “especial” porque o imperialismo Europeu e o nacionalismo Europeu são tão únicos e intensos. A questão da singularidade e da intensidade da asili da cultura e do utamaroho através do qual ela é expressa. Mas traçemos brevemente a natureza da relação entre o Cristianismo e o empreendimento imperialista Europeu.

Examinamos exemplos tirados do Antigo Testamento que servem como evidências da maneira como as leis e preceitos religiosos dos Judeus apoiaram e encorajaram sua ideologia militantemente nacionalista. Esta ideologia foi declarada em termos que se tornariam fundamentais na retórica do imperialismo cultural Europeu; Por exemplo, a busca do “bem universal da humanidade” — um bem que, tendo sido realizado ou pelo menos reconhecido pelos Europeus (Judeus, Cristãos, pessoas “civilizadas”, “religiosas”), incumbiu-os de espalhá-lo e assim, “iluminar” (conquistar, escravizar, controlar) aqueles menos afortunados e “mais lentos” do que eles (“gentios”, “primitivos”, “pagãos”, “bárbaros”). Vimos como a formulação Cristã elaborou e alterou a concepção Judaica, ampliando-a para se adequar aos expandidos utamaroho Europeu e ambições mundiais imperiais dos Europeus. O Estado Romano já havia concebido politicamente o objetivo imperialista mundial, mas a religião Romana permanecia atrasada — ainda não sofisticada o suficiente para sustentar uma ordem mundial. Também vimos de que maneira a formulação Cristã foi cooptada e usada na busca Romana.

Meu objetivo não é argumentar que a doutrina Cristã foi formulada conscientemente para os propósitos do imperialismo Europeu, nem que Constantino não era de fato “um verdadeiro convertido” e passou a acreditar no deus Cristão. A especulação nesse nível é inútil e irrelevante para os propósitos desta discussão. O fato cultural óbvio e significativo é que as ideologias Cristã e Romana expressaram os mesmos valores e objetivos políticos, apoiaram as mesmas atividades e encorajaram o mesmo comportamento dos Europeus em relação a pessoas de outras culturas. As concepções Judaica, Cristã, e Romana, constituem estágios de desenvolvimento separados, mas culturalmente relacionados, na expressão nacionalista Européia. Eles se uniram na asili cultural Européia. Eles se entrelaçaram para dar uma primeira definição à auto-imagem e utamaroho Europeus, um utamaroho que demandava comportamento imperialista.

O papel que a Igreja desempenhou foi algumas vezes aquele do agressor em uma busca imperialista militar e política. Na maioria das vezes e com maior sucesso, entretanto, ela foi a protagonista do drama do imperialismo cultural Europeu. A Igreja assumiu um papel de liderança na agressão cultural, porque, de todas as facetas da expansão Européia, ela tem acesso mais fácil aos povos não-Europeus e o maior potencial para sua destruição ideológica. Raramente, e nunca de forma muito eficaz nem agressiva, a Igreja Cristã tentou agir contra o que considerava ser os excessos do nacionalismo Europeu e mesmo nestes casos, em virtude do seu conversorismo, a Igreja ainda ocupa uma posição central na ofensiva Européia, pois, como já foi apontado, as tendências imperialistas Européias podem ser facilmente enxertadas na ideologia Cristã.

Resta aqui citar apenas alguns dos exemplos do apoio da Igreja ao empreendimento imperialista Europeu. Durante a maior parte do período Medieval, a Igreja e o Estado eram praticamente indistinguíveis, ou mais propriamente falando, a Igreja era mais poderosa que o Estado, e o termo “Cristandade” [“Christendom”] refletiu a intimidade dessa relação. A seguinte afirmação é uma caracterização das “guerras santas Cristãs” de uma perspectiva Eurocêntrica, uma das variedades mais óbvias do nacionalismo Europeu.

Durante o século X, quando os Reis de Wessex estavam retomando as regiões centrais [midlands] e a Nortúmbria dos Dinamarqueses pagãos, outros Reis heróicos estavam salvando a Cristandade de seus inimigos pagãos nas terras Alemãs. O Rei Saxão, Henrique o Passarinheiro [Henry the Fowler], remeteu os Dinamarqueses ao norte e os ferozes arqueiros Húngaros no leste. Seu neto, Otto o Grande, destruiu um grande exército Húngaro em 955. Estes homens compartilharam com os homens de Wessex a honra de salvar a Europa Cristã. E os pagãos derrotados foram convertidos à fé Cristã.*

[ * — L.J. Cheney, A History of the Western World, Mentor, New york, 1959, p. 89.]

Em geral, a Primeira Cruzada é situada no século XI, mas o [trecho] acima é, obviamente, uma descrição de uma campanha imperialista “Cristã” anteriormente bem-sucedida. As Cruzadas foram, naturalmente, o instrumento principal da expansão da Europa Ocidental durante o período Medieval Europeu e, ao mesmo tempo, continuam a ser exemplos das expressões militaristas e agressivas do utamaroho conquistador Europeu. A Igreja não só tolerou essas ações em termos como aqueles na declaração acima, mas também foi a iniciadora dessas campanhas. A seguinte descrição de William McNeill deixa clara a viva realidade da relação íntima e inextricável entre a ideologia Cristã e o expansionismo Europeu. As instituições religiosas, militares-políticas, e comerciais do Ocidente se entrelaçaram facilmente em um esforço imperial unido.

O primeiro passo mais espetacular na expansão da Europa foi a conquista da costa leste do Mediterrâneo como resultado da Primeira Cruzada (1096-1099). A Cruzada foi proclamada pelo Papa Urbano II. . .

Os motivos que levaram os Cruzados a embarcarem em seu empreendimento foram mistos. O entusiasmo religioso, provocado pelo papa e por numerosos pregadores, desempenhou um papel decisivo. O objetivo da Cruzada era libertar a Terra Santa do domínio Muçulmano, e prometia aos Cruzados a absolução de seus pecados como conseqüência de seu serviço a uma causa religiosa. Outros motivos, é claro, foram adicionados aos religiosos: o espírito de aventura, a esperança de talhar novas propriedades e principados, a diplomacia dos imperadores Bizantinos que precisavam de ajuda militar contra os Turcos e, em algum grau pequeno, as ambições comerciais de algumas cidades Italianas, todos contribuíram para a Primeira Cruzada. No entanto, quando se justifica a aceitação desses motivos subsidiários, ainda parece seguro considerar a Primeira Cruzada como um exemplo impressionante do poder da Igreja e dos ideais Cristãos para inspirar ação militar e política.*

[ * — William H. McNeil, History of Western Civilization: Selected readings, University of Chicago Press, Chicago, 1953, pp. 337-338.]

Durante este período, a Igreja foi a ponta da expansão Européia, e historicamente podemos ver as Cruzadas como um dos mais importantes empreendimentos militares na expansão da Europa. As políticas internas da própria Igreja viriam a tornar-se bastante “mundanas”, criando a situação irônica e embaraçosa da “profanação” da religião institucionalizada Européia. É razoável concluir que os efeitos dessas tendências culturais foram de grande alcance e que eles se fizeram sentir muito tempo depois na decadência moral do Ocidente contemporâneo. O período de manobras intrapoliticas e jogos de poder — competição extrema e às vezes violenta para o papado — foi talvez o auge da “profanidade religiosa” dentro da cultura Européia, mas seu legado permanece.

 

Cristianismo, colonialismo e imperialismo cultural:
“Bárbaro,” “Nativo,” e “Primitivo”

O próximo período de envolvimento da religião organizada na expansão Européia é o da colonização. A justificativa para o envolvimento da Igreja sempre foi formulado em termos de conversão. Muitos historiadores Europeus identificam o sentimento conversista com algo que chamam de “humanitarismo,” que, por sua vez, é identificado como a motivação universalmente altruísta do comportamento. Embora isso possa parecer contraditório, se entendido como uma manifestação do nacionalismo Europeu, tais interpretações do “conversonismo” se tornam, pelo menos, etnologicamente compreensíveis em termos da asili cultural. Elas representam a semântica hipócrita exigida pelo compromisso de uma visão da cultura como superior.

Em The Image of Africa [A Imagem da África], Philip Curtin cita dos procedimentos no Parlamento Britânico sobre a questão dos “aborígenes” em 1937-7. A responsabilidade do comitê que lidava com essa questão era investigar a política do governo:

Habitantes nativos ou países onde os assentamentos Britânicos são feitos, e para as Tribos vizinhas, a fim de assegurar-lhes a devida observação da Justiça e a proteção dos Direitos; Promover a propagação da Civilização entre eles; E levá-los à recepção pacífica e voluntária da religião Cristã.*

[ * — Philip Curtin, the Image of Africa, University of Wisconsin Press, Madison, 1964, p. 299.]

Este é um exemplo do que Curtin caracteriza como as preocupações “humanitárias” dos missionários para a Expedição Britânica do Níger da década de 1840. Ele identifica o “sentimento conversorista” com o “humanitarismo Cristão”:

[Entre 1830 e 1870] A atitude Britânica dominante em relação à África tornou-se mais conversonista do que nunca. A própria Expedição do Níger foi um grande esforço público para converter bárbaros para maneiras Ocidentais. As décadas do meio do século representam, de fato, o auge do sentimento conversonista.*

[ * — Ibid, p. 415.]

O grupo de interesse missionário argumentou que “apenas uma doutrinação prévia com o Cristianismo e as maneiras da “Civilização Ocidental” poderiam prepará-los [os Africanos] para o impacto do assentamento Europeu. Além disso, em sua opinião, Cristianismo e Civilização eram inseparáveis.” * “Depois de 1870”, diz Curtin, “a idéia de conversão declinou. Os motivos do humanitarismo encontraram novas manifestações”.**

[ * — Ibid, p. 420.]
[ ** — Ibid, p. 415.]

Estes exemplos de Curtin são úteis porque nos proporcionam a oportunidade de deixar clara a relação entre o que os Europeus chamaram de “humanitarismo” (supostamente caracterizado por “altruísmo” e identificado com um “bem universal”) e o que eu reconheço como comportamento imperialista, o epítome e expressão mais visível do interesse-próprio Europeu.

A tendência para ignorar a implicação política deste tipo de humanitarismo (então-chamado) é exibida de forma consistente na teoria social Ocidental. Em Race: The History of an Idea in America [Raça: A História de uma Idéia na América], Thomas Gossett argumenta que a idéia da “unidade da humanidade” é inerente ao Cristianismo e que esta atuou contra o “racismo”, que ele vê como distinto e de alguma forma ruim em comparação com as boas intenções do “conversonismo”.

A escravidão, tem-se argumentado algumas vezes, foi primeiramente considerada nas colônias como uma instituição provisória destinada a converter ambos Negros e Índios ao Cristianismo. . . No entanto, é interessante que, entre as colônias do século XVII, seja o barbarismo dos Negros e dos Índios, em vez da sua raça, que é enfatizado como base para a escravização.*

[ * — Thomas F. Gossett, Race: The History of an Idea in America, Schocken, New york, 1965, pp. 30-31.]

A boa distinção entre as conotações de “bárbaro” e “negro” [“nigger”] pode muito bem ser interessante para Gossett, mas a partir de uma perspectiva Africano-centrada, elas se tornam uma e a mesma — ambas denotam “objetos” do imperialismo Europeu. Dos dois, o conceito de “bárbaro” [“heathen”] talvez seja potencialmente mais debilitante, pois é mais rapidamente adotado pelo próprio oprimido e incorporado em sua própria auto-imagem.

Estes são alguns poucos relatos, excepcionais e difíceis de encontrar, que não ficam presos entre a ideologia Cristã e o imperialismo Europeu. Tomemos tempo para citar alguns desses, que juntos dão uma imagem muito mais precisa do relacionamento histórico entre a Igreja Cristã e algumas das manifestações mais fundamentais do nacionalismo Europeu.

Katherine George entretém uma discussão sobre o que ela chama de “etnocentrismo” como manifestado em descrições de Africanos por Europeus escritas entre os séculos XVI e XIX. Para ser mais preciso, ela está oferecendo evidências de “Eurocentrismo”; Com mais precisão, podemos chamá-lo de “nacionalismo da Europa Ocidental,” que se traduz em um “culturalismo” e, claro, “racismo branco.” Sua pesquisa nos oferece um exemplo excelente da relação de apoio da ideologia Cristã às comparações inviáveis ​​fundamentais para o nacionalismo cultural Europeu. A imagem dos povos Europeus que o Cristianismo apresenta forneceu apoio ideológico para a visão Européia de si mesmo em relação àqueles que não estão dentro de seu grupo cultural. Esta imagem também é essencial para o argumento Cristão; Foi sobre essa suposição de inferioridade moral e, portanto, “evolutiva” de todos os outros povos que a missão proselitista foi fundada, uma missão do imperialismo da Europa Ocidental. A autora da declaração a seguir estava se esforçando para justificar o comércio de escravos Português:

E assim, o seu quinhão agora era bastante contrário ao que tinha sido; Pois antes eles viviam na perdição da alma e do corpo; De suas almas, na medida em que eram pagãos, sem a clareza e a luz da santa fé; E de seus corpos, na medida em que viviam como feras, sem qualquer costume de seres razoáveis ​​— pois não tinham conhecimento de pão ou vinho, e estavam sem a cobertura de roupas, ou o abrigo de casas; E o pior de tudo, através da grande ignorância que havia neles, na medida em que eles não tinham entendimento do bem, mas só sabiam viver em uma preguiça bestial.*

[ * — Katherine George, “The Civilized West Looks at Primitive Africa: A Study in Ethnocentrism,” in The Concept of the Primitive, Ashley Montagu (ed.), The Free Press, New York, 1968, p. 182.]

Da declaração acima, Katherine Georges diz:

. . . O Cristianismo não eliminou as hierarquias mais velhas com base na raça, nacionalidade, classe ou status ocupacional, mas sim colaborou com tais hierarquias e mais freqüentemente as fortaleceu ao invés de enfraquecê-las — embora tenha apresentado a idéia complicadora de uma possível reafirmação da relação humana na sociedade de outro mundo. A disponibilidade da salvação para todos os adequadamente doutrinados por igual, a despeito das desigualdades corporais — encontramos essa dádiva do Cristianismo na passagem citada anteriormente. Mas isso diminui o preconceito do escritor? Ao contrário. Isso permite que ele elogie ações (o seqüestro de pessoas indefesas) como ações moralmente virtuosas, ações que aos observadores clássicos pareceriam meramente convenientes.*

[ * — Katherine George, “The Civilized West Looks at Primitive Africa: A Study in Ethnocentrism,” in The Concept of the Primitive, Ashley Montagu (ed.), The Free Press, New York, 1968, p. 182.]

To Serve The Devil [Servir ao Diabo] é uma obra de dois volumes que documenta o comportamento e a atitude Americana — em relação aos povos originais. Aqui, um advogado da colonização Havaiana escreve sobre o relacionamento mutuamente benéfico entre os interesses comerciais Americanos e os dos missionários no Havaí:

O Cristianismo civiliza no sentido mais amplo. Comércio, indústria, ciência e literatura, todos acompanham sua majestosa marcha ao domínio universal. Assim, enquanto nega a suficiência do comércio sozinho para transformar o selvagem, encoraja um comércio legítimo e, mesmo, canaliza sua aliança como uma das instrumentalidades mais importantes.*

[ * — Paul Jacobs et al, To Serve the Devil, Vol. II, Vintage, ew York, 1971, p. 19.]

Em contradição com a análise de Gossett, os autores de To Serve The Devil, Paul Jacobs et al., Comentam,

. . . A destruição dos Índios foi escrita no primeiro capítulo da bem sucedida colonização branca na América. Os ideais puros do Cristianismo foram facilmente moldados em uma ideologia racista que seguiu as necessidades econômicas e sociais dos colonizadores em expansão.*

[ * — Ibid, Vol. I, p.19]

O fato é que, quase desde o início, o contínuo empreendimento da expansão Européia se seguiu não apenas com as bênçãos da Igreja, mas, quando necessário, pelo seu decreto. No começo do século XV, o Papa Eduardo IV emitiu uma bula papal “concedendo à Coroa de Portugal todos os países que os Portugueses viessem a descobrir desde o Cabo Non até a Índia”, para acomodar as “descobertas” do Principe Henrique o Navegador, na Costa Africana. Após a descoberta de Colombo, de acordo com William Howitt, “Seus Monarcas patrocinadores, Fernando e Isabel, não perderam tempo ao solicitar uma concessão similar. [O Papa] Alexandre VI, um Espanhol, foi igualmente generoso com seu antecessor e, portanto, dividiu o mundo entre os Espanhóis e os Portugueses.” *

[ * — William Howitt, Colonization and Christianity, Green and Longman, London, 1838, pp. 19-20.]

O Papa como representação terrena de Jesus Cristo era suposto por ter um direito de domínio sobre toda a terra. Alexandre VI, um pontífice infame, estava determinado a permanecer nas boas graças de Fernando para garantir sua própria proteção e acumulação de riqueza. Ansioso, portanto, para agradar Fernando e Isabel, ele lhes concedeu “direitos plenos” a todos os países habitados por “infiéis” que eles tivessem descoberto ou viessem a descobrir.

Como o domínio do Papa era considerado por ser mundial, ele tinha autoridade sobre vastas regiões das quais ele nunca tinha ouvido falar. Para evitar que essa concessão à Espanha interferisse com terras já “dadas” a Portugal por uma bula anterior (emitida pelo Papa Eduardo IV), ele proclamou que uma linha invisível existisse de pólo a pólo, cem léguas a oeste dos Açores, separando os dois territórios. Tudo a leste da linha de demarcação ele concedeu aos Portugueses; Tudo para o oeste foi para os Espanhóis. Sua motivação era supostamente seu entusiasmo pela propagação da fé Cristã. Desta forma, a Igreja dividiu o mundo entre duas potências Européias.

Os apologistas da Igreja citam a emancipação pública de dois escravos pelo Papa Gregório “o Grande” como prova da posição oficial da Igreja contra a escravidão. Esta interpretação está muito desafinada com a realidade histórica/política. Chapman Cohen, em uma obra publicada em 1931, diz:

Não só havia milhares de escravos não libertados na posse de eclesiásticos até mil anos depois que Gregório publicara esse “mandado de morte” à servidão, mas Gregório possuía, pessoalmente, pelo menos centenas, e talvez milhares de escravos que ele não libertou. Mais uma vez, como Papa, ele era administrador da posse de milhares mais, de bens móveis [chattels] da Igreja Romana; No entanto, ele não iniciou nenhum movimento papal geral para a libertação dos servos da Igreja. Pelo contrário, as leis eclesiásticas se opuseram constantemente a essa política. . . .*

[ * — Chapman Chohen, Christianity, Slavery and Labour, 4th ed., Pioneer Press, London, 1931, p. 46.]

O comércio Inglês de escravos, como o de outras nações Européias, foi inaugurado com as bênçãos da Igreja. É irônico, mas não contraditório, que o primeiro [navio] escravista Inglês tenha sido chamado de “Jesus” e que as duas primeiras regras que o Capitão John Hawkins impôs à sua tripulação foram, servir a Deus diariamente e amar uns aos outros. “A piedade da expedição,” diz Cohen mordazmente, “foi irrepreensível.” *

[ * — Chapman Chohen, War, Civilization and the Churches, Pioneer Press, London, 1930, pp. 56-57.]

Não há dúvida de que a comunidade Cristã deu suas bênçãos ao empreendimento da escravidão, participou dele e contribuiu para o seu sucesso, abraçando-o dentro da “moralidade” Ocidental. W. E. B. DuBois traz esse ponto quando ele diz, em referência à África Ocidental, “os Protestantes da Inglaterra, os Huguenotes da França e os Calvinistas da Holanda começaram a luta mortal pela Guiné”.*

[ * — W.E.B. DuBois, The World and Africa, International Publishers, New york, 1965, p. 51.]

Outra obra valiosa, excepcional na cultura Européia, é The Black Man’s Burden [O Fardo do Homem Preto], de E. D. Morel, escrito em 1920. Aqui, ele comenta e oferece um relato em primeira-mão de uma invasão Européia para capturar escravos,

O Africano era um bárbaro, e como tal, presa fácil para a proeza dos nobres cavaleiros Cristãos que opuseram suas armaduras de aço, espadas temperadas e balestras, ao seu peito nu e lança primitiva. Aqui está um relato típico de uma dessas incursões predatórias:

Então você podia ver mães abandonando seus filhos e maridos suas esposas, cada um tentando escapar o melhor que podia. Alguns se afogaram na água, outros pensaram em escapar escondendo-se sob suas cabanas; Outros esconderam seus filhos entre a erva do mar, onde nossos homens os encontraram depois, esperando que eles não fossem notados. . . . E, finalmente, nosso Senhor Deus, que dá uma recompensa para cada boa ação, decidiu que, pela labuta que haviam passado em Seu serviço, eles obtivessem naquele dia a vitória sobre seus inimigos, bem como uma recompensa e um pagamento por todo o seu trabalho e despesa; Pois eles levaram cativos desses Mouros, o que com homens, mulheres e crianças, 165, além dos que morreram e foram mortos. E quando a batalha terminou, todos louvaram a Deus pela grande misericórdia que Ele lhes havia mostrado, por ter decidido dar-lhes tal vitória e com tão pouco dano a si mesmos. Todos estavam muito alegres, louvando alto o Senhor Deus por Ele ter se dignado a dar tal ajuda a um punhado de Seu povo Cristão. [De acordo com Morel, isso vem de cronicas Portuguesas.]

Assim, a Europa primeiro trouxe as “boas novas” para os Africanos. Não demorou muito para verificar que a consolação espiritual derivada da conversão do Africano ao Cristianismo tinha sua contrapartida utilitária.*

[ * — E. D. Morel, The Black Man’s Burden, rev. ed., Monthly Review Press, New York, 1969, pp. 15-16.]

O esforço imperialista Europeu contemporâneo, ao contrário da sua imagem projetada, é entendido por seus perpetradores precisamente nos mesmos termos que as Cruzadas e o período subseqüente de empreendimentos colonizadores. O seguinte é o texto de uma oração para as Forças Especiais Americanas no Sudeste Asiático:

Deus Todo-Poderoso, que é o Autor da liberdade e o Defensor dos oprimidos,
ouça nossa oração —
Nós, os homens das Forças Especiais, reconhecemos nossa dependência de Ti
na preservação da liberdade humana —
Vá conosco enquanto buscamos defender os indefesos e libertar os escravizados —
Que possamos lembrar que a nossa nação, cujo lema é “Em Deus, nós confiamos,”
espera que nos absolvamos com honra,
para que nunca possamos
trazer vergonha sobre a nossa fé, nossas famílias ,ou nossos semelhantes —
Conceda-nos sabedoria de Tua mente, coragem de Teu coração, força de Teu braço e proteção por tua mão

É por Ti que lutamos, e a Ti pertence a coroa do vencedor.
Pois Teu é o reino, e o poder e a glória, para sempre, Amém.*

[ * — Special Forces Handbook, Commandant Army Special Warfare School, Fort Bragg, N.C., 1965, back cover.]

Desde a sua criação, a ideologia Cristã tem sido tradicionalmente tolerada e muitas vezes exigiu agressão violenta e brutalidade por parte da Europa. Os membros das Forças Especiais estão simplesmente tomando direção da Bíblia.

Vai, e destrói totalmente a estes pecadores, os Amalequitas, e peleja contra eles, até que os aniquiles, não os poupe; mas mate ambos homem e mulher, criança e bebê, boi e ovelha, camelo e burro. . .

E quando o Senhor, o seu Deus, entregá-la [a Cidade] em suas mãos, matem ao fio da espada todos os homens que nela houver. Porém, as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos, que te deu o Senhor teu Deus. . . Contudo, nas cidades das nações que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança, não deixem vivo nenhuma alma.*

[ * — Citado em Cohen, War, Civilization and the Churches, p. 66.]

A invocação Européia de seu deus para ajudá-los em suas perseguições imperialistas é consistente com sua auto-imagem e sua imagem daqueles que não são como eles. Sua própria “religião” é uma expressão dessas imagens dialéticas.

Da relação histórica entre o Cristianismo e a escravização das pessoas de cor pelos Europeus, Cohen diz:

(Mas) temos outro sistema escravista para lidar. Este teve seu surgimento nos tempos Cristãos. Foi criado pelos Cristãos, foi continuado pelos Cristãos, foi, em alguns aspectos, mais bárbaro do que qualquer coisa que o mundo já havia visto, e seus piores atributos foram testemunhados em países que eram mais ostentosos em seu desfile de Cristianismo. É isso que fornece a acusação final e incontestável da Igreja Cristã.*

[ * — Cohen, Christianity, Slavery, and Labor, p. 44.]

Cohen, em contraste com Curtin, Gossett, Kovel (White Racism: A Psychohistory [Racismo Branco: Uma Psico-história]), e outros, avaliou corretamente o significado do ideal Cristão de “a fraternidade do homem” [“brotherhood of man”]:

Sua fraternidade do homem nunca significou, mesmo em teoria, mais do que uma fraternidade de crentes, e na prática nem sempre significou isso. Ela reconhecia deveres e obrigações entre membros da mesma igreja ou seita, mas, além desses limites, aplicava um código de ética diferente. Que tipo de fraternidade os Cristãos concederam a Judeus e hereges por centenas de anos? Os Cristãos em seu apogeu de poder olhariam com espanto para qualquer um que reivindicasse consideração para qualquer um deles [Judeus, Hereges e Pagãos]. Que tipo de atenção fraterna os habitantes do antigo México e Peru receberam dos conquistadores Cristãos? Como os Peles Vermelhas da América do Norte, os Maoris da Nova Zelândia, ou os habitantes da África nas mãos dos irmãos Cristãos? Na prática, quase sempre, e em teoria, muitas vezes, os Cristãos demonstraram que a doutrina da fraternidade significava pouco mais do que a simples fraternidade de uma gangue. Dentro da gangue, regras devem ser observadas. Fora da gangue, elas podem ser quebradas impunemente.*

[ * — Ibid, p. 28.]

O caro erro político dos conversos não-Europeus tem sido pensar que eles seriam alguma vez incluídos na “fraternidade Cristã” Européia da mesma maneira que faziam parte de suas próprias culturas.

Chinweizu nos exorta a “lembrar que o domínio Europeu foi enraizado na África por meio de uma cultura Cristã Ocidental, uma estrutura de poder político Ocidental, e uma economia colonial”.*

[ *— Chinweizu, The West and the Rest of Us [O Ocidente e O Resto de Nós], Nok Publisher, Lagos, 1978, p. 137.]

A “santa aliança” deixou uma África derrotada, porque os missionários brancos de Cristo trabalhando na Buganda clamaram que seus esforços perdidos para recrutar almas pretas para o céu de seu deus branco precisavam ser protegidos por tropas brancas e porque os mestres Britânicos do Egito exigiam que todo o vale do Nilo fosse colocado sob o domínio Britânico, a Companhia Imperial Britânica da África Oriental (IBEAC) estava em 1890 concedendo autoridade pela Inglaterra para negociar no e administrar o território das cabeceiras do Nilo. Os capitães invasores do IBEAC, em busca de monopólios comerciais, atacaram as soberanias dos Reinos Africanos do alto Nilo.*

[ * — Ibid, p. 49.]

Como observamos anteriormente, e Chinweizu concorda, a destruição em larga escala da soberania Africana exigiu a destruição simultânea de uma consciência Africana. Aqui, o Cristianismo Europeu teve uma vantagem única.

Para reforçar e coroar a sua criação, os fundadores da orden colonial embarcaram em uma reorganização cultural da África. Se eles queriam que os auxiliares Africanos do império fossem servos dóceis e leais, a sua fidelidade à África devia ser debilitada. A admiração total pela Europa teve que ser instilada neles. Além das habilidades técnicas que eles precisariam para realizar seus deveres práticos para os empregadores, eles deveriam ser ensinados valores Cristãos de um tipo servil. A obediência inquestionável aos homens brancos foi apresentada como uma virtude cardinal.
A adaptação
[reinstrumentalizaçãode suas mentes e valores foi confiada às escolas. Seja executada por missionários procurando conversos pretos para seus céus brancos, ou administrada por burocratas coloniais, essas escolas imperialistas não só ensinaram leitura, escrita e aritmética aos seus internos, mas também rechearam as cabeças de suas vítimas com hinos devocionais da igreja, preencheram suas psiques com atitudes submissas Cristãs, e minaram seu apego à cultura de seus ancestrais. Essas escolas inculcaram em suas salas uma teologia e cosmologia Cristãs, e um ethos individualista ocidental que enfraqueceu sua identidade Africana, destruíu seu compromisso com um ethos comunalista Africano e apagaram seu senso de responsabilidade patriótica para com a África.*

[ * — Ibid, pp. 76-77.]

Os Cristãos não tiveram nenhum remorso sobre destruir movimentos religiosos Indígenas que não gostassem. Eles já tinham feito isso na Europa. O seu credo era, afinal, um de proselitização violenta quando necessário. Chinweizu cita exemplos em África, como a queima das capelas do Bwiti no Gabão, onde este movimento religioso sincretista foi visto como um possível campo de nutrição para o nacionalismo Africano. Chinweizu comenta que “especialmente no início da era colonial, a igreja era um braço da destruição colonial de organizações e movimentos Africanos“.*

[ * — Ibid, pp. 128-129.]

Estas passagens refletem a relação direta e muito política entre a Igreja Européia e o imperialismo Europeu. É um relacionamento entre “irmãos.” Ironicamente, são os aspectos sutis dessa relação que se mostraram muito mais devastadores a longo prazo para as formas indígenas onde o Ocidente expansionista tenha procurado exercer seu controle.

O fenômeno do imperialismo cultural, para distinguir-se de seus componentes estritamente militaristas, políticos e econômicos, é aquele que desfere o “golpe mortal” na capacidade de um povo para resistir à agressão. Nunca houve, na história da raça humana, especialistas mais experientes desse golpe do que os Europeus. Só eles perceberam o potencial estratégico completo de destruir a vida ideológica de uma entidade cultural. A ideologia Cristã é uma arma ideal para a destruição da autoimagem e do sistema de valores dos povos Africanos e outros não-Europeus. Com sua retórica ilusória de “amor” e “paz,” sua imagem debilitante do não-branco (não-Europeu, “atrasado”, “bárbaro”), e sua falsa “universalidade,” ela teve sucesso onde as armas nunca poderiam separar pessoas da base cultural necessária para a formulação de uma efetiva ideologia autodeterminista. Um Cristão com uma arma nas forças armadas é uma coisa — ele pode acabar com uma lança nas costas; Mas um missionário com uma Bíblia e um sorriso bem-intencionado que fala de “amor eterno” é totalmente diferente. É preciso muita sofisticação política para reconhecê-lo como uma ameaça potencial.

A Doença desempenhou um papel importante na matança dos Hawaianos, especialmente as doenças venéreas. O sarampo e a cólera varreram a população e o alcoolismo enfraqueceu os ilhéus tão mal que eles sucumbiram frequentemente ao resfriado comum. Mas, mais importante foi a doença psicológica que atingiu os ilhéus à medida que sua cultura e religião desapareceram. “Nkanaka okuu wale aku no I kau uhane.”
(“As pessoas entregaram livremente suas almas e morreram.”) *

[ * — Jacobs et al, p. 26.]

 

 

Cristianismo e Paganismo Europeus

Para não ignorar uma etapa relevante do desenvolvimento Europeu, perguntamos: qual é a relação entre o Cristianismo Europeu e o “paganismo” Europeu (um termo que implica a perspectiva Eurocêntrica e Cristã)? Na tentativa de entender a asili do desenvolvimento cultural Europeu, este aspecto da tradição religiosa Européia não pode ser negligenciado. Concentrei-me na institucionalização da religião na forma da Igreja Cristã por causa da forma como ela expressa a ideologia subjacente ou a mitologia da cultura. Mas por um momento vamos dar uma breve olhada na Europa não-Cristã.

“Violência e batalha estavam sempre à mão nas vidas dos homens do período bárbaro no noroeste da Europa.” *

[ * — H.R. Ellis Davidson, Gods and the Myths of Western Europe, Penguin, New York, 1964, p. 48.]

Esta declaração de H. R. Ellis Davidson nos permite olhar os deuses guerreiros do Norte da Europa: Wodan (Odin), Tiwas (Marte), Mercúrio, Tyr e Indra da Índia Ariana. Há outros, mas o padrão é claro. A guerra, o guerreiro e a violência foram adorados entre esses antecedentes Indo-Europeus dos Europeus atuais. Odin — um guerreiro ele próprio — considerado o antepassado divino dos Suecos e da maioria dos reis Anglo-Saxões, recompensava aqueles que o serviram e morreram em batalha com armas, imunidade contra feridas e um lugar no glorioso Valhalla, o famoso “Céu dos guerreiros.” As crenças desses “antigos homens e mulheres do Norte” eram um testemunho da glorificação da guerra. Davidson cita de Saxo Grammaticus, que por sua vez cita um discurso do guerreiro Biarki,

A guerra nasce do nobremente nascido; linhagens famosas são as fabricantes da guerra. Pois os perigosos atos que os chefes tentam não devem ser feitos pelos empreendimentos dos homens comuns. . . . Nenhuma raça fraca e humilde, nenhum de nascimento inferior, nenhuma alma simplória é a presa de Plutão, mas ele manda as desgraças dos poderosos e enche o Flegetonte com formas nobres.” *

[ * — Ibid, p. 49.]

O estilo de batalha era muito individualista, enfatizando o combate individual. A confiança em seu deus de guerra dava vantagem psicológica semelhante à “possessão.” *

[ * — Ibid, p. 70.]

Nas palavras de Davidson.

Ao longo do período bárbaro no norte da Europa, havia uma necessidade clara de um deus da guerra. A história dos povos Germânicos e dos Vikings é uma em que batalhas locais, feudos, invasões e guerras de escala nacional são a ordem do dia. A literatura heróica é baseada em uma sociedade instável, acostumada à violência e à baixa-expectativa de vida. . . . Claramente, os homens criados em tal mundo eram obrigados a recorrer ao deus que eles serviam para protegê-los na hora da batalha. . . . *

[ * — Ibid, p. 71.]

A violência nesta antiga religião Européia não só se expressa em termos de guerra e assassinatos de inimigos, mas também através da promulgação de sacrifícios rituais sangrentos para o deus guerreiro.

Nos primeiros dias do paganismo Germânico, o terrível massacre indiscriminado de forças capturadas e criminosos implica uma crença em um deus das batalhas que exigia que esse sangue fluisse em sua honra. O sangue precisava ser constantemente providenciado para a divindade poderosa, ou então ele seria obrigado por sua natureza a tomar a vida dos [seus próprios] adoradores. *

[ * — Ibid, p. 71.]

Entre os Heruli, os adoradores de Odin (Wodin) praticavam um ritual em que seres humanos eram primeiro esfaqueados e depois queimados. * Tais práticas eram comuns entre as tribos guerreiras Indo-Européias.

[ * — Ibid, p. 54.]

Apesar de variações de detalhes nos muitos mitos dessas tribos, Georges Dumezil encontra uma consistência no que ele chama de “ponto de referência ideológico” subjacente [underlying “ideological datum”] que explica os vários mitos. Este é um ponto crucial, pois afirma e justifica a metodologia e premissa teórica deste estudo. O reconhecimento por Dumezil de uma base ideológica comum compartilhada pelos povos Indo-Europeus também defende uma relação vital de continuidade entre a consciência dos Europeus contemporâneos e seus antepassados ​​dos períodos clássico e pré-histórico. O “ponto de referência ideológico” [“ideological datum”] do qual Dumezil fala, em seu livro The Destiny of The Warrior, está relacionado ao conceito de “mitoforma” [“mythoform”] de Armstrong. Existe uma relação entre a mitoforma da Europa “pagã” e Europa Cristã?

Dumezil aponta os paralelos nas religiões Romana e Ariano-Indiana: entre Indra e Tullus; Varuna e Mitra; Romulus e Numa. Das crenças, ele diz,

O que os pensadores Indianos e Romanos mantiveram na forma mais clara são: (1) a idéia de uma vitória necessária, uma vitória em um único combate em que, inspirado pelo grande mestre da função guerreira (ou rei ou deus) e em seu nome, “um terceiro herói triunfa sobre um adversário triplo” — com desonra implícita na exploração, e com uma purificação do “terceiro” e da sociedade que ele representa, de modo que ele se vê então como o especialista, o agente, e o instrumento dessa purificação, uma espécie de bode expiatório depois de ter sido campeão; (2) a idéia de uma vitória trazida não pelo combate, mas por uma surpresa que segue uma traição, traição e surpresa que se sucedem sob o pretexto e no contexto de um acordo solene de amizade, com o resultado de que o ato surpresa de vingança inclui uma nota de perturbação. *

[ * — George Dumezil, The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, pp. 46-47.]

Suponhamos que usemos esse esquema para interpretar a crucificação de Jesus e a sua traição por Judas? Dumezil fala da “memória coletiva” dos Indo-Europeus e da doutrina moral e política que constituiu sua “consciência moral.” *

[ * — Ibid, p. 47.]

Mas como, então, podemos explicar o suposto hiato entre a Europa Cristã e suas origens pagãs? Somente para os Cristãos o aparecimento de “deus” na forma humana explica essa evolução. Em que termos os Europeus costumam expressar a diferença/relacionamento? Eles fazem isso sempre em termos da dicotomia do nacionalismo/chauvinismo Europeu. Sim, mesmo em relação aos seus próprios predecessores/ancestrais. Davidson diz: “O paganismo do Norte, isto é, as crenças pré-Cristãs dos povos Germânicos e dos Escandinavos, chegou ao fim no século XI.” Nos séculos nono e décimo, sabemos que os Vikings eram um grande poder, mas, nas palavras de Davidson, eles eram “uma ameaça à civilização Cristã.” *

[ * — Davidson, p. 14.]

O Cristianismo é associado à “civilização”; a religião não-Cristã é chamada de “idólatra” [“heathen”] ou “pagã,” mas muito raramente, mesmo na escrita acadêmica, esses últimos termos são definidos. “Pagão” é, em alguns casos, simplesmente usado para significar “não-Cristão,” mas olhando para o dicionário, os usos ideológicos desses termos tornam-se explícitos. O termo “idólatra” [“heathen”] tem os seguintes usos:

1. uma pessoa irreligiosa ou não esclarecida; 2. um indivíduo não convertido de um povo que não reconhece o Deus da Bíblia; Alguém que não é Judeu, Cristão nem Muçulmano; um pagão; 3. (Anteriormente) qualquer pessoa que não seja ou Cristã ou Judaica, especialmente um membro da fé Islâmica ou de uma religião politeísta.*

[ * — Random House Dictionary, unabridged ed., New York, 1971, p. 655.]

Para a palavra “pagão”, encontramos:

1. Alguém de um povo ou comunidade que professa uma religião politeísta como os antigos Romanos, Gregos, etc.
2. Uma pessoa que não seja Cristã, Judaica ou Muçulmana;
3. Uma pessoa irreligiosa ou hedonista. *

[ * — Ibid, p. 1036.]

O pagus Latino significa aldeia ou distrito rural e, portanto, “pagão” tem o sentido depreciativo de “camponês” ou uma pessoa do campo. Como nós, na linguagem contemporânea, podemos dizer “caipira” [“bumpkin”] ou “hick” [“jeca”], indicando aquele que não tem a “sofisticação” das cidades.

“Cristão”, “idólatra,” e “pagão,” portanto, não representam meramente uma diferenciação religiosa. Eles indicam diferenças ideológicas, diferenças na visão de mundo. São termos culturalistas definidos a partir de uma perspectiva nacionalista Árabe ou Eurocêntrica. Os Cristãos Europeus consideram os Judeus como sendo religiosos, mesmo que possam discordar amargamente deles quanto à natureza da verdade histórica. (Há alguma ambivalência em relação aos Muçulmanos, que não são considerados “idólatras,” mas que antes eram. Eles representam um constrangimento cultural, uma vez que foi a escolástica Muçulmana que “resgatou” a civilização Européia da “Idade das trevas.”) Por que os Europeus são tão duros com seus antepassados então-chamados “pagãos” e “politeístas”?

Aquilo que, no contexto Europeu, representa a forma adequada de uma declaração religiosa está intimamente envolvido com o conceito de “civilização” ou, como os Europeus o vêem, o processo “civilizador.” Essas idéias não podem ser entendidas sem referência aos dois conceitos básicos da ideologia Européia: evolução e progresso.

Uma das razões pelas quais os termos “idólatra” e “pagão” detêm tal reprovação e são tão depreciativos a partir de uma perspectiva Eurocêntrica é que, inicialmente, era ao “passado” Europeu que eles se referiam. Nada exige tanto ser derrotado quanto o passado na lógica da mitoforma Européia. É o não-Europeu no mundo contemporâneo que se torna associado ao passado na mente Européia. (Os antropólogos estudavam o “passado”, o que significava Caucasianos não-Europeus [non-Euro-Caucasians].) Mas devemos lembrar que os Europeus ainda praticavam o que na linguagem Cristã eram religiões “pagãs” até o século XI. Isso significa que esses povos “atrasados” estavam realmente dentro e fora da cultura simultaneamente. Os “hereges” eram culturalmente aceitáveis ​​(embora perigosos). Os “pagãos” não. Neste período crítico de transição, não poderia haver equívocos quanto ao caminho correto para o progresso; A forma da nova cultura nacional.

Este “paganismo” não morreu facilmente. Os Cristãos sempre estiveram dispostos a lutar sangrentas batalhas e guerras para “converter” os outros ao seu modo de pensar, até mesmo ao seu próprio povo. Talvez a ameaça daqueles que se atreviam a persistir nas religiões nas quais nasceram se originava do medo de que o Cristianismo não triunfasse como o campeão ideológico do “novo” Europeu. Imagine a ansiedade que isso causava para aqueles que estavam convencidos da necessidade de “progresso!”

Uma perspectiva Africano-centrada nos obriga a olhar mais de perto essa história, esse desenvolvimento cultural. Devemos entendê-lo. Usando o conceito de asili, o comportamento “paranóico” aparentemente complexo por parte do europeu torna-se claro como cristal e faz “sentido,” desdobrando-se a partir da lógica do desenvolvimento Europeu. Por que é que pessoas que eram “não-Cristãs e que estavam matando Cristãos se tornariam Cristãs elas próprias e começariam a matar seus irmãos e irmãs para torná-los Cristãos?” Qual é a conexão entre essa nova religião e o ethos das religiões praticadas pelos primeiros e “atrasados” Europeus?

O conceito de asili nos diz para procurar por consistência; A consistência a qual buscamos reside no princípio explicativo e gerador do desenvolvimento Europeu. Os Europeus sempre estiveram envolvidos em uma busca implacável por poder, hegemonia política, expansão e controle técnico. À medida que este desejo de conquista se desenvolveu de forma mais intensa, os parâmetros do ser conquistador e do território (mundo) a ser conquistado se expandiram. Constantino percebeu engenhosamente a eficácia do Cristianismo institucionalizado como um mecanismo de apoio para a coesão do Império. Mais tarde, o Cristianismo seria moldado como o veículo apropriado para um conceito muito mais ampliado de imperialismo, que exigia um conceito de progresso mais refinado e, mais importantemente, uma identificação mais coesa e, ao mesmo tempo, ampliada da cultura conquistadora: a Europa.

Davidson diz: “Uma vez que eles próprios [os ‘idólatras’] não tinham vontade de fazer conversos, eles estavam em uma séria desvantagem, e era apenas uma questão de tempo antes de a nova religião substituir a velha.” *

[ * — Davidson, p. 14.]

Conscientemente ou não, ela está apontando para uma desvantagem política e ideológica. Por outro lado, ela ataca a vantagem política e ideológica de que gozam os Cristãos. Os “Pagãos” não procuram conversos. Esses Europeus “pagãos” podem ter sido “idólatras bárbaros,” conquistando outros e até expandindo seus territórios, mas eles não usaram suas religiões para fazê-lo. A postura de suas religiões não tinha sido imperialista. Não era orientada para o exterior. Eles não entenderam os usos políticos da religião (os Africanos e a maioria dos outros não-Europeus ainda não o fizeram. Os Árabes são os únicos não-Europeus a terem usado a religião desta maneira.) A proselitização é inerentemente imperialista; perfeitamente adequada para suportar um utamaroho expansionista. Agora podemos começar a entender em que sentido o “paganismo” era “atrasado” em uma perspectiva Eurocêntrica.

Existem outras dinâmicas para esse fenômeno; Outras peças para o enigma de por que o Cristianismo e não o Paganismo. A cultura pagã Indo-Européia era violenta, agressiva, xenófoba, e individualista. Sua religião exigia o sacrifício do sangue humano, assim como muitas religiões. Seria a resposta então que o Cristianismo era mais adequado ao utamaroho Europeu porque os Europeus se tornaram mais pacíficos, amorosos e comunalistas? Essa resposta é ilógica, pois a Europa nunca foi caracterizada por esses valores. Pelo contrário, o comportamento Cristão Europeu é igualmente xenófobo — apesar da sua xenofilia retórica — e abraça a guerra e a violência em nome do deus Cristão. Em períodos posteriores, envolve a ética individualista do materialismo capitalista. E, além disso, exigiu o sacrifício humano!

Mas certamente há uma diferença entre o Cristianismo Europeu e o Paganismo Europeu. O utamaroho da cultura Pagã Indo-Européia é o mesmo. As estruturas formais através das quais ele é expresso são diferentes do mesmo modo que a cultura camponesa Européia e a cultura Européia arcaica são diferentes da cultura cosmopolita da “multinacional” Européia. É uma questão de “sofisticação,” mas não para indicar um comportamento valioso em qualquer sentido universalmente válido. A “sofisticação” refere-se à hipocrisia que começou a se desenvolver dentro das entranhas da cultura Européia. Era uma questão de pragmatismo e eficiência. O Cristianismo era uma ferramenta mais refinada para a propagação [selling] do imperialismo Europeu.

Existem certos traços que contribuiram para o sucesso da civilização Européia em sua busca por suprema dominância e controle de outros. É uma cultura baseada em uma ideologia da mudança superficial. Isso permite que sua hegemonia se amplie enquanto se mantém. Se o que pode ser chamado de “mudanças modais” não ocorre em pontos históricos estratégicos, o objetivo da dominação total falhará. O modo epistemológico Platônico (utamawazo) colocou a cultura arcaica Européia no caminho certo, por assim dizer, para uma expansão imperialista bem-sucedida ao estabelecer os limites intelectuais dessa idologia. O utamaroho agressivo já existia. Ele tinha de ser aparelhado para um desempenho eficiente. Aqui está o gênio da Europa! [Herein lies the genius of Europe!]

O que a Grécia clássica alcançou no nível intelectual, a Roma clássica deve alcançar politicamente. O “Paganismo” não se encaixava. Era simples assim. À medida que os objetivos imperialistas desses Europeus incipientes se expandiam, as várias modalidades da estrutura cultural ficaram sem sincronia entre si. Se não tivessem sido remodeladas, reajustadas de modo a formar uma unidade coesa, a Europa teria fracassado — apenas uma outra cultura vivendo pacificamente em um universo culturalmente pluralista. Infelizmente para o resto de nós, não [ela não fracassou]. Pelo menos não nesta conjuntura. (A Europa medieval representa um longo período de dormência, uma perda de impulso, talvez até uma ambivalência intelectual no que diz respeito à ideologia do progresso e da mudança. Mas, posteriormente, a cultura se reagrupou e voltou a se dirigir para o caminho em direção a dominação mundial através do avanço tecnológico.) A revolução Protestante e a ascensão do capitalismo representam as respostas criativas necessárias em outros momentos [conjunturas] desse tipo na história Européia. A cooptação do Cristianismo foi uma resposta em 312 d.C. Constantino era o estrategista astuto em questão. E funcionou.

A Violência, agressão, e xenofobia não poderiam mais ser expressas na forma do paganismo Europeu se estes Europeus incipientes queriam desenvolver seu império. O utamaroho era consistente. Ele ainda exigia controle, agressão e sacrifício humano. Mas a visão estava mudando; a visão do que era possível e, por sua vez, o que era necessário. Uma visão mais expandida exigiu uma técnica mais sofisticada. Esta tem sido a lei imutável do desenvolvimento Europeu.

A institucionalização Europeia do Cristianismo era algo parecido com um avanço tecnológico. Ela acrescentou o elemento da proselitização que mais se adequava ao objetivo do expansionismo imperialista dentro do qual esses objetivos poderiam ser escondidos ou camuflados. As tendências xenófobas, agressivas e violentas foram moldadas em uma declaração mais sutil que as embalou em uma retórica universalista, pacífica e moralista. Em outras palavras, a religião pagã Indo-Européia “bárbara” tornou-se mais “moderna” na formulação Cristã, mais adequada às novas demandas do “progresso” Europeu, progresso claramente se referindo a uma eficiência cada vez maior do mecanismo de controle total. A civilização Européia pode ser entendida como nada mais do que o mecanismo mais eficiente para esse fim.

Como sempre, o utamaroho permanece o mesmo. Esse é o fator consistente e imutável. A ideologia é informada pelo utamaroho, mas deve se desenvolver à medida que a visão cresce. Pois o utamaroho, é expansionista; sempre buscando um espaço maior para ser alojado, um grande “relvado” para controlar. Isso nos leva a um segundo aspecto do gênio político Europeu. À medida que a visão cresce, a consciência nacional também deve. Isso é crítico, pois a natureza do utamaroho exige uma definição expandida do eu [self]. Estamos falando sobre o crescimento da consciência política. É por isso que os comportamentos cultural e político só podem ser separados superficialmente. Eles são unidos na ideologia. O comportamento político a nível nacional exige a definição do interesse da nação em relação a outras nações. A definição do interesse requer uma consciência nacional. A cultura cria essa consciência através de sua função ideológica.

No início da história Européia ou Indo-Européia, testemunhamos violentas tribos ou hordas cujas vidas eram ordenadas pela guerra. É verdade que eles tenderam a se mover em vários pontos, nos povos mais pacificamente orientados, menos agressivos, geralmente no sul. Após essa invasão do sul, quando seu utamaroho foi implantado no Mediterrâneo, e então? Eles continuaram a se mover uns contra os outros! Roma foi finalmente tomada por esses povos Germânicos. A cultura passou por períodos de desenvolvimento incerto, instabilidade e insegurança. Claramente, se a hegemonia Européia devia ser alcançada, essa tendência para o comportamento violento devia ser voltada para “outros.” O Cristianismo ajudou a definir quem era o “outro” de uma maneira que se encaixava na ideologia de progresso Européia. Tornar um Romano, um Britânico, um Franco em um “Europeu” não seria fácil, mas era a ordem do dia em termos da lógica do desenvolvimento Europeu. Primeiro, o Cristianismo ortodoxo proporcionou a estrutura perfeita dentro da qual a declaração (sublimada) de agressão, inclusive o sacrifício humano e a ideologia imperialista poderiam ser engrenados e, por fim, proporcionou a estrutura perfeita para a forja de uma consciência Européia que poderia realizar essa visão de um mundo dominado pela Europa.

O Cristianismo alcançou a unificação do novo eu Europeu [new European self]. Atuou como um elemento unificador ao abrigar e solidificar o utamaroho Europeu nascente, um [utamaroho] herdado de um passado “bárbaro” do norte. Ajudou a redefinir o nacionalismo Europeu como imperialismo universal. (É por isso que a declaração Judaica foi insuficiente.) A civilização Européia tem sido tão bem sucedida em parte por causa de sua capacidade de hostilidade direta e externa [outer-direct hostility], outro exemplo de gênio político. Quando essa habilidade é dificultada, a sobrevivência da cultura está ameaçada. As tendências destrutivas dentro são tão intensas e tão endêmicas para a cultura que devem ser redirecionadas continuamente. A cooptação do Cristianismo representou tal redirecionamento da energia agressiva.

Agora, a diferença e a relação entre o paganismo Europeu e o Cristianismo Europeu podem ser colocadas no seu próprio contexto. As religiões pagãs eram agressivas, mas não expansionistas. Elas não tinham essa visão, e elas eram muito separatistas para serem exitosamente imperialistas. O Cristianismo tomou o conceito de sacrifício de sangue humano e elevou-o ao pináculo da religião sacralizando-o no símbolo de Jesus; Isso agiu como uma sanção contra o assassinato de outros Cristãos. Eles então legitimaram sua prática real por desumanizar superficialmente (ideologicamente) não-Cristãos não-Europeus e depois sacrificando-os ao seu deus.

Mas essa mudança não aconteceria da noite pro dia e, como já vimos, até o século XI, os Europeus mais “sofisticados,” que tinham incorporado a visão da hegemonia Européia e agora identificados como Europeus, lutariam e matariam seus irmãos mais “atrasados.” Primeiro, os Celtas, os Godos, os Druidas, os Teutões, os Anglos, os Saxões, etc., então finalmente, e ferozmente, os Vikings, que travariam uma batalha constante para proteger suas identidades nacionais, como eles as definiam, não querendo aceitar essa nova consciência “Européia,” uma consciência que Saint-Simon ainda procuraria solidificar no início do século XIX. A identidade desse longo período de guerras internas pode ser entendida então, não como a batalha dos esclarecidos e dos “civilizados” contra os bárbaros ignorantes, mas como um estágio na luta para instituir e consolidar uma nova ordem imperial.

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O Patriarcado no Desenvolvimento da Religião Européia

[Patriarchy in the Development of European Religion]

A cultura pagã Indo-Européia contribuiu, no entanto, com características para a ideologia Judaico-Cristã Européia. Embora seja possível identificar práticas de dominação masculina na maioria das sociedades do mundo, o patriarcado [patriarchy], como um valor institucionalizado, como característica intrínseca do utamaroho pode ser associado às origens Indo-Européias da civilização Ocidental. Um dos aspectos do desenvolvimento cultural que demonstra isso mais claramente é a religião.

Nas antigas tradições religiosas da África e de outras partes do mundo, encontramos repetidamente a predominância da deusa mãe; A valorização do princípio feminino, o símbolo da Terra. Essas tradições estavam bem desenvolvidas antes que fosse possível falar de povos “Ocidentais” ou “Europeus Ocidentais.” As civilizações mais velhas e mais “Sulistas” podem ser generalizadas em um modelo cultural ou ideológico em contraste com os grupos Nortistas mais jovens mais agressivos que compreendem o que se chamou de civilização dos “Túmulos” [“Tumuli” civilization], associada culturalmente com os Indo-Europeus e racialmente como os Arianos . É este último grupo que nos interessa porque ele representa os antepassados ​​culturais/ raciais — os ancestrais — do que chamamos agora de “Europa.” Essas pessoas vieram das “regiões do Norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e os Caucasianos,” de acordo com Mircea Eliade.*

[ * — Mircea Eliade, A History of Religious Ideas, Vol. I, trans. Williard R. Trask, University of Chicago Press, Chicago, 1978, p. 187.]

Uma breve declaração sobre a teoria dos “Dois Berços” de Cheikh Anta Diop sobre as origens da Civilização ajudará a iniciar nossa consideração sobre o tema do patriarcado na religião Européia. A preocupação de Diop em seu livro The Cultural Unity of Black Africa [A Unidade Cultural da África Preta] é com “os Domínios do Patriarcado e do Matriarcado na Antiguidade Clássica.” Para ele, esses tipos de ordem social correspondem a dois “berços” da civilização contrastantes. Estes dois berços são áreas de origem para dois tipos diferentes de civilização que refletem duas visões de mundo diferentes e estilos de vida correspondentes. As diferenças entre esses locais de origem parecem originar-se na ecologia, de acordo com a explicação de Diop.

O ambiente do berço do Norte era duro, frio e relativamente infértil, carente de oportunidades para a agricultura. A adaptação a este ambiente produziu uma série de características culturais/sociais, entre elas agressividade, individualismo, predominância de carne na dieta e monogamia. Havia outras características, mas serão discutidas mais detalhadamente, juntamente com uma elaboração mais profunda da teoria de Diop nos capítulos subseqüentes. É interessante notar, no entanto, que Diop está argumentando contra a interpretação Eurocêntrica de Bachofen, Morgan e Engels sobre as origens do “direito-materno” [“mother-right”] e da poligamia.

Nosso foco aqui é sobre a religião e, de acordo com Diop, a natureza nômade e transiente do estilo de vida do antigo Indo-Europeu teve alguns efeitos interessantes:

Naquela existência reduzida a uma série de migrações perpétuas, o papel econômico da mulher foi reduzido a um mínimo rigoroso; Ela era apenas um fardo que o homem arrastava atrás dele. Fora da sua função de maternidade [child-bearing], seu papel na sociedade nômade é nulo. É a partir dessas considerações que uma nova explicação pode ser buscada para explicar o quinhão da mulher na sociedade Indo-Européia.*

[ * — Cheikh Anta Diop, The Cultural Unity of Black Africa (A Unidade Cultural da África Preta), Third World Press, Chicago, 1979, p. 29.]

Essa desvalorização do papel feminino foi incorporada às suas práticas religiosas. Entre os nômades, que não tinham residência permanente, a cremação tomou a precedência sobre o enterro, e o fogo, que proporcionava o muito necessitado calor em uma terra com pouca incidência de luz solar direta ou próxima, foi “adorado.” Rituais do Fogo ainda podem ser testemunhados em algumas comunidades Européias. (Veja James Frazier, The Golden Bough, New York, Mentor, 1964.) Em contrapartida, de acordo com a teoria de Diop, no “Berço do Sul”, a Terra assume a proeminência uma vez que a atividade agrícola e a fertilidade abundam. A população é mais pacífica, segura e sedentária. As mulheres desempenham um papel fundamental na economia e na subsistência. O princípio feminino é o fundamento das concepções cosmológicas.

Mircea Eliade, em seu trabalho A History of Religious Ideas (História Das Crenças e Das Idéias Religiosas), Vol. 1, identifica esses Arianos belicosos como os “Proto Indo-Europeus” e os “Indo-Europeus.” Estas são as pessoas do “berço do Norte” de Diop. Eliade identifica-os como iniciadores de um período destrutivo de invasões nas regiões do Sul entre 2300 e 1200 anos antes da Era Cristã. Isso faz parte do que ele chama de “Indo-Europeização,” que teve efeito sobre as idéias e práticas religiosas das áreas nas quais essas pessoas se expandiram. Eliade está interessado em delinear e entender esses efeitos.

Em termos de análise Africano-centrada, o processo que Eliade identificou faz parte do processo historicamente contínuo de expansão imperialista Européia. Esta “Indo-Europeização” de que Eliade fala é a primeira expressão do utamaroho Europeu. Eliade diz:

Esse processo característico — migração, conquista de novos territórios, submissão de habitantes, seguido de sua assimilação — não terminou até o século XIX da nossa Era. Tal exemplo de expansão linguística e cultural é desconhecido de outra forma.*

[ * — Eliade, A History of Religious Ideas, Vol. I, p. 187.]

Se aceitarmos a afirmação de Eliade como acurada, pareceria que, como cientistas sociais e historiadores, deveríamos ter curiosidade quanto ao motivo da intensidade peculiar desse fenômeno. O que explica esse comportamento atípico e seu “sucesso”?
De acordo com Eliade, a cultura dos Túmulos (Kurgan) [Tumuli (Kurgan) culture] desenvolveu-se entre o quinto e o terceiro milênios e expandiu-se para o oeste por volta de 4000 a.C. Eles então passaram a “penetrar na Europa Central, na Península dos Balcãs, na Transcaucásia, na Anatólia e no Norte do Irão (cerca de 3500-3000 a.C.); No terceiro milênio eles chegaram ao norte da Europa, à região do Egeu (Grécia e as Costas de Anatólia) e ao Mediterrâneo.” Estes, diz ele, eram os proto Indo-Europeus. Esta cultura Indo-Européia em desenvolvimento foi influenciada pelas civilizações mais desenvolvidas da África (o “Oriente Próximo” [“Near East”] é um termo equivocado [misnomer]) e do Oriente. * Eles praticaram a agricultura, mas “preferiram desenvolver uma economia pastoral.”

[ * — Ibid, p. 188.]

A explicação de Eliade, ao contrário da de Diop, implicaria que havia algo além da necessidade ecológica que determinou essa predileção pelo estilo de vida nômade, mas ele não diz o que esse fator poderia ser. “O nomadismo pastoral, a estrutura patriarcal da família, uma propensão para ataques e uma organização militar destinada à conquista são características das sociedades Indo-Européias.” *

[ * — Ibid, p. 188.]

Eliade está interessado em determinar a relação entre um estilo de vida de nomadismo pastoral, guerra e conquista, por um lado, e o “surgimento de valores religiosos específicos,” por outro. Ele faz uma tentativa de reconstruir temas de uma religião Indo-Européia comum. Ele sugere a idéia de sacralidade, luz e altura ou elevação celestiais [celestial sacredness]; A idéia de criatividade em seu significado imediato, a idéia de soberania, o deus-do-céu como pai supremo, e de que o fogo aceso pelo raio é de origem celestial. “O culto ao fogo é um elemento característico das religiões Indo-Européias.” Enquanto que “a Mãe Terra como um conceito religioso é recente entre esse grupo.” “Os Arianos não tinham cidades e não sabiam nada sobre escrita. . . . O ferro começou a ser usado somente por volta de 1050 a.C.” *

[ * — Ibid, pp. 189, 190, 197.]

Rosemary Ruether vai ainda mais longe em sua análise e identifica as tendências patriarcais na religião Européia com o monoteísmo:

É possível que as origens sociais do monoteísmo masculino residam nas sociedades nômades de pastoreio. Essas culturas não possuíam o papel de jardinagem feminino e tendiam a imaginar Deus como o Pai do Céu. As religiões nômades foram caracterizadas pelo exclusivismo e uma relação agressiva e hostil para com o povo agrícola da terra e sua religião. *

[ * — Rosemary Radford Ruether, Sexism and God-Talk: Toward a Feminist Theology, Beacon Press, Boston, 1983, p. 53.]

Embora sua análise faça eco à de Diop e de Eliade de muitas maneiras, em nenhuma das outras duas teorias, vemos essa conexão entre o que para nós são aspectos críticos e característicos do Cristianismo Europeu: patriarcado e monoteísmo. Claramente, o monoteísmo está relacionado ao monarca e ao monolito, à formas de poder. Quem é o monarca? Certamente, a resposta Européia seria que o monarca deve ser masculino.

Na opinião de Ruether:

O monoteísmo masculino torna-se o veículo de uma revolução psicocultural da classe dominante masculina em sua relação com a realidade circundante. Enquanto o mito antigo tinha visto os deuses e deusas dentro da matriz de uma realidade físico-espiritual, o monoteísmo masculino começa a dividir a realidade em um dualismo de espírito transcendente (mente, ego) e natureza física inferior e dependente. *

[ * — Ibid, p. 54.]

Ruether aponta para uma das características do utamawazo Europeu (que discutimos no cap. 1): a tendência de “separar” [“split”] a realidade em categorias valorizadas e desvalorizadas, que são ditadas por um utamaroho que deve se relacionar com os fenômenos como ou o eu superior ou o outro inferior [either the superior self or inferior other], de modo a justificar a conquista e o controle.

O homem é visto essencialmente como a imagem do ego ou Deus transcendente masculino, a mulher é vista como a imagem da natureza inferior e material. . . . O gênero torna-se um símbolo primário para o dualismo da transcendência e da imanência, do espírito e da matéria. *

[ * — Ibid, p. 54.]

Elaine Pagels também aborda o tema da natureza patriarcal do Cristianismo Ortodoxo Europeu. Mas ela inclui corretamente o Judaísmo e o Islamismo em sua descrição. Essas três tradições religiosas são conspíopes na falta de simbolismo feminino positivo, enquanto que a maioria das religiões do mundo “abundam em simbolismo feminino.” *

[ * — Pagels, p. 57.]

Mas e a tradição Cristã primitiva? De acordo com Pagels, os Gnósticos combinavam os princípios feminino e masculino em sua imagem do divino. Valentino “sugere que o divino pode ser imaginado como uma díade, consistindo, em parte, no Inefável, a Profundidade, o Pai Primeiro, e por outra [parte], na Graça, Silêncio, o útero e Mãe de Todos.” *

[ * — Ibid, p. 59.]

Na visão Africana, falamos da interação harmoniosa dos complementares Divino Feminino e [Divino] Masculino. Essa idéia de complementaridade, tão visivelmente ausente na visão do mundo Européia ainda estava presente até certo ponto na concepção Gnóstica (Africano-influenciada, Cristã primitiva, pré-política) da deidade. Pagels nos diz que alguns Gnósticos disseram que o Divino era “masculo-feminino — o grande poder masculino-feminino”; Outros disseram que o divino não tinha gênero; E um terceiro grupo afirmou que Este era ambos, dependendo do atributo que você quisesse enfatizar.*

[ * — Ibid, p. 61.]

Alguns gnósticos, ela diz, descreveram seu deus como Mãe, Pai, e Filho. Isso se assemelharia à concepção Africana de Wsir (Osiris), Ast (Isis) e Heru (Horus). Os poderes Femininos, para os Gnósticos, estavam associados ao pensamento, à inteligência e à previsão [foresight]. * Pagels refere-se ao material dos evangelhos “secretos”, revelações e ensinamentos místicos que, diz ela, estão repletos de metáforas femininas e sexuais, e da valorização dos aspectos femininos da criação e da divindade [godliness].

[ * — Ibid, p. 59.]

Mas o processo de censura por parte dos auto-aclamados representantes de Jesus na Terra ocorreu, e

Todos os textos secretos que os grupos Gnósticos reverenciavam foram omitidos da coleção canônica e marcados como heréticos por aqueles que se chamavam Cristãos ortodoxos. No momento em que o processo de classificação dos vários escritos terminou — provavelmente até o ano 200 — praticamente todas as imagens femininas para Deus desapareceram da tradição Cristã ortodoxa.*

[ * — Ibid, p. 68.]

A aceitação e a sacralização do feminino eram acompanhadas por um maior envolvimento das mulheres no movimento Gnóstico quando comparado com a igreja ortodoxa e posições mais proeminentes das mulheres na organização. Os líderes ortodoxos ficaram indignados. Pagels cita Tertuliano: “Essas mulheres heréticas — quão audaciosas são elas! Não têm modéstia, são ousadas o suficiente para ensinar, se engajar em argumentos, promulgar exorcismos, empreender curas e, se necessário, até batizar!” Ireneu castiga Marcus, um Gnóstico, que “convidou mulheres a atuarem como sacerdotes para celebrar a eucaristia com ele”. (Marcus) “Brinda com as mulheres para oferecerem a oração da eucaristia, e para pronunciar as palavras de consagração.” Tertuliano fala pela visão ortodoxa: “Não é permitido que uma mulher fale na igreja, nem é permitido para ela ensinar, nem batizar, nem oferecer [a eucaristia], nem reivindicar para si mesma uma participação em qualquer função masculina — para não mencionar qualquer ofício sacerdotal.” *

[ * — Ibid, pp. 71-72.]

Pagels diz que “a partir do ano 200 não temos evidências de mulheres assumindo papéis proféticos sacerdotais e episcopais nas igrejas ortodoxas”.*

[ * — Ibid, p. 73.]

Do judaísmo e dos valores Judaicos, a Igreja herdou grande parte do seu caráter patriarcal e, apesar de Paulo reconhecer as mulheres como diáconos e colegas de trabalho, ele “argumenta a partir de sua própria — tradicionalmente judaica — concepção de um Deus monista e masculino para uma hierarquia divinamente ordenada de subordinação social; assim como Deus tem autoridade sobre Cristo, ele declara, citando Gênesis 2-3, assim o homem tem autoridade sobre as mulheres.” * Em 1 Coríntios 11: 7-9, “um homem … é a imagem e a glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem. Pois o homem não foi feito da mulher, mas a mulher [foi feita] do homem. Nem o homem foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem.”

[ * — Ibid, p. 73.]

Pagels contrasta a posição das mulheres no Egito, na Grécia e em Roma, onde as mulheres gozavam de muitos direitos com os homens ou estavam no processo de obter mais direitos, com “as mulheres das comunidades Judaicas [que] eram excluídas de participar ativamente do culto público, da educação, na vida social e política fora da família.” * (Na verdade, a posição das mulheres em Kemet era muito superior à das mulheres na Grécia ou em Roma. Tanto que os viajantes dessas áreas ficaram chocados. Veja B. Lesko, The Remarkable Women of Ancient Egypt, 1987.)

[ * — Ibid, p. 75.]

Mas as Escrituras iriam dizer:

Deixe uma mulher aprender em silêncio com toda submissão. Não permito que nenhuma mulher ensine ou tenha autoridade sobre o homem; Ela deve permanecer em silêncio.                                                                                                                                     1 Timóteo 2: 11-12

A Igreja Apostólica decidiu que nenhuma mulher se tornaria sacerdote, e a visão ortodoxa das mulheres era como tendo surgido para a realização [fulfillment]  do homem. Isso coloca os Cristãos em um vínculo. Claramente este conceito de realização [fulfillment] não é espiritual, portanto as mulheres são criadas exclusivamente para o propósito de sua sexualidade; A mesma sexualidade que é represada. São mulheres que são inerentemente más e de toda a humanidade que estão presas em uma contradição sem esperança. Por que as mulheres foram “criadas” em primeiro lugar? Pagels diz:

No final do Segundo Século, a comunidade ortodoxa adotou a dominação dos homens sobre as mulheres como a ordem divinamente ordenada, não só para a vida social e familiar, mas também para as Igrejas Cristãs. *

[ * — Ibid, p. 79.]

Este período de formulação foi de tremendo significado histórico, e foi impressionantemente bem sucedido a partir da perspectiva de consistência e adesão ao dogma. A história da Igreja é prova de que o monolito faz o controle ideológico. Em 1977, o Papa Paulo VI, Bispo de Roma, declarou que uma mulher não podia ser sacerdote “porque o nosso Senhor era um homem.” *

[ * — Ibid, p. 83.]

O que estamos observando ao longo deste estudo é o processo de “Europeização”, uma continuação do que Eliade chamou de “Indo-Europeização.” A mentalidade, o utamawazo, o utamaroho, as tendências comportamentais que este estoque racial-cultural possuía estavam, continuamente, criando e refinando modos para através dos quais se expressar. Não nos surpreendemos em ver as conexões entre a antiga religião Indo-Européia, a organização social e a conquista, ou seja, o pensamento clássico Grego seminal, como expressado nos escritos de Platão, e a igreja ortodoxa do segundo século. Todos fazem parte de uma tradição ideológica; Cada um influenciando e ajudando a determinar a próxima forma cultural histórica; Um elo na cadeia que se tornaria a “Civilização Ocidental.” Mais especificamente, a desvalorização das mulheres é adotada no pensamento Grego clássico, onde é explicitamente elaborada no discurso filosófico de Platão e Aristóteles. Eles abriram o caminho, juntamente com valores sociais Judeus, para uma igreja patriarcal. O que pode ter acontecido na sociedade Grega, especialmente, é que os homens tentaram incorporar o princípio feminino dentro de si mesmos, relegando a mulher a um ser meramente fisicamente diferente, que tinha pouco valor para contribuir para a construção e manutenção do Estado. Desta forma, os homens, que eram a forma valorizada de ser, não eram forçados a buscar fora de si mesmos pela totalidade, ou assim eles se levaram a acreditar. Em seu livro Centaurs and Amazons [Centauros e Amazonas], Page duBois discute este processo de desvalorização através de um exame do Timeu:

O filósofo mantém sua proximidade com o divino, movendo-se para cima na escala dos seres, enquanto que os homens que falham no esforço da filosofia são punidos se tornando mulheres nas suas segundas vidas. Nenhuma mulher pode ser uma filósofa. Ela deve esperar até a morte, quando sua alma pode ser reencarnada no corpo de um homem.*

[ * — Page duBois, Centaurus and Amazons: Women and the Pre-History of the Great Chain of Being, University of Michigan Press, Ann Arbor, 1982, p. 136.]

E novamente, no Timeu:

O sexo masculino é assimilado à parte divina da alma; Os homens, como essa alma divina, devem ser protegidos do miasma, da poluição representada pelas mulheres. Essa pior parte da alma, comparada às mulheres, é superior ao pior do corpo, que é como um animal. Ela diz: “As mulheres foram associadas ao corpo, que era inferior à mente, e assim, como o corpo, servia à alma, à cabeça, ao filósofo, ao homem.” *

[ * — Ibid, p. 140.]

E da República, ela cita: “… todas aquelas criaturas geradas como homens que se mostraram covardes (deiloi) e passaram a vida em erro foram transformadas, em sua segunda encarnação, em mulheres.” *

[ * — Platão, República, Livro 90e-90a, citado em Page DuBois, p. 135.]

Os pais da Igreja estavam apenas continuando e elaborando ainda mais uma tradição que refletia uma visão particular da realidade, uma visão que já havia emergido na cultura Indo-Européia e no pensamento Grego clássico.

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A Síndrome de Religião e Racionalidade
[The Religion and Rationality Syndrome]
Uma das conseqüências da universalização especiosa da declaração Cristã foi que ela, em conjunto com a adoção do modo Platônico, lançou o Europeu em uma empresa infrutífera, não razoável e sem sentido. Nas palavras de E. L. Allen, “a maior conquista de Sócrates para muitos é a sua insistência no uso da razão para decidir questões morais.”*

[ * — E.I. Allen, Guidebook to Western Thought, English Universities Press, London, 1957, p. 15.]

No entanto, embora isso possa muito bem ser um dos legados mais significativos do pensamento Platônico, também pode ser o mais malvado, dada a compreensão Platônica da natureza da “razão.” É aqui que podemos reconhecer claramente a função/papel definitiva do utamawazo Europeu. Ele forja a consciência e limita as possibilidades da experiência conceitual. A identificação Européia da religião com a racionalidade é uma demonstração dessa tendência, que se origina na necessidade de controle. A interpretação Européia deste “uso da razão” estava vinculada à tentativa de remover a experiência religiosa de sua base cultural natural e, portanto, foi confrontada com a tarefa de “encontrar” (o que, neste caso, significa “criar”), a própria declaração religiosa. Dado o modo perceptual predominante do pensamento Europeu, os Europeus foram destinados a procurar dentro dos limites do abstrato e do racionalismo [rationalistic].

Mesmo Rheinhold Niehbuhr reconhece o dilema posto pela tentativa de abordar e justificar a religião por meio do racionalismo. E ele é forçado a atestar a susceptibilidade perene da Igreja a esse erro:

. . . Obviamente, uma visão que depende de uma supressão ultra-racional é imediatamente ameaçada quando explicada racionalmente; Pois a razão que procura trazer todas as coisas em termos de coerência racional é tentada a fazer de uma coisa conhecida o princípio da explicação e derivar todas as outras coisas dela. Sua inclinação mais natural é fazer de si mesmo o princípio último, e assim, efetivamente, declarar-se Deus. A psicologia e a filosofia Cristãs nunca se libertaram completamente dessa falha, o que explica por que os naturalistas, de forma plausível, consideram erroneamente a fé Cristã como a fonte da fonte do idealismo. *

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 13.]

O que Niehbuhr não quer admitir é que a filosofia Cristã é atormentada por essa concepção particular, porque essa própria concepção é característica de toda a filosofia Européia.

Os Europeus ficaram presos ao assumir que a verdade religiosa consistia apenas em sistemas filosóficos de sua própria criação e, portanto, a atividade religiosa para eles parecia estar devidamente contida em suas próprias “investigações filosóficas.” Eles já tinham estabelecido o critério da religião “verdadeira” para se enquadrar nessa estrutura quando declararam que monoteísmo e revelação eram concepções religiosas mais consistentes, universais e, portanto, mais racionais “do que as politeístas. Mas as declarações religiosas que eles mesmos fizeram tornaram-se cada vez mais insatisfatórias; Por razões óbvias, essas concepções não fizeram nada para realizá-los espiritualmente. Alguns exemplos da discussão teológica Européia em curso ajudarão a esclarecer o ponto.

Terence Penelhum dedicou uma obra inteira ao assunto de Religião e Racionalidade. A busca por “racionalizar” a religião dessa maneira é adequada na opinião dele. Seu livro é uma pesquisa histórica das muitas tentativas dos Europeus de “provar” que o seu deus existe. O trabalho oferece um excelente material etnográfico, pois demonstra em um amplo espectro histórico o sabor peculiar do pensamento Europeu e a singularidade da teologia Européia.

A teologia natural representou a elaboração e refinamento de uma fusão de princípios que teve lugar quando Platão identificou o “verdadeiro” com o “bem.” (No pensamento Kemético [Egípcio antigo], por exemplo, a filosofia, a teologia e a ciência nunca foram separadas. Sua integração torna-se problemática apenas devido à reificação da “Abstração Platônica,” que tende a reduzir o pensamento a um racionalismo limitado.) O que é que a tentativa de “fusão” faz quando definida racionalmente? A seguinte passagem é tirada da obra de Aquino:

Agora, como provamos que Deus é a fonte do ser para algumas coisas, devemos mostrar ainda que tudo além Dele próprio é a partir [provém] Dele.
Pois tudo o que pertence a uma coisa que não seja como tal, pertence a ela por alguma causa, como [a cor] branco para um homem: porque aquilo que não tem causa é algo primeiro e imediato, por isso deve pertencer à coisa essencialmente e como tal. Agora, é impossível que qualquer coisa pertença a duas e a ambas como tal. Pois aquilo que é dito de uma coisa como tal, não vai além dessa coisa: por exemplo, ter três ângulos iguais a dois ângulos retos não vai além de um triângulo. Por conseguinte, se algo pertence a duas coisas, não pertencerá a ambas como tal: por isso, é impossível que qualquer coisa seja predicada de duas [coisas], de modo a ser dita de nenhuma por razão de uma causa, mas é necessário que uma delas seja a causa do outra, — por exemplo, o fogo é a causa do calor em um corpo misto e, no entanto, ambos [o fogo e o corpo misto] são chamados de quente; — ou então, uma terceira coisa deve ser a causa de ambos, por exemplo, o fogo é a causa das velas darem luz.
Agora ser é dito de tudo aquilo que é. Portanto, é impossível que haja duas coisas, nenhuma das quais tendo a causa do seu ser através de uma causa, ou então uma deve ser a causa da outra. Portanto, tudo aquilo que, de qualquer maneira, é, deve ser a partir daquilo a que nada é uma causa de ser. Agora que provamos acima [Ele se refere ao Livro I, Cap. xiii onde ele diz “deve haver um primeiro motor separado e completamente imóvel, e este é Deus“, p. 31] que Deus é esse ser ao qual nada é uma causa de ser. Portanto, Dele é tudo aquilo que, de qualquer maneira, é. Se, no entanto, se diz que o ser não é um predicado inequívoco, a conclusão acima segue mesmo assim. Pois não é dito de muitos equivocadamente, mas analogicamente; E, portanto, é necessário ser trazido de volta a coisa uma. *

[ * — Tomás de Aquino, Suma contra os Gentios, Capítulo XV, Londres, 1923.]

Somente no contexto do utamawazo e utamaroho Europeus, tal declaração seria reconhecível como tendo algo que se assemelhasse remotamente à religião ou à espiritualidade como assunto. A necessidade de “provar” a existência do espiritualmente verdadeiro é uma necessidade Européia. A incapacidade de distinguir entre a “lógica” do silogismo matemático (proposição) e a “razoabilidade” ou “verdade;” E a incapacidade de reconhecer a limitação da análise lógica pura aponta para uma fraqueza conceitual Européia. Somos tentados a ver a declaração de Aquino como o produto de uma demência estranha, mas, se for assim, é uma demência determinada pela asili Européia, a semente cultural ideológica. É característica do utamawazo Europeu, conforme discutido no Cap. 1, e torna-se inteligível, se não totalmente “compreensível,” uma vez que se conhece o utamaroho Europeu. Pois quando o racionalismo torna-se santificado, então, é claro, a teologia formal deve tornar-se racional, para ser considerada adequada para mentes superiores. E, afinal, é disso que se trata a cultura Européia.

Aqui está outro espécime curioso de gênero semelhante tirado da escrita de Leibniz nos Princípios da Natureza e da Graça, Fundados na Razão:

Resulta da suprema perfeição de Deus que produzindo o contrário, Ele escolheu o melhor plano possível, contendo a maior ordem; a melhor situação, lugar e hora arranjados; o maior efeito produzido pelos meios mais simples; o maior poder, o maior conhecimento, a maior felicidade e bondade em coisas criadas que o universo admitiu. Pois, como todas as coisas possíveis têm uma reivindicação de existência na compreensão de Deus em proporção às suas perfeições, o resultado de todas essas reivindicações deve ser o mundo real mais perfeito que seja possível. De outra forma, não seria possível explicar por que as coisas aconteceram, como aconteceram, de outra forma.*

[ * — Gottfried Wilhelm Leibniz, Principles of Nature and of Grace, Founded on Reason, Leibniz: Philosophical Writing, trad. Mary Morris, E.P. Dutton, New York, 1934, p. 27.]

Novamente, a falta de sofisticação ou profundidade da visão espiritual é impressionante aqui — áreas tão impressionantemente desenvolvidas em sistemas Africanos e outros sistemas filosóficos descendentes do Primeiro Mundo. Há muito em Leibniz que carrega o carimbo de Platão, enquanto que Aquino está, obviamente, muito mais em dívida com Aristóteles e seu “motor auto-movente.” Mas assim como Aquino e Leibniz, Platão e Aristóteles representam apenas manifestações ligeiramente diferentes das mesmas tradições e tendências etnológicas: todos adequam-se à asili e assim foram abraçados.

Na introdução ao seu trabalho, Primitive Religion, Robert Lowie diz que as concepções de Leibniz pertencem a um compartimento diferente daquele da “religião” e que, “Em Leibniz, o sabor religioso está singularmente ausente porque suas proposições abstratas deixam a consciência religiosa fria.” * Seu termo “compartimento” é bem escolhido pois implica pelo menos uma diferenciação conceitual entre a natureza das atividades espirituais e científicas. Esta é uma diferenciação requerida pela definição Europeia da ciência e a materialização do universo que a acompanha. O problema é como se desenvolve concepções espirituais que podem ser aplicáveis ​​a um mundo que já se materializou efetivamente (ou afetivamente). A solução é inevitável: reduzir o espírito à matéria; a essência à sua manifestação.

[ * — Robert Lowie, Primitive Religion, Liveright, New York, 1970. p. xiii..]

A maioria das discussões teológicas e filosóficas Européias faz o mesmo [erro de] “compartimento” ou, para usar o termo de Gilbert Ryle, “erro de categoria.” Para a mente Européia, operar fora da esfera racionalista significa uma perda de controle. Isso requer o reconhecimento de um poder maior do que ele próprio, e essa possibilidade é contraditória com o utamaroho Europeu. E então os Europeus enfrentam um dilema, pois a religião, por definição, tem a ver com a consciência do imanente dentro do ser/espírito imortal. É um dilema nunca escapado na teologia Européia, e os Europeus acabam com uma imagem do todo-poderoso ou ser supremo como “a mente mais racional” — que é, claro, sua imagem de si mesmos. Tendo herdado percepções religiosas de tradições mais velhas, eles estavam destinados a mal interpretá-las [misinterpret them].

É a aparência de racionalidade que foi adicionada — uma característica que só eles precisavam. Esta característica exibida nas declarações de Leibniz foi delineada muito antes no pensamento Platônico — sintomas que se tornaram cada vez mais agudos à medida que a tradição Européia envelhecia e endurecia. A “frieza” de Aquino e Leibniz reflete a frieza de uma cultura não equipada para proporcionar aos seus membros percepção espiritual ou uma base moral relacionada. A “força” da cultura Européia reside no seu compromisso fanático com o técnico-científico. Sua fraqueza está na tentativa lamentável de derivar valor significativo a partir de uma mitologia das “verdades eternas de uma lógica universal,” o absoluto do modo racional [the absoluteness of the rational mode].

Muito da obra de William James, “The Varieties of  Religious Experience,” têm em conta o problema da “religião e racionalidade” na medida em que se preocupa com a forma como a experiência religiosa é apresentada aos seres humanos. Em vez de cometer o erro de assumir que ela deve ocorrer adequadamente dentro dos limites do racionalismo, James observa perceptivamente o relacionamento da convicção emocional com a convicção religiosa. Na passagem abaixo, ele está discutindo a convicção de certo “sentimentos de realidade”;

Eles são tão convincentes para aqueles que os têm como experiências sensíveis diretas podem ser, e são, em regra, muito mais convincentes do que os resultados estabelecidos pela mera lógica jamais são . . . Você não pode deixar de considerá-los como percepções genuínas da verdade, como revelações de uma espécie de realidade que nenhum argumento adverso, por mais incompreensível que possa ser para você em palavras, pode expulsar da sua crença. A opinião que se opõe ao misticismo na filosofia é, às vezes, expressa como racionalismo. O racionalismo insiste em que todas as nossas crenças devem finalmente encontrar por si mesmas terrenos articulados. Tais terrenos, para o racionalismo, devem consistir de . . . (1) princípios abstratos definitivamente estáveis; (2) inferências definitivas esboçadas logicamente. Impressões vagas de algo indefinível não têm lugar no sistema racionalista.

E ainda:

Se você tem quaisquer intuições, eles vêm de um nível mais profundo de sua natureza do que o nível loquaz que habita o racionalismo. Sua inteira vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, suas divinações, prepararam as promessas, das quais sua consciência agora sente o peso do resultado; E algo em você sabe de forma absurda que esse resultado deve ser mais verdadeiro que qualquer conversa racionalista de lógica, por mais inteligente que seja, que possa contradizê-la. Esta inferioridade do nível racionalista na fundação de crença é tão manifesta quando o racionalismo argumenta pela religião quanto quando [argumenta] contra ela.*

[ * — William James, The Varieties of Religious Experience, Longmans, green and Company, ew York, 1919, p. 4.]

Por essa razão, todos os trabalhos de documentação de Schonfield “comprovando” o que ele chama de “Trama da Páscoa” [“Passover Plot”], e sua tentativa de rigor lógico, não devem ser capazes de convencer um Cristão de que Cristo não era o “Filho de Deus” (ou “Filho do Homem”), uma vez que a fé pertence à esfera do mito e não à categoria da história secular, que é meramente temporal. * O assunto torna-se ainda mais complicado, no entanto, no contexto Europeu, porque a afirmação Cristã é precisamente a de possuir “verdade histórica.”

[ * — Ver Peter Berger, A Rumor of Angels, Doubleday, Garden City, N.J., 1970, p. 39.]

James faz a distinção entre o que ele chama de “juízo existencial” e “proposições de valor” ou “juízo espiritual.” Em sua associação de valor com o espiritual, James é atípico; E também o reconhecimento dele de que essas duas áreas de juízo “decorrem das diversas preocupações intelectuais.” * Ele está rejeitando o utamawazo Europeu — lutando contra a lógica da asili Européia. E assim ele mesmo é rejeitado pelas tradições culturais (e não incluído na leitura requerida da Filosofia 101, 102 ou 103).

[ * — William James, p. 4.]

Em termos do utamawazo Europeu, as religiões ficaram associadas à crença (sem valor), enquanto que a filosofia foi associada ao conhecimento (valor). Portanto, a tarefa do teólogo era dar à religião Européia a forma de filosofia Européia, de modo a aumentar seu valor. Primeiro, o utamawazo Europeu separou artificialmente o espírito da matéria (conhecido), então desvalorizou o espírito (desconhecido) e tentou redefini-lo em termos de realidade material. Os antigos Africanos tinham feito o contrário; Para eles, toda realidade significativa estava enraizada no espiritual.

A abordagem racionalista da religião é a contrapartida da convicção Européia de que os valores são “descobertos” intelectualmente, em vez de serem criados através de atividades culturais. Essa tendência ideológica tem suas origens históricas e epistemológicas no pensamento Platônico e encontra seu desenvolvimento e interpretação em Aristóteles e nos Escolásticos. Esta “síndrome” talvez aponte mais dramaticamente para o fracasso espiritual das formulações religiosas Européias do que qualquer outro aspecto singular.

 

A Ordem Tecno-Social
Embora o pensamento Judaico-Cristão seja sempre apresentado como sendo tremendamente influente no desenvolvimento da tradição Européia, não é tão freqüentemente esclarecido de que maneira essa influência se fez sentir. Certamente é óbvio que a crença declarada em “fraternidade universal” e “paz” não foi incorporada à ideologia Européia; que esta moralidade Cristã defendida não teve influência formulativa sobre a ética Européia é bastante claro. Em certa medida, trata-se novamente de uma questão de compatibilidade de perspectiva ideológica e tendências culturais. O Cristianismo foi, nos estágios iniciais do desenvolvimento Europeu, conducente ao crescimento da tecnologia. Uma declaração religiosa que não foi bem sucedida no contexto Europeu.

Tal como o Judaísmo, o Cristianismo atuou para apoiar e promover a gravação da tradição em forma escrita como uma atividade valorizada. A doutrina tornou-se autoritativa ao se colocar a tradição oral em forma escrita. A escrita, desta forma agiu como uma sanção na cultura em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, facilitou a organização estatal.

O crescimento do Cristianismo na história inicial da cultura Européia também foi associado às cidades do mesmo modo que a expressão chauvinista Européia associou cultura Européia com “vida urbana.” *

[ * — Arthur E. Boak diz, “A aceitação do Cristianismo foi mais rápida e completa nas cidades do que no campo. Isso deu origem ao uso do termo pagão (do Latin Paganua, “rural,” no sentido de “bárbaro”) para designar não-Cristãos; um uso que se tornou oficial em 370 dC. Entre o quinto e nono séculos, o paganismo praticamente desapareceu dentro dos limites do Império.” (A History of Rome to 565 dC., p. 502.]

O quadro de referência ideológico Europeu parecia acolher confortavelmente a institucionalização da formulação Cristã e o crescimento da sociedade tecnológica Europeia. É uma questão não só de compatibilidade, mas, no contexto Europeu, de necessidade. Existem definitivamente formulações religiosas que não são propícias ao crescimento da tecnologia como este ocorreu no Ocidente.

O crescimento das cidades, o uso da escrita como um modo preferido e a ênfase geral na tecnologia como objetivo social, seguem, todos, de mãos dadas com a assunção de uma crença na “idéia de progresso,” na qual a contínua intensificação desses aspectos sociais constitui valor absoluto. A formulação Judaico-Cristã baseia-se precisamente no mesmo conceito. Dentro desta tradição, a “religião” é vista quase como um avanço tecnológico e, portanto, é auxiliada por e auxilia ao crescimento da ordem técnica. O Cristianismo, então, é neste sentido, bem como outros, bastante “mundano” ou “secular.” É a vantagem das “religiões mundiais,” de acordo com a teoria social Européia tradicional, que elas permitem ao homem “descobrir” o futuro e, portanto, alcançar um estágio mais elevado de desenvolvimento cultural. Essas análises não levantam a questão dos efeitos conceitualmente limitantes de um conceito de tempo estritamente unidimensional em combinação com uma ideologia do progresso; uma combinação que implica a criação de um futuro hipotético. A religião Européia deve lidar com o que é um problema Europeu, o pressuposto profundamente enraizado de um futuro desconhecido e ilimitado.

Esta concepção do tempo e de um futuro opressivo funciona culturalmente para dirigir as atividades de um povo para a criação de uma ordem técnica racionalizada cada vez maior. Na medida em que a ideologia Cristã se baseia em concepções lineares e não cíclicas ou repetitivas, ela apoiou esse tipo de desenvolvimento e foi, portanto, um aspecto importante do desenvolvimento inicial Europeu. Pois embora o crescimento acelerado do colosso técnico pudesse estar ainda muitos séculos distante [no futuro], os germes ideológicos já estavam incubando, lançando as bases para uma Ocidentalização mais madura.

É convincente aqui divergir brevemente, para mencionar o caso aparentemente anômalo do Islã, que possui várias das mesmas caracteristicas ideológicas do Judaísmo e do Cristianismo. O Islã fornece um modelo de organização social que promove algumas das características associadas à cultura Européia: o patriarcado, o ideal monoteísta, a ênfase na acumulação de literatura e na aprendizagem institucionalizada em oposição à educação tradicional. Enquanto a Europa estava passando pelo constrangimento de sua “idade cega” [“idade das trevas”]. A cultura Islâmica preservava e desenvolvia a tradição de estudo [scholarship] que a Europa associou à sua própria história. Por que, então, o Islã não é considerado uma religião “Ocidental”? Ou é? Ele nunca é considerado tal nos livros didáticos em que os Europeus se definem. Os Europeus, obviamente, não optaram por seguir Maomé.

Mas, novamente, usando o índice de chauvinismo cultural e identidade étnica, o caso do Islã e sua relação com a experiência Judaico-Cristã torna-se bastante claro. A religião Islâmica apoiava politicamente uma declaração de nacionalismo e conquista Àrabe, enquanto as religiões Judaica e Cristã são declarações do nacionalismo Judaico e da Europeu Ocidental, respectivamente. Assim como a declaração religiosa Judaica não era para não-Judeus, assim a declaração religiosa Cristã nunca foi pensada para ser e não pode tolerar uma interpretação que incentive a autodeterminação ou solidificação militar, defesa ou agressão de quaisquer povos “não-ocidentais,” “não-Europeus.” A distinção crítica entre Islamismo e Cristianismo é racial-cultural, não teológica-ideológica. As depravadas, prolongadas, e sangrentas cruzadas constituíram uma série de guerras racial-culturais (“étnicas”), “guerras de cor” [“color wars”]. É grosseiramente impreciso e enganador que elas sejam referidas como “guerras religiosas,” sem referência a etnia, raça, ou identificação cultural, como costuma ser feito.

Uma das conexões mais importantes entre o Cristianismo e a tecnologia desde o período colonial é que o Cristianismo missionário prepara o caminho para o capitalismo e a economia de mercado centrada na Europa. Esta forma de Cristianização em áreas como a África foi uma preparação ideológica para aquiescência aos mecanismos de exploração representados pelo colonialismo. As colônias eram necessárias para o crescimento econômico e o desenvolvimento da Europa, o que significava que a população indígena deveria ser convencida de que eles tinham nascido para servir seus mestres Europeus e, além disso, que eles se beneficiariam de tal servidão. Que melhor maneira para fazer esse argumento do que vendendo-os sobre a superioridade do Cristianismo, que poderia salvá-los do destino de serem irreligiosos, pecaminosos, atrasados e pretos? Uma vez convencidos disso, os colonizados começam a assimilar atitudes que ajudam a prepará-los para se encaixarem na organização tecnológica de estilo Europeu, porque essas atitudes estão implícitas no Cristianismo Europeu.

Uma marca da nova mentalidade é o conceito de tempo. Para o Africano, o tempo comum é pontuado pelo tempo sagrado, e o tempo é avaliado de acordo com o que a comunidade experimenta. Portanto, podemos falar qualitativamente de diferentes “tempos,” porque eles são experimentados de forma diferente. A Cristianização repudia esse conceito assim como degrada a cultura Africana, e o substitui por um conceito secularizado de tempo linear uniforme, adequando-se à ordem mais mecanizada, que os colonizadores Europeus e neocolonialistas precisam estabelecer.

Em seu livro Breast of the Earth [Peito da Terra], Kofi Awoonor tem uma excelente discussão sobre o papel do Cristianismo a este respeito e nos diz que “A escola foi o instrumento mais importante do trabalho missionário na África.” * Foi a chave para o processo que despojaria os Africanos de sua cultura para que eles pudessem se tornar parte da ordem técnica, embora no nível mais baixo. A escola sempre afastou as crianças Africanas de seus anciãos e fez com que elas se envergonhassem das próprias coisas que poderiam ter sido fonte de força política e resiliência ao domínio colonial.

[ * — Kofi Awoonor, The Breast of the Earth, Doubleday, Garden City, N.J., 1975, pp. 28,30.]

A nova tecnologia de exploração exigia que os Africanos se tornassem uma imitação do Europeu. * Requeria uma transformação total que incorporasse novos padrões de sucesso e status social.**

[ * — Ibid, p. 26.]
[ ** — Ibid, p. 27.]

O Cristianismo, é claro, significava “civilização.” Ser civilizado era tornar-se tão parecido com o Europeu quanto possível. Awoonor nos diz que “Os convertidos também foram encorajados a adquirir cultura material Européia . . . . A superioridade do modo de vida Europeu foi rigorosamente inculcada. * Isso incluia viver nos municípios que os missionários estabeleceram, em oposição às aldeias em que viviam os parentes Africanos.

[ * — Ibid, p. 26.]

A escola missionária desencorajou o uso de línguas Africanas. “Conversão Cristã significava mudança cultural,” uma mudança essencial para vestir a roupagem cultural da tecnologia Européia.” Cristo era um homem branco; os santos eram brancos; e os missionários eram brancos . . . Continuamente, foi dito ao Africano que ele estava amaldiçoado ao aderir aos caminhos de seus pais, e porque ele tinha a pele preta, as implicações não estavam perdidas para ele. . . A erosão fundamental da confiança do Africano em si mesmo começou com o primeiro convertido Cristão.” *

[ * — Ibid, pp. 28, 30.]

Uma das maneiras mais importantes pelas quais a educação missionária preparou os Africanos para o capitalismo e a ordem tecno-social Europeia foi destruindo a integridade da organização de linhagem que constituia a base para a estrutura tradicional da comunidade. O Cristianismo enfatizou a salvação individual e a “cultura material Judaico-Cristã,” como frisa Awoonor, e denunciou todas as formas comunais, como a poliginia, o sistema educacional tradicional e, especialmente, o comunalismo econômico; ou seja, a propriedade comunitária e a repartição de recursos. O individualismo era um valor implícito do Cristianismo missionário como se revelou entre os colonizados pelos Europeus.

O “Africano civilizado” se comportou e se vestiu e falou como um Europeu. Ele tinha sido educado em escolas Européias que começaram com a escola missionária e, portanto, foi treinado para defender os valores Europeus e para perpetuar o controle Europeu: o propósito de qualquer sistema educacional é perpetuar a sociedade que ele cria. O Africano “não-evoluido” ou “não-civilizado” era um primitivo “não-salvo,” “não-educado” e “não-Cristão” e, portanto, “uma mercadoria [chattel] útil para minas e fazendas —” assim pensavam os Europeus e seus Africanos “civilizados.” * O Cristianismo missionário despojou os colonizados “não-Europeus” de tudo. Neste estado psicologicamente inseguro, eles poderiam então ser imersos na ideologia da ordem técnica. E tantos Africanos eles próprios falarão das “bênçãos” do Cristianismo, porque lhes é vendida a “ideologia do progresso” à qual seus adeptos Europeus se inscrevem.

[ * — Ibid, p. 30.]

Não é apenas em termos das tendências tecnológicas específicas manifestadas no estilo de vida Cristão que a essência desse relacionamento reside (por exemplo, deificação da escrita, alfabetização, crescimento das cidades, etc.). A compatibilidade da doutrina Cristã com o desenvolvimento da tecnologia no Ocidente encontra-se em um nível mais profundo e mais crítico. A ideologia Cristã é teleológica, fornecendo um modelo conceitual peculiar ao utamawazo Europeu; Ambos são baseados em e são peculiares a uma determinada imagem do humano. A interpretação Cristã-Européia do ser humano é de um ser que deriva significado a partir de sua capacidade de se mover em direção a um objetivo universal — tanto “progressivo” quanto “racional.” É essa idéia, e não a idéia de “não-deste-mundo,” de “fazer-aos-outros” que funciona como o fator motivador da ideologia Cristã; [a idéia de] “do outro mundo” [“other-worldliness”] vai contra o grão do “avanço” tecnológico. O ideal, é claro, é uma abstração; implica um movimento infinito em si. Ele é crucialmente associado à criação de poder que, por sua vez, é associado à eficiência. Ambos, poder e eficiência, são identificados com o controle da natureza e das pessoas e à crença de que é o destino natural e próprio dos seres humanos negar a natureza e/ou a condição “primária.”

Rheinhold Niebuhr declara orgulhosamente: “A idéia de progresso é possível somente com base em uma cultura Cristã.” * Niebuhr pretende aqui apontar para um atributo “positivo” e culturalmente desejável dessa ideologia. Ele não questiona a validade universal do conceito. Niebuhr nunca realmente repudia a idéia em termos de seu impulso ideológico; Ele simplesmente mordisca um pouco nas bordas [he merely nibbles a bit at the edges.]

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 24.]

Conforme observado no Cap. 1, Lynn White apontou para períodos específicos no desenvolvimento Europeu e apresentou um caso impressionante para a relação de apoio entre a tecnologia Européia e a religião Européia. “A ciência moderna,” que White identifica com a cultura Européia, baseia-se em certos pressupostos sobre a natureza do ser humano e nossa relação com o meio ambiente. A ideologia Cristã apoia estes pressupostos. Na visão de White, “nossos [Europeus] movimentos tecnológicos e nossos movimentos científicos tiveram seu início, adquiriram seu caráter e alcançaram o domínio mundial na Idade Média”.*

[ * — Lynn White, “The Historical Roots of Our Ecological Crisis,” in The Subversive Science, Paul Shepard and Daniel McKinley (eds.) Houghton Mifflin, Boston, 1969, p. 345.]

O estilo único em que essas atividades foram realizadas no Ocidente requere concepções ontológicas particulares, concepções que, diz White, são de origem “religiosa.” Na sua opinião, as idéias sobre a natureza, nossa relação com ela, e nosso destino, que cristalizaram na teologia Cristã Medieval, foram o contribuinte dominante para a ascendência ideológica da ciência e da tecnologia no Ocidente, uma ascendência que explica a atual “crise ecológica” da Europa Ocidental, uma vez que a ordem técnica é essencialmente exploradora da ordem natural.

Mas podemos olhar para um período ainda mais antigo para as origens do desenvolvimento. O pensamento Judaico-Cristão em companhia da epistemologia Platônica iniciou a desacralização da natureza que permitiria uma ordem tecno-social desumanizada e a concepção materialista e mecanizada do universo da qual a ciência Européia depende. Este cosmos desacralizado foi uma concepção antiga dentro da tradição Hebraica. Mircea Eliade diz:

A religiosidade cósmica continuava a dialética mais elementar do sagrado, especialmente a crença de que o divino se encarna, ou se manifesta, em objetos e ritmos cósmicos. Tal crença foi denunciada pelos adeptos de Yahweh como a pior idolatria possível, e isso desde a entrada dos Israelitas na Palestina. . . . Os profetas finalmente conseguiram esvaziar a natureza de qualquer presença divina.*

[ * — Eliade, A History of Religious Ideas, Vol. I. p. 354.]

Isso equivalia a um ataque à natureza como parte integrante da nossa existência humana; uma atitude que ia de mãos dadas com a submersão Hebraica do poder das mulheres. O Feminino Divino está associado à fecundidade da Terra e à centralidade da ordem cíclica e das operações da natureza em nossas vidas [the workings of nature in our lives]. O feminino, em outras tradições, simbolizava a força da natureza, que é geradora de toda a vida. Se o divino é identificado com a fecundidade da Terra e com a natureza, então, como Rosemary Ruether aponta, a tendência do pensamento Judaico-Cristão para desacralizar a natureza iria de mãos dadas com a necessidade de desvalorizar o feminino e, portanto, masculinizar a concepção de um deus. * Ruether observa que, em Gênesis 1, Deus ordena Adão para “Encher a terra e subjugá-la e dominar sobre ela.”**

[ * — Reuther, Ch. 2.]
[ ** — Ibid, p. 76.]
[ — Nota do tradutor: Essa citação de Gen. 1:28 pela Autora está incorreta. Ela alterou o final da frase, pois o texto Bíblico não diz para o homem ‘dominar sobre a terra’ (dominai sobre ela) mas sim para ‘dominar sobre os’ animais.]

Esta masculinização na concepção Hebraica de “deus” está ligada à necessidade de acreditar que o ser pode ser mecanicamente, tecnicamente “criado.” E embora esta sociedade Hebraica inicial possa estar distante no tempo até o colosso técnico que agora experimentamos, a visão da realidade em que este colosso foi construído estava sendo posta em prática na declaração Judaica inicial. Surgiram duas visões-de-mundo divergentes: (1) a mais antiga, em que a natureza estava associada a experiência significativa; (2) a visão de mundo Platônica, Judaico-Cristã, em que o ser significativo era uma realidade “desnaturada” humano-controlada [a human-controlled “denaturated” reality].

Em seu livro The Sacred and the Profane [O Sagrado e o Profano], Mircea Eliade nos dá uma visão fenomenológica do sagrado e do religioso que contradiz diretamente essa desacralização Judaico-Cristã da natureza. “Para o homem religioso, a natureza nunca é apenas  “natural,” ela é sempre repleta de um valor religioso.” Os deuses “manifestam as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do mundo e dos fenômenos cósmicos.” *

[ * — Eliade, The Sacred and the Profane, p. 116.]

Ele diz que para a pessoa religiosa, o universo se apresenta como uma criação divina, como cosmos. “Os ritmos cósmicos manifestam ordem, harmonia, permanência, fecundidade.” A natureza sempre expressa algo que a transcende. É “supranatureza,” e não natureza. *

[ * — Ibid, p. 118.]

Nós “nos tornamos conscientes do sagrado porque ele se mostra como algo completamente diferente do profano . . . a manifestação de uma realidade  que não pertence ao nosso mundo.” Mas essa realidade pode ser sentida dentro de objetos que fazem parte do mundo profano.*

[ * — Ibid, p. 11.]

Eliade então diz algo muito revelador sobre a cultura:

O Ocidente moderno experimenta uma certa inquietação perante muitas manifestações do sagrado. Ele tem dificuldade em aceitar o fato de que, para muitos seres humanos, o sagrado pode ser manifestado em pedras ou árvores, por exemplo.*

[ * — Ibid, p. 11.]

A árvore sagrada Africana, a escultura ancestral sagrada — (o que os Judeus, os Cristãos e os Muçulmanos chamam de “ídolos”) não são apenas Kintu (objetos), são “hierofanias.” *

[ * — Ibid, p. 12.]

A cruz Cristã é um ídolo? Jesus era um ídolo? Talvez os verdadeiros ídolos sejam as notas de dólar na sociedade Euro-Americana — literalmente “concretizadas” em edifícios one-hundred-story [one-hundred-story buildings]. Esta é a verdadeira idolatria: adoração do objeto.

Eliade diz: “o cosmos totalmente desacralizado é uma descoberta recente na história do espírito humano. . . a desacralização permeia toda a experiência do homem não religioso das sociedades modernas e . . . conseqüentemente, ele acha cada vez mais difícil redescobrir as dimensões existenciais do homem religioso nas sociedades arcaicas.” *
Se substituímos “modernas” por “Européias” e “arcaicas” por “não-Européias,” temos uma formulação que leva a uma crítica significativa da cultura Européia.

[ * — Ibid, p. 13.]

Lynn White traça o desenvolvimento das concepções ontológicas inerentes à religião Européia, sobre as quais depende o compromisso Europeu de criar um ambiente artificial tecnicamente controlado. A visão de mundo Judaico-Cristã introduziu um “Deus” todo-poderoso que criou “homem;” mas, diz White, foi o “homem” que “nomeou todos os animais, estabelecendo assim seu domínio sobre eles.”

Deus planejou tudo isso explicitamente para o benefício e o governo do homem: nenhum item na criação física tinha qualquer propósito a não ser servir os propósitos do homem. E, embora o corpo do homem seja feito de argila, ele não é simplesmente parte da natureza: ele é feito à imagem de Deus. . . . O Cristianismo é a religião mais antropomórfica que o mundo já viu . . . O homem compartilha em grande medida a transcendência de Deus à natureza. O Cristianismo. . . não só estabeleceu um dualismo de homem e natureza, mas também insistiu que é a vontade de Deus que o homem explore a natureza para seus próprios fins. . . . Ao destruir o animismo pagão, o Cristianismo tornou possível explorar a natureza em uma disposição de indiferença para com os sentimentos de objetos naturais. . . . Os espíritos em objetos naturais, que antigamente haviam protegido a natureza do homem, evaporaram. O monopólio efetivo do homem sobre o espírito neste mundo foi confirmado, e os velhos inibições da exploração da natureza se desintegraram.*

[ * — White, pp. 347-348.]

No século XIII, a teologia natural no Ocidente Latino estava “se tornando o esforço para entender a mente de Deus pela descoberta de como sua criação opera.” * Desta forma, “a ciência Ocidental moderna foi lançada na matriz da teologia Cristã. O dinamismo da devoção religiosa, moldado pelo dogma Judaico-Cristão da criação, lhe deu ímpeto.” **

[ * — White, pp. 347-348.]
[ ** — Ibid, p. 349.]

Devido ao fato das concepções ecológicas Européias estarem implícitas no desenvolvimento da ordem técnica, as atitudes “Cristãs” podem ser consideradas como pré-requisitos. White diz:

Nós somos superiores à natureza, desdenhosos dela, dispostos a usá-la para o menor capricho. . . . Para um Cristão, uma árvore não pode ser mais do que um fato físico. Todo o conceito do Bosque Sagrado é estranho ao Cristianismo e ao ethos do Ocidente. Por quase dois milenários, os missionários Cristãos estiveram cortando bosques Sagrados, que são idólatras porque assumem espírito na natureza.*

[ * — Ibid, p. 349.]

Eu disse anteriormente que a religião é a sacralização da ideologia. A ordem técnica é a racionalização da natureza. Foi um processo insinuado há muito tempo atrás no compromisso Europeu. Este compromisso exigiu sanção moral, e aquilo que era formalmente reconhecido como religião no Ocidente, por sua vez, tinha que ser compatível com esse compromisso, ou teria tomado outra forma. Em outras palavras, a formulação religiosa não pode mudar sem mudança de compromisso e vice-versa. Como o White diz, “a crescente perturbação do ambiente global é o produto de uma tecnologia e ciência dinâmicas . . . seu crescimento não pode ser entendido historicamente além das atitudes distintivas em relação à natureza que estão profundamente fundamentadas no dogma Cristão.” * A ciência e a tecnologia Européias são, então, ideologicamente dependentes dessa arrogância Cristã em relação à natureza.

[ * — Ibid, p. 350.]

Nossos hábitos de ação diários são dominados por uma fé implícita no progresso perpétuo. . . enraizado na e indefensível além da teleologia Judaico-Cristã. . . . Podemos continuar vivendo hoje, como temos vivido por cerca de 1700 anos, muito em grande parte em um contexto de axiomas Cristãos. *

[ * — Ibid, p. 346.]

A ideologia Cristã tem desempenhado um papel cultural de apoio na singularidade do desenvolvimento tecno-social da Europa Ocidental em certos períodos formulativos neste processo cultural/histórico.

 

 

O Registro Versus a “Apologia”

O registro cultural/histórico da experiência Européia esclarece a relação interdependente entre a institucionalização do Cristianismo Europeu e o esforço imperialista Europeu, bem como a compatibilidade da ideologia Cristã com o nacionalismo cultural Europeu.

Os esforços de Reinhold Niebuhr para salvar o Cristianismo e limpá-lo deste registro histórico são talvez os mais impressionantes de qualquer apologista Cristão, mas, em nossa opinião, o fracasso dele é, no entanto, evidente. Sua discussão é útil para nós, uma vez que é em suas tentativas de libertar a essência do Cristianismo da história e do caráter da ordem imperial Européia que ele aborda algumas das questões mais importantes levantadas em nossa discussão.

Uma dessas questões é a da chamada universalidade da Igreja. Para Niebuhr, os males históricos do Ocidental provêm de “egoísmo coletivo,” “particularismo cultural” ou “nacionalismo;” Enquanto que o “universalismo” da Igreja é uma tendência para o bem que nos pode salvar desses “males.” No entanto, ele é forçado a admitir que “a Igreja, assim como o Estado, pode se tornar o veículo do egoismo coletivo.” *

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 217.]

Imperialistas e escravistas que eram, os Papas Paulo III, Paulo IV, Pio V, Gregório, e outros, na visão de Niebuhr, foram apenas exceções embaraçosas ao padrão. Certamente, de uma perspectiva Africano-centrada, não podemos vê-los como tal, como Cohen e outros apontaram, houveram muitos deles, e se os Cristãos “reais” não tiveram parte na criação do império Europeu e não são responsáveis pelas iniquidades perpetuadas por este, então somos obrigados a perguntar, onde eles estão, e onde eles estiveram? Se, de fato, eles existem, certamente não fizeram parte da “experiência” Européia. E se os únicos Cristãos “reais” estão fora da Europa, então, são eles Cristãos? Em outras palavras, questiona-se sobre se os valores e ideias não-Europeus reivindicados por Cristãos como Niebuhr, que exonerariam o Cristianismo de seus aspectos militaristas e culturalmente agressivos, podem ser identificados com a tradição Européia!

“Cristianismo” é uma configuração de valores, atitudes e comportamentos inseparáveis da história da Europa.*

[ * — O show da Broadway, Pippin, foi muito mais preciso a este respeito do que Niebuhr.]

Infelizmente para os povos não-Europeus, os Cristãos Europeus “reais” existem e existiram em números suficientemente grandes para ter imposto com sucesso sua própria marca de nacionalismo cultural Europeu, onde quer que eles tenham ido, inevitavelmente apoiados com o poder armado do Ocidente.

Niebuhr emprega o que talvez seja a ferramenta e manifestação mais ideologicamente afetiva do imperialismo cultural Europeu em seu uso do conceito de “universalismo.” A questão sutil, mas crítica, levantada por suas afirmações é uma questão filosófica-ideológica. Reside parcialmente na dicotomia do valor implícito que ele faz entre nacionalismo e universalismo. O nacionalismo em sua opinião é “ruim” e representa um particularismo negativo em que o eu (ego) é a fonte de motivação, sentimento e comportamento; Enquanto que o universalismo é o seu oposto positivo e representa a capacidade de se identificar com o bem universal de todas as pessoas, ou seja, toma uma abstração chamada “humanidade” como fonte inspiradora.

Em primeiro lugar, eu contesto essa formulação, alegando que ela não é uma afirmação “universal,” embora seu valor para a Europa resida no fato de ter todas as características de tal. É irrelevante questionar se qualquer “universalismo” desse tipo é desejável ou não, mesmo que fosse possível. A identificação nacionalista, ou seja, identificação de grupo (ego), é positiva porque é humanamente viável e se origina na circunstância concreta da definição cultural. A esperança para a humanidade reside nas possibilidades de moldar ideologias nacionalistas que não se baseiem, explicitamente, na destruição de outros grupos culturais. O nacionalismo Europeu e, acima de tudo, o Cristianismo são, portanto, “negativos” desse ponto de vista. Em segundo lugar, mesmo que a capacidade de se identificar com outros seja aceita como objetivo normativo, não é o pensamento Cristão nem a ideologia Européia que torna possível essa identificação. O conceito Europeu de si próprio [self] é um conceito isolante, e o conceito Cristão de iluminação espiritual é individualista, ao contrário de ser orientado para grupos ou comunidades. O Cristianismo é uma declaração Européia “nacionalista” (ou seja, imperialismo cultural) em oposição aos nacionalistas “não-Europeus” que ela deseja conquistar.

Em outras palavras, a partir da perspectiva Africano-centrada, não é o nacionalismo (particularismo cultural) que é negativo, mas o conteúdo que é dado a uma ideologia nacionalista particular que o torna uma ameaça para a sobrevivência de outros. A este respeito, é claramente o nacionalismo Europeu, do qual o Cristianismo é um exemplo, que tem sido o mais destrutivo da coexistência pacífica de grupos culturais divergentes. A projeção do então-chamado “universalismo” como um objetivo assumido do comportamento humano não é desejável ou culturalmente significativa, mas permite aos Europeus, assim, projetar o particularismo Europeu como algo diferente do que é. A reivindicação de “universalidade,” quer seja feita por um apologista Cristão, um teórico social ou um líder militar, é apenas um dispositivo acondicionador. A “luta da religião Cristã contra o orgulho e a auto-vontade das nações” * que Niebuhr quer ver não existe, mas ao dar voz a essa suposta “luta,” transmite-se a impressão da superioridade moral do Cristianismo com base na comparação invidiosa implicada entre um “universalismo” inexistente, abstrato, “a encarnação do bem,” e o nacionalismo cultural, “a expressão do mal.”

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 217.]

A verdadeira questão torna-se: por que os Europeus fizeram tanto dessa reivindicação de universalismo? (Veja o capítulo 10 deste trabalho.)

Niebuhr critica o universalismo dos filósofos “clássicos” da Grécia antiga como sendo apenas “a extensão de seus pontos de vista particulares,” como o [universalismo] de “um comunista moderno” que “é um universalista em sua esperança de que o comunismo se torne a base de uma civilização mundial.” *

[ * — Niebuhr, Vol. I, p. 215, nota de rodapé 5.]

Mas o “universalismo” Cristão tem precisamente as mesmas implicações concretas em sua atuação existencial e é da mesma vindima. A diferença que é tão importante para Niebuhr está apenas na sua expressão semântica/filosófica, e meramente facilita a extensão de um ponto de vista particular — ou seja, o do Cristianismo.

Ele é facilitado porque pode expandir-se mais por uma arena de culturas mais ampla e diversificada. Os Europeus simplesmente descobriram o valor político de não identificar verbalmente “deus e nação;” Isso não é dizer que essa identificação deixou de existir. A maioria das outras culturas não tiveram ambições políticas que exigissem tal retórica, e quando tiveram, certamente não foram tão bem sucedidas ou tão “bem-equipadas” para levá-las adiante. Eles, portanto, falam de “um deus” em relação necessária a “sua nação” ou cultura. Niebuhr faz muito dessa diferença terminológica no Cap. 8, Vol. I, de The Nature and Destiny of Man [A Natureza e Destino do Homem]. Mas excluir o artigo “a” da sua posição habitual antes de “deus” e escrevê-lo sempre com um “D” maiúsculo simplesmente dá a uma declaração quasireligiosa, como a do Cristianismo Europeu, maior potencial imperialista. Em um caso, uma declaração religiosa é abertamente identificada com a entidade cultural que é sua fonte e, no outro, ela é formulada para ser posta ao serviço de uma entidade cultural em suas atividades imperialistas mundiais.

Niebuhr não pode revogar os usos imperialistas do Cristianismo, mas sua perspectiva o obriga a explicar o imperialismo Europeu como incompatível com os ensinamentos Cristãos: a “religião profética,” diz ele, “teve seu próprio início em um conflito com a autodeificação nacional”.*

[ * — Ibid, p. 214.]

No entanto, parece que a definição Cristã Européia (“universalista,” absolutista e monista) é reforçada pelas ambições internacionais da nação Européia, o supremismo cultural da ideologia Européia, e as expansões do utamaroho Europeu. Longe de “lutar” contra o “orgulho coletivo,” tenho argumentado que o Cristianismo foi idealmente moldado para expressar o “orgulho coletivo” (nacionalismo) Europeu. Esta explicação, entre outras características etnologicamente satisfatórias, tem a vantagem de ser consistente com a história da Igreja Cristã, enquanto Niebuhr e outros apologistas Cristãos estão irremediavelmente envolvidos na tarefa impossível de explicar milhões de Cristãos “irreais” e séculos de comportamento caracteristicamente “não-Cristão” do mundo Cristão.

 

 

Conclusão: Religião e Poder
A força da religião institucionalizada na experiência Européia também é sua fraqueza. A moralidade em uma sociedade secular pretende ser intelectual. Na cultura Européia, seus modelos são racionais. É desespiritualizada. No início da tradição Européia em desenvolvimento, descobriu-se a vantagem de uma declaração religiosa que sancionasse retoricamente seus objetivos políticos. Mas o resultado, bem como a causa, foi um déficit espiritual na cultura. A ênfase Cristã em uma vida celestial após a vida não alivia a ansiedade Européia em relação à morte, principalmente porque é uma abstração remota em vez de uma crença vivida e não se dirige ao isolamento espiritual dos indivíduos — que é a base real de sua ansiedade. Essa ansiedade é o preço pago pela estrutura cognitiva da cultura Européia (o utamawazo), e a imagem de Cristo neste contexto é meramente ou triunfantemente, dependendo do ponto de vista, simbólica da ilusão de “progresso,” uma constante luta por aquilo que não pode ser alcançado. Talvez essa imagem de um salvador ressuscitado, nascida na metáfora Africana, mas intensificada e reificada na mitologia Européia, inconscientemente represente, também, a “humanidade” que de fato foi sacrificada para o sucesso Europeu.

Mas nenhuma outra civilização tem sido tão bem sucedidamente imperialista. Nenhuma outra usou sua religião institucionalizada de forma pragmática no suporte de seus objetivos imperialistas. O déficit espiritual não parece contar muito, se alguém está compelido com o domínio mundial. A asili exige poder e é, ela mesma, poderosa. A modalidade e o dogma da religião Européia foram mandatados pela asili, a qual eles, por sua vez, reforçam.

Na religião Africana e em muitas outras formulações religiosas primárias, são as necessidades espiritual-emocionais das pessoas dentro da cultura que são atendidas. Ao mesmo tempo, os valores da cultura são sancionados, e os mecanismos para sua continuação são sacralizados. As concepções espirituais/filosóficas, como a comunhão com os ancestrais , que ajudam a explicar o universo como um todo espiritual no qual toda vida e ser são periodicamente regenerados, dão ao Africano uma segurança emocional e confiança que o Europeu não possui. Mas tais concepções não prepararam o Africano, nem seus homólogos Nativo-Americanos ou Oceânicos para lidar politicamente com a agressão do Europeu. Essas concepções não foram utilizadas com sucesso na defesa da cultura. As religiões não-Européias não foram criadas para aceitação mundial nem para propaganda internacional. Não existe nenhum componente superficial, meramente retórico, dessas religiões. Etnologicamente, ambas as religiões Européias e “não-Européias” atendem às necessidades ideológicas das culturas em questão, tal como definidas pelos seus membros. A diferença radical entre eles surge das diferenças nesses dois conjuntos de ideologia: um é baseado na busca do domínio mundial; O outro procura usar as forças do universo para garantir uma existência harmoniosa. Os dois tipos de ideologia envolvem duas concepções diferentes de poder. Os Europeus são culturalmente nutridos com um forte senso político que é simultaneamente defensivo e agressivo. O utamaroho vem com uma consciência de “outros.” É, portanto, intensamente político.

O que começa a surgir nestes primeiros dois capítulos é um padrão no qual, em pontos críticos no desenvolvimento da cultura Européia, quando sua ascendência parece ter sido ameaçada por ambivalência, confusão, ou um mau funcionamento da “máquina,” ajustes magistrais foram feitos, que trouxeram uma nova clareza de propósito, uma reconsolidação de energias, recuperando foco para que a máquina mais uma vez fosse eficiente. Esses ajustes foram por vezes na forma do que eu chamo de “mudanças modais,” às vezes criações de gênio político, fanaticamente dedicadas ao objetivo do controle total.

Até certo ponto, traçamos a relação íntima entre religião e utamaroho no desenvolvimento Europeu desde suas origens pagãs Indo-Européias, através da declaração nacionalista inicial no Judaísmo, da cooptação Romana por Constantine, e da batalha contra a interpretação apolítica dos Gnóstico, Donatistas e outros. Em outro ponto crítico, Agostinho vende a idéia da fusão da Igreja e do Estado, e a Europa está a caminho da criação de uma consciência nacional com uma declaração religiosa que apoia suas ambições imperialistas. Em cada conjuntura, uma doutrina monolítica era necessária e foi criada. A ameaça de dissensão e desunião foi tratada. As ameaças continuariam, mas os mecanismos estavam em vigor para destruí-las ou mantê-las sob controle: as três “grandes” inquisições (iniciadas pelo Papa Gregório IX, 1231, Papa Sixto IV, 1478, Papa Paulo III, 1542) meramente representaram alguns dos mais infames e descarados métodos sádicos de tal controle.

O objetivo deste estudo é identificar e entender a asili do desenvolvimento Europeu. Uma história da Europa revelaria outras conjunturas, reveses, e personalidades que foram instrumentais na criação do império. A queda de Roma é um revés porque o foco é desviado quando os “Europeus” se desunificam, percebendo-se como”tribos” Germânicas e Asiáticas. Clovis, o Franco (481) torna-se um Cristão e unifica os Francos. Carlos Martel reúne o Reino Merovíngio, estabelecendo a linhagem Carolíngia. Nos anos 600, o Carlos Magno aumenta o tamanho do Reino Franco, espalha novamente o Cristianismo e, juntamente com o Papa no ano 800, se declara o Imperador do Novo Sacro Império Romano.

O processo continuou através da Conquista Normanda (1066) e além. Durante este período inicial, ao longo da Idade Média, o Cristianismo foi usado para forjar e solidificar uma consciência Européia. Mais tarde, no Renascimento e no período moderno, as ciências físicas e sociais seriam usadas da mesma maneira, a Igreja já não ocupando uma posição central nesse processo. O estabelecimento de uma ideologia científica e as várias disciplinas da Academia Européia através das quais promovê-la, assumem a primazia lá [takes over there]. A religião institucionalizada, tão essencial para a construção da ordem imperial e a criação de uma consciência Européia nos estágios iniciais do desenvolvimento Europeu, ficará quase obsoleta, deixando o lugar para a Ciência: a nova religião.

Vimos que a religião, associada à cultura Européia, é moldada por utamawazo e asili, que moldam a própria cultura. Isso, é claro, é o que esperamos. O conceito de asili nos diz que é possível identificar a semente/germe da cultura, que é ao mesmo tempo seu princípio explicativo e gerador. Uma vez que entendemos esse núcleo germinador, todos os aspectos da cultura se encaixam. A religião institucionalizada na experiência Européia coloca dicotomias de confronto para fins de proselitismo e dominância. É absolutista, oferecendo uma abstração como o objeto próprio da devoção religiosa. Ela luta para apresentar uma prova racionalista da existência de sua divindade. O modo letrado torna-se religiosamente autoritativo. A concepção linear, que valoriza o tempo secular e histórico, torna-se um mecanismo de validação para superioridade religiosa. No processo do desdobramento desta tradição religiosa, ela dessacraliza a natureza, nega a visão de um cosmos aos seus adeptos, alienando a natureza e preparando o caminho para a ordem técnica.

O foco neste capítulo tem sido sobre a instituição da religião em relação ao imperialismo cultural e político Europeu inicial. A ética intracultural normativa não se encontra nesta declaração Cristã anterior. Não é até a sua reformulação no Protestantismo que a religião institucionalizada Europeia se torna, em certa medida, um reflexo verbal do modo de vida Europeu. No protestantismo ela torna-se uma diretiva funcional do comportamento interno; isto é, dentro da cultura. Esta questão será abordada no cap. 7.

Nos capítulos que se seguem, voltamos nossa atenção para os mecanismos de definição de valor e analisamos as imagens fornecidas pela mitoforma cultural que atua para apoiar o padrão de comportamento para os povos não-Europeus. Eu tento pintar o retrato de um utamaroho que já começou a emergir a partir da discussão anterior de religião e ideologia no desenvolvimento inicial Europeu e do tema do utamawazo Europeu.

 

 

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O significado de “estética”
Existem dois usos do termo “estética” que terão relevância nesta discussão correspondente aos seus usos na cultura Européia. Primeiro, queremos identificar a concepção Européia da beleza, no sentido das formas, imagens, e experiências que evocam respostas emocionais positivas daqueles que foram inculturados na tradição. Este sentido da estética Europeia está intimamente relacionado ao valor; isto é, seus temas são “expressões” de valor Europeu. Esta é a estética que atinge todas as camadas da cultura. Os valores e as imagens envolvidas não se limitam à pessoa comum, embora sejam expressas mais conscientemente na mídia que se dirige ao “não intelectual” — e às formas populares de arte. Mas isso não deve confundir a questão, porque (talvez inconscientemente ou pelo menos não verbalmente) essa estética também afeta o “intelectual.”

Devido à natureza peculiar da cultura Européia, devemos incluir outro significado do termo “estética.” Na moda Européia característica, não há apenas a experiência do belo, mas também a “objetivação” dessa experiência. De acordo com a asili da cultura, segue-se que deve haver uma “ciência” baseada nesta objetivação. De modo que nossa discussão deve alcançar a estética ou o pensamento filosófico Europeu Ocidental sobre a natureza do belo e sua apreensão, na medida em que é relevante para o nosso objetivo geral.

Estes dois sentidos da “estética Européia” nos interessam em vários pontos. Em consonância com a dinâmica da cultura Europeia, esta estética “científica” ou “filosófica” procura influenciar e controlar a experiência emocional daquilo que os Europeus consideram belo; Enquanto, por outro lado, a estética filosófica toma sua configuração, sua forma e seu estilo dos hábitos de organização mental que são “emocionalmente” atraentes para a mente Européia: o utamawazo.

O próprio modo de “racionalismo” constitui uma parte importante da estética Européia. Não é possível entender este utamawazo, nem a construção da cultura, a menos que seja percebido que seus padrões de pensamento, comportamento, e instituições sociais são tocados por essa predileção por formas racionalistas. Max Weber discute a “racionalidade” nas formas de arte Ocidentais:

O uso racional da abóbada Gótica como meio de distribuição de pressão e de espaços de cobertura de todas as formas, e sobretudo como o princípio construtivo de grandes edifícios monumentais e a base de um estilo que se estende para escultura e pintura, tal como o criado por nossa Idade Média, não ocorre em outro lugar. A base técnica da nossa arquitetura veio do Oriente. Mas o Oriente não tinha essa solução do problema da cúpula e esse tipo de racionalização clássica de toda a arte — na pintura pela utilização racional de linhas e perspectiva espacial — que o Renascimento criou para nós.” *

[ * — Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trans. Talcott Parsons, Charles Scribner’s Son, New York, 1958, p. 15.]

Uma discussão sobre a experiência do belo no contexto da cultura Européia ilumina bem esse ponto. Em um nível consciente, a tentativa é feita para separar esta experiência e elevá-la “acima” de seu aspecto efetivamente emocional. Isso apresenta problemas especiais, já que mesmo o filósofo Europeu é forçado a reconhecer que a pessoa deve reagir inicialmente ao que ela considera ser belo com seus sentidos e com seus sentimentos; Ou seja, que alguém apreende a beleza inicialmente como sensação. Portanto, os filósofos da tradição Européia encontraram-se na posição de intelectualizar; Isto é, tornar “consciente,” em um sentido técnico, mesmo o aspecto emocional da percepção, apreensão — a experiência de “beleza.”

Novamente, como com a tentativa de fundir racionalismo e religião, os resultados são muito estranhos. Uma conseqüência foi a “estética” ou a “ciência” do esteticamente válido: uma discussão racionalista das regras pelas quais a experiência do belo ocorre, do que constitui propriamente a “beleza” em um sentido “lógico.” É claro, essa discussão pretende ter significado universal. Os filósofos Europeus nunca afirmam descrever suas próprias experiências estéticas (e, na verdade, duvida-se eles que possam), mas afirmam prescrever as regras adequadas para determinar “o belo” e descrever a natureza da experiência estética “verdadeira.” Eles estão definindo os “padrões” para julgamento e críticas. Mas nenhuma dessas discussões é satisfatória para ninguém além de filósofos Europeus. Questiona-se seus motivos e a razão pela qual o assunto ocupa a atenção e a energia que ocupa. A resposta é que esta atividade especulativa/filosófica funciona a seu modo para reforçar e validar a asili cultural e para fortalecer a consciência nacional; A auto-imagem coletiva como superior aos outros, um padrão universal para a humanidade.

Uma leitura da “analítica do belo” de Kant, na Crítica do Julgamento, dá a impressão de que as coisas que ele está tentando tão desesperadamente definir, verbalizar, “encerrar dentro da palavra,” como diz Steiner (citado no Cap. 1), não se ajustem às formas de pensamento que ele emprega e, além disso, que a própria experiência estética não está de modo algum vinculada a essa discussão e certamente não é auxiliada por ela.

O belo é aquilo que agrada universalmente sem (exigir) um conceito. Se quisermos explicar o que é um propósito de acordo com suas determinações transcendentais. . . [Dizemos que] o propósito é o objeto de um conceito, na medida em que o conceito é considerado como a causa do objeto (o verdadeiro fundamento de sua possibilidade); E a causalidade de um conceito em relação ao seu objeto é a sua finalidade (form finalis). . . O tom de mente que é auto-mantenedor e de validade especulativa universal está subordinado ao modo de pensar que só pode ser mantido por uma resolução dolorosa, mas é de validade objetiva universal.*

[ * — Immanuel Kant, Critique of Judgement, Vintage, New York, 1951, pp. 54-55.]

Estas são apenas algumas declarações de um tratado longo e incrivelmente abstruso, mas são exemplares do trabalho. Pergunta-se se o trabalho em si é necessário para que Kant chegue a conclusões que parecem intuitivamente óbvias.

Não pode haver uma regra objetiva de gosto que determine, por meio de conceitos, o que é belo. Pois cada julgamento desta fonte é estético; ou seja, o sentimento do sujeito, e não um conceito do objeto, é seu campo determinante. Procurar um princípio de gosto que deva fornecer, por meio de conceitos definitivos, um critério universal do belo, é um problema infrutífero, porque o que é procurado é impossível e contraditório.*

[ * — Ibid, pp. 67-68.]

Então por que esse esforço? Por que aquele que a Europa considera ser uma das suas maiores mentes preocupa-se com uma “analítica da belo?” Parece não haver um propósito final senão que este próprio exercício dá a um segmento da sociedade um tipo estranho de prazer. O analítico e o “racional” são tão valorizados que se tornam parte da experiência emocional do prazer entre um seleto grupo de pessoas. Não há dúvida de que o não-graduado que é obrigado a ler a Crítica do Julgamento não tem nenhum prazer da experiência e na verdade pode considerá-la como um castigo; Mas o poder das sanções na cultura não deve ser subestimado, pois se o estudante cursa a filosofia até o final de sua carreira universitária e na pós-graduação, ele, sem dúvida, começará a considerar a Crítica como uma “obra de arte” e se convencerá portanto, do prazer que ela deve transmitir, pelo menos para “compreendê-la” (se não para lê-la.)

 

A Tirania do Racionalismo

Esta tentativa, por parte dos Europeus, de refletir sobre a natureza da beleza se espalha em sua cultura experimentada, e uma conseqüência adicional é a intelectualização da experiência artística. Na cultura Européia, “arte” se torna o domínio da elite intelectual, porque são eles (na tradição do Simpósio de Platão e da Poética de Aristóteles) que determinam os critérios de sua perfeição; São eles que dizem o que seus atributos devem e não devem ser. O participante comum na cultura não tem acesso, nem é considerado capaz de apreciar arte “verdadeira.” O que ele aprecia não é considerado “arte;” Nem é “belo.” Novamente, retornamos às definições Platônicas e encontramos o precedente para uma estética racionalista. Pois “beleza,” bem como o “bom,” é identificado com o “verdadeiro.” Todos são apreendidos pelo mesmo método. A posição relegada para a experiência emocional é baixa. É a “razão” que triunfa.

Como resultado, os Europeus aprendem a abordar a experiência estética através da análise. Eles objetivam a experiência; eles a separam [tear it apart]; eles a verbalizam incessantemente, ensinam e são ensinados que, dessa forma, compreendem mais a experiência — para melhor apreciá-la. No entanto, para a maioria das pessoas é o sensualmente imediato e não o intelectualmente mediado que dá prazer, que evoca uma resposta emocional. A intensificação dessa tendência leva à substituição real da autêntica sensibilidade emocional por uma estética intelectual artificial; e as pessoas perdem a capacidade de responder emocionalmente e de criar aquilo a que os outros podem, de fato, responder. Esta é uma conseqüência do valor cultural e utamawazo que divide as faculdades humanas em “racional” e “emocional,” e então determina que o emocional seja controlado, “eliminado” [“weeded” out], ignorado se possível — sua existência sendo reconhecida apenas porque a Europa reconhece relutantemente que o “humano” é, afinal, parte “animal.”

Mas premissas filosóficas muito diferentes informam as formas de arte de outras culturas e as idéias sobre a estética que elas geram. O despertar do espírito humano em comunhão emocional com o sagrado, seja como for definido, é seu principal objetivo. Existem vários autores a serem mencionados cujas comparações ajudam a elucidar alguns dos aspectos característicos da experiência estética Européia.

Willie Abraham diz sobre a forma de arte Akan:

. . . Eles expressaram suas idéias filosóficas e religiosas através da arte, através do poder intemporal, imemorial, silencioso e elementar, tão característico da arte tradicional Africana. Na verdade, essa é a principal razão pela qual ela não era realista em um sentido representacional. As formas tinham que ser distorcidas. Na arte havia uma preocupação moral-filosófica que a levou a retratar as forças do mundo e, para retratar uma força, era essencial que esta não fosse tratada como algo assimilado, e, como tal, como algo superado, como a sua representação em figuras realistas [life-like] teria sido.*

[ * — Willie Abraham, The Mind of Africa, University of Chicago Press, Chicago, 1962, p. 111.]

Na visão Africana do humano, o emocional-espiritual e o racional-material estão inextricavelmente unidos e, qualquer coisa que seja, é a espiritualidade de um ser humano que a define como humana, proporcionando o contexto dentro do qual ela é capaz de criar arte bem como tecnologia. Tal visão leva a uma ênfase muito diferente na expressão artística. A identificação emocional com e a participação na forma de arte pela pessoa e pela comunidade são valores primários que ajudam a determinar sua configuração. Desta maneira, a própria forma se torna menos um “objeto.” Na cultura Européia, a tendência e a ênfase são bem o contrário. Embora os artistas ainda possam tentar evocar certas respostas emocionais isoladas de suas audiências, essas respostas teoricamente têm muito pouco significado “cultural” ou “moral,” e toda a experiência desde a criação do “objeto de arte” até sua apresentação é muito mais “individualizada.” O artista cria sua própria resposta particular ao seu ambiente, e seu trabalho é apreciado por “indivíduos” separados e distintos, os quais alcançam suas experiências distintas para qualquer identificação que possam encontrar.

Como diz Abraham, essa é a marca de uma “arte secular.” O que a cultura como um todo faz para os indivíduos envolvidos é sugerir que eles “objetivem” sua experiência, isolem o “objeto” e o abordem de forma analítica. Essa é realmente a única preparação que eles recebem de sua experiência cultural. E assim o círculo de pessoas que participam desse intercâmbio por prazer (que derivam prazer dele) é muito pequeno. O senso estético do resto é despertado por aquilo que não é “arte,” e eles não têm “gosto,” ou assim sua cultura diz. A distinção de Abraham entre arte “secular” e “arte moral” ou sagrada é muito significativa, e o Europeu sempre abordou a arte de outras culturas como se fosse “amoral” tal como a sua. Abraham diz:

Quando críticos como Gombrich dizem que os artistas Africanos eram incapazes de uma apresentação realista, eles perderam de vista a arte Africana. Se eles buscam a representação realista, eles devem recorrer à arte secular, a arte que foi produzida para fins decorativos ou para fins de registros, ao invés da arte moral, a arte cuja inspiração é a intuição de uma força mundial.*

[ * — Willie Abraham, The Mind of Africa, University of Chicago Press, Chicago, 1962, p. 111.]

Awoonor diz que a arte Africana expressa a relação entre os seres humanos e o Criador. Ele expressa nossa vontade e desejos ao Criador; É “uma afirmação de (nossa) própria temporalidade como um ser vivo, e mais importantemente, uma afirmação articulada dessa espiritualidade através de uma ordem cíclica dentro do (nosso) cosmo.” * A arte (esculturas) em santuários são instrumentos que afirmam o vínculo divino entre nós e nosso Criador.*2

[ * — Kofi Awoonor, The Breast of the Earth, Doubleday, Garden City, N.J., 975, p. 53]
[ *2 — Ibid, p. 55.]

No desenvolvimento anterior Europeu, a expressão artística também está intimamente ligada à compreensão religiosa. Esta inter-relação atinge seu auge no período medieval, embora os teóricos discutam sobre o grau de humanismo e religião secular na arte Renascentista. Em períodos anteriores, há mesmo um forte aspecto comunal para criações musicais. Mas com o advento do cientificismo, isto é, o triunfo do racionalismo científico, iniciado por Bacon e outros, começa o assalto aos restantes vestígios do sagrado e do comunal. O que é enfatizado nesta discussão são as tendências da experiência estética Européia que começou a emergir com Abelardo e se expandiu ao longo do Renascimento, atingindo o predomínio no Iluminismo. (As dúvidas de Da Vinci sobre a separação e a ascensão da ciência sobre o seu fundamento espiritual não tinham o apoio cultural para resistir ao impulso ideológico da asili Européia.) A arte Européia, já bastante racionalista, viria a tornar-se secular, individualizada e elitista.

Quanto mais intelectual, individualizada e individual a arte se tornou no Ocidente, mais técnica ela se tornou. O artista considerou seu trabalho como um objeto a ser tecnicamente perfeito. Ou seja, suas idéias de perfeição foram muito mais influenciadas pelo conceito de perfeição técnica e mecânica do que em outras culturas, e esta é principalmente a maneira pela qual o artista Europeu é atualmente moldado por sua cultura; Estes são os modelos com os quais ele é apresentado e ele os percebe “de forma racional.”

Sorokin diz que, à medida que a arte Européia busca diversidade e variedade cada vez maior, ela perde “toda harmonia, unidade e equilíbrio,” que se tornam “submersos em um oceano de incoerência e caos.” Essas tendências, ele continua, levam a uma ênfase nos meios técnicos de produção e não na própria arte. Essas ferramentas tornam-se cada vez mais complicados fins em si mesmos.*

[ * — P.A. Sorokin, The Crisis of Our Age, E.P. Dutton, New York, 1941, p. 56.]

Na sua opinião, a arte Europeia torna-se cada vez mais “uma mercadoria fabricada para o mercado” que tende para o vulgar. Devemos salientar que a contradição interessante na cultura Européia é que sua arte pode ser comercialmente inspirada (“o artista deve viver, afinal de contas”), orientada para o consumo, inspirada pelo desejo de reconhecimento, e, ao mesmo tempo, continua sendo uma forma elitista; isto é, essencialmente separada do povo, porque a arte, como a cultura, cria (controla) o povo, e não o contrário. Segundo Sorokin, na tendência do artista de desconsiderar os valores religiosos e morais, a própria arte

vem a ser cada vez mais divorciada de valores verdadeiramente culturais e se transforma em uma arte vazia conhecida eufemisticamente como “arte pela arte” [art for art’s sake], ao mesmo tempo amoral, não religiosa e não social, e muitas vezes anti-moral, anti-religiosa e anti-social.*

[ * — Ibid, p. 58.]

Essa “amoralidade” está diretamente ligada ao caráter “não social” da arte Européia. É sintomática do caráter da cultura e pode ser rastreada a partir do equívoco Platônico, como evidenciado no trabalho de Havelock em louvor da epistemologia Platônica. Na visão de Havelock, foi uma “descoberta” e um “avanço” quando os Gregos foram “capazes” de conceber a psique individual como o assento de julgamentos morais racionalmente determinados. Mas não pode haver tal coisa como uma moralidade  que tenha sido primeiramente apresentada por ou iniciada no “indivíduo.” A “razão,” se é para ser distinguida de emoção e sentimento, é extremamente insuficiente para ditar o comportamento moral “humano.” A fonte da moralidade humana deve necessariamente ser na interação dos seres humanos. Deve ser comunal, o que, mais do que “social”, implica uma união de pessoas. Este fato básico da existência humana é primordial em outras culturas e informa seus modos de organização. A falta de comunidade autêntica, ou seja, a subtituição do comunal pelo social, explica grande parte do desenvolvimento atrofiado do Ocidente. A arte não é comunal não pode ser moral, e uma “ética” concebida racionalmente, individualmente, é humanamente, mesmo pessoalmente, inadequada.

Daiseti Suzuki faz algumas observações sobre a comparação do simbolismo Europeu e Budista que ajudam a delinear a natureza da estética Européia. Ele apresenta um haikai do poeta Japonês do século XVIII, Bashô, e discute seu significado poético e filosófico. A forma do haikai contrasta dramaticamente com as formas de arte verbal Européias, por sua extrema simplicidade e franqueza de intenção.

Ó! Velha Lagoa!
Um sapo salta, 
o som da água!

[Oh! Old Pond!
A frog leaps in,
The water’s sound!]

Deste haikai Suzuki diz o seguinte,

Bashô não era nenhum outro senão o sapo quando ouviu o som da água causado pelo seu salto. O salto, o som, o sapo e a lagoa e Bashô eram todos em um e um em todos. Havia uma totalidade absoluta; Isto é, uma identidade absoluta, ou para usar a terminologia Budista um estado perfeito de vazio [emptiness] (isto é, Sunyata) ou de talidade [suchness] (isto é, Tathata).*

[ * — Daiseti Suzuki, “Buddhist Symbolism,” in Explorations in Communications, Edmund Carpenter and Marshall McLulian (eds.), Beacon Press, Boston, 1960, p. 38.]

Esse senso de identidade é mais difícil de ser compreendido para aqueles educados na cultura Européia, porque a cultura exige que a experiência seja continuamente mediada através de conceitos, através do “mundo,” e ela deve ser absorvida analiticamente. E assim, é difícil imaginar como a “Analítica” de Kant ou a Poética de Aristóteles poderiam se relacionar com o haikai, pois assim como o modo de haikai reflete os princípios da filosofia Budista, a compreensão e abordagem desses filósofos reflete a natureza do utamawazo Europeu. Segue-se, então, que a idéia Européia de “símbolo” não é adequada para explicar o simbolismo Budista. Suzuki continua,

. . . Chamamos “a velha lagoa” ou o som da água ou o sapo saltando um símbolo para a realidade final? Na filosofia Budista, não há nada por trás da antiga lagoa, porque ela é completa em si mesma e não aponta para nada além ou fora de si. A própria velha lagoa (ou a água ou o sapo) é realidade. . . .

O Simbolismo Budista poderia. . . declarar que tudo é simbólico, traz significado consigo, tem valores próprios, existe por seu próprio direito, apontando para nenhuma realidade além de si mesmo.*

[ * — Ibid, p. 39.]

Mas o pensamento linear, causal e proposital pressupõe uma relação entre “objetos,” e uma realidade que é “diferente de” e [está] “fora” deles. Uma vez que isso é característico da ontologia Européia, afeta a arte Européia. Wade Nobles caracteriza o “método simbólico” Africano como envolvendo uma “modalidade de transformação-sincronista-analógica,” enquanto que a compreensão cultural Européia contemporânea do “símbolo” é como um modo “representacional-seqüencial-analítico.” *

[ * — Wade Nobles, “Ancient Egyptian Thought and the Development of African (Black) Psychology,” in Kemet and the African World View, Maulana Karenga and Jacob  Carruthers (eds.), University of Sankore Press, Los Angeles, p. 40.]

Suzuki descreve o sentimento de exaltação que vem da identificação com a lagoa e simultaneamente com o próprio universo. Mas, na experiência Européia, a exaltação é conseguida através dos sentimentos de “controle sobre” um objeto passivo — e separação dele. Por este motivo, não há precedente na tradição Européia para identificação com outras pessoas; Isto é, a cultura não é compatível com essa identificação. Suzuki ressalta que, como o haikai, que fixa-se sobre a experiência imediata ao invés da experiência mediada,

O Budismo Zen evita a generalização e a abstração. . . . Para os Budistas, ser é significado. Ser e significado são um e não separados; A separação ou a bifurcação vem da intelecção, e a intelecção distorce a talidade [suchness] coisa das coisas.*

[ * — Suzuki, p. 40.]

O hábito de análise não deixa espaço para esse tipo de apreensão, e a predominância do modo analítico na experiência Européia quase eliminou a sensibilidade para a beleza imediatamente perceptível e sua definição. É a convicção Européia que uma experiência de arte deva ser difícil; essa profundidade só é compreendida através da luta intelectual.

Willie Abraham diz:

A quantidade de organização, preparação e educação que a mente Européia moderna exige para ressuscitar seu senso de conexão [rapport] com o belo e o sublime, o tecnicismo árido da sua sofisticação é sensibilidade artificial. É somente quando a sensibilidade é natural que ela é imediata, sem esforço, pitoresca, não nostálgica, e intuitiva. A sensibilidade sofisticada deve separar [tear apart] aquilo que ela contempla. É sensibilidade trinchante [carving-knife sensitivity], analítica inquisitiva.*

[ * — Abraham, p. 193.]

Este hábito analítico mental resulta em uma estética culturalmente problemática. A criação de uma estética científica, reflexiva — superficial e não-autêntica do ponto de vista do ser humano/emocional —  estabelece uma quase-separação entre uma forma de arte elitista e uma “popular.” Mas também é feita uma divisão — da qual os próprios membros da cultura não estão conscientes — entre uma estética conscientemente imitada ou normativa, operando mais bem sucedidamente entre a minoria intelectualista, e a estética muitas vezes inconsciente comum aos Europeus em geral. Esta última é, na minha opinião, a “estética Européia” mais propriamente dita, no sentido de que ela incorpora os padrões Europeus de beleza e os sentimentos, estilos, modos nos quais os membros da cultura participam com prazer.

A dicotomia entre estes dois sentidos é culturalmente improdutiva e estressante, e nos leva a outro efeito desta distinção sintomática; Os fatores que contribuem para promover a falta de criatividade e esterilidade na arte Européia. Estes são fatores culturais que o artista Europeu criativo deve superar. A arte divorciada da espiritualidade é culturalmente debilitante. A arte secular não é natural, mas artificial, e o artista Europeu está sob imensa pressão para realizar uma tarefa quase impossível: ele deve criar um objeto de beleza para uma audiência passiva cujo sentido estético deve ser despertado, ainda uma audiência com quem ele não compartilhou nada senão a experiência inespecífica da cultura Européia — uma cultura que se destacou em sua capacidade de separá-lo das pessoas a quem ele deve apresentar seu trabalho. Ele não compartilha nada que sirva como uma base experiencial através da qual ele e seu público possam comunicar emoção. Armstrong diz: “A consciência individual deve se definir da única maneira que pode, o que quer dizer em oposição a todas as outras.” *

[ * — Robert Armstrong, Wellspring: On the Myth and Source of Culture, university of California Press, Berkeley, 1975, p. 120.]

Este é o resultado de uma epistemologia (utamawazo) que isola o eu conhecedor [knowing self] como uma definição de consciência humana “superior” evoluída. O que o artista e os outros membros da cultura compartilham, no entanto, é o compromisso com a afirmação da superioridade de sua cultura em relação a outras culturas. Em um nível inconsciente, o artista Europeu valida esses sentimentos, satisfaz essas necessidades.

Em um nível consciente, o público Europeu deve especular constantemente sobre a fonte de inspiração dos artistas e adivinhar sua intenção;  Sua “mensagem.” “O que ele está tentando dizer?” É a questão ouvida em uma galeria de arte de Nova York. O artista é concebido como uma pessoa que, por sua própria única e individual experiência e agonia, alegria e sofrimento, procura expressar-se a estranhos morais e culturais. Não é de admirar que no Ocidente, a arte parece não ter lugar na vida; Ela parece ser continuada como uma atividade coadjuvante como se não afetasse a grande maioria dos Europeus. No entanto, ela afeta: Subliminalmente, ela afeta a consciência nacional dos Europeus. Há um senso em que a “arte” poderia deixar de existir, e o Europeu médio só se tornaria consciente de sua morte se esta fosse relatada nos jornais. Há outro senso em que a arte Européia serve como o andaime da psique nacionalista. Aziza Gibson Hunter chama isso de “a roupa invisível do Ocidente.” * Esta arte de elite e arte popular têm propósitos diferentes, mas relacionados.

[ * — Aziza Gibson-Hunter, personal conversation, 1987.]

Mas a arte tem um significado radicalmente diferente em culturas não-Européias, onde ela é, na maioria das vezes, intimamente vinculada com o padrão sacralizado e com a existência dos modos de vida totais do grupo. Por causa desta diferença crítica, o confronto entre a arte Européia e a não-Europeia é um fenômeno de choque cultural. O Europeu é ou cegado por seu chauvinismo cultural à natureza paroquial de seu próprio senso estético, e por isso não pode apreciar a profundidade das formas não-Européias; ou, o artista Europeu, sua criatividade estrangulada por uma cultura moribunda, é forçado a inspirar-se fora dessa cultura a partir dessas mesmas formas não-Européias. Robbert Goldwater diz:

Como artistas que sentiam suas próprias tradições nativas enfraquecidas e cada vez mais sem sentido, que estavam convencidos de que a renovação necessária não poderia surgir pela continuação, mas somente começando novamente — por um renascimento; Como artistas que queriam expulsar a devoção Ocidental às aparências e se dedicarem às realidades; Como artistas que queriam despir a superfície para revelar o essencial, eles se voltaram para o primitivo. O primitivo poderia dar-lhes um exemplo, poderia mostrar-lhes como começar de novo. Porque era ele próprio uma arte de poder e convicção que os ajudaria a criar sua própria arte significativa.*

[ * — Robert Goldwater, “The Western Experiene of Negro Art,” in Colloquium on the Function and Significance of African Negro Art in the Life of African Culture, Vol 1, Society of African Culture and UNESCO, 1966, p. 342.]

Goldwater, é claro, tem o cuidado de dizer que ele não está usando o termo “primitivo” em um sentido pejorativo, e que, nesse uso, ele conota algo que os artistas Europeus consideraram positivo. O termo é, na maioria das vezes, essencialmente validativo, no entanto, porque ele geralmente conota uma espécie de “incongruência” temporal, a partir de uma perspectiva Eurocêntrica. O que a Goldwater não diz é que os artistas Europeus, impressionados com as formas Africanas e outras não-Européias, as usaram como uma nova fonte de energia para a validação de seu próprio chauvinismo cultural. Como os Gregos, eles roubaram, e depois usaram o que roubaram para convencer os outros da sua superioridade.

 

Uma Estética de Controle
Possivelmente não há uma forma de expressão artística melhor do que a música para demonstrar a dinâmica peculiar da estética Européia. A mente Européia respondeu à música exatamente da mesma forma que respondeu a todo tipo de fenômeno com o qual foi apresentada. A música foi analisada, dissecada, “estudada” e traduzida para a linguagem da matemática. Ela foi escrita, e então poderia ser “lida” assim como alguém lê uma equação matemática. E fiéis ao padrão de desenvolvimento Europeu, os intelectuais que criaram essa nova música foram bem sucedidos ao introduzi-la na cultura como um todo porque a própria cultura estava predisposta a valorizar essa abordagem. Com a escrita vem o controle, e com o controle, para os Europeus, vem o poder. Esta é a natureza do utamaroho. Isso, obviamente, é muito mais esteticamente agradável para eles do que a criatividade e a espontaneidade que resultam da interação entre a emoção humana e o intermédio da música. No Ocidente, um artista de descendência Africana que herdou milagrosamente o gênio de sua cultura, através de sua “memória ancestral,” e que toca sem ter estudado as ferramentas Europeias, é um embarasso. É como a ciência Européia sendo confrontada com o conhecimento astronômico do povo Dogon. Existe, mas não deveria!

Os séculos de tradição da matematização e racionalização da música levaram o Europeu a esqueçer sua origem e como ela é produzida naturalmente — ao contrário de sinteticamente (a mera imitação e descrição da música). Os Europeus não criaram a primeira música nem os primeiros instrumentos musicais ; Eles os encontraram e os tornaram objetos de estudo. Porque havia apenas uma maneira pela qual eles podiam entender essa música com a qual foram confrontados, eles analisaram-na, procurando por “leis” de harmonia e relações melódicas, mas incapazes de ouvir / sentir / compreender a manifestação cósmica do som; (Mesmo na Idade Média, a música era o estudo de harmônicas e proporção e, como tal, estava relacionada à matemática; em um sentido acadêmico-técnico, não cósmico-metafísico); (A [obra] De Musica de Agostinho era o livro didático padrão.)
Os Europeus então criaram um facsímile e estilo em que se destacaram; ou seja, um estilo que expressava todo o poder e controle da estética e do valor Europeus. Eles criaram a sinfonia — uma obra-prima técnica e organizacional, o epítome da especialização em desempenho.

Sua inventividade, sua singularidade, seu utamaroho se expressaram principalmente dentro de sua dimensão “clássica”; As outras expressões de música na cultura Européia são principalmente formas emprestadas, adaptações e imitações. A realização da sinfonia não deveria ter levado os Europeus a esquecer as origens da expressão musical nem a multiplicidade de estilos diferentes, mais criativos e espontâneos, que demonstravam um gênio elementar maior do que a forma sinfônica, com sua ênfase na estrutura. Com isso em mente, a existência do músico Africano que toca “de ouvido” é uma “maravilha” apenas na medida em que talvez este seja um dos “fatos” supraracionais da existência humana.

Novamente, é o aspecto técnico do ofício que é enfatizado na tradição Européia, e à medida que a ordem técnica se intensifica, seus instrumentos musicais se tornam cada vez mais mecânicos, eletrônicos, sintéticos e não naturais. Aqueles que os tocam se tornam técnicos cada vez melhores, mas suas composições seriam tão mecânicas, sintéticas e pouco inspiradoras quanto os instrumentos em que foram tocadas se não fosse pela utilização da criatividade e consciência musical da experiência Africana. Na América, a inovação na música, na dança e na linguagem é influenciada pela cultura Africana através da contribuição dos Africanos que vivem lá. Esta influência, por sua vez, é exportada para a maior comunidade Européia. A cultura Européia pode preparar um indivíduo para o domínio técnico de instrumentos e máquinas musicais Europeus e é capaz de treinar uma pequena minoria para executar a música que ela criou — comumente referida como música “clássica”, “erudita” [“long-hair”] ou “boa”, comumente referida entre Africanos na América como música “morta.” Mas a cultura Européia deve confiar na criatividade inspirada pelo gênio musical e expressivo Africano para a música e a dança que a maioria dos seus membros desfrutam. Esta circunstância está diretamente relacionada à natureza e ideologia da cultura e às diferenças radicais entre os dois utamarohos.

Na comparação de Ortiz Walton sobre as estéticas Africana e Ocidental na música, ele aponta algumas das tendências da história cultural Ocidental que representam o modo predominante da música Européia. Ele diz que a música escrita não pode ser considerada improvisação. Vemos que na tentativa do Europeu para planejar e prever, ele perdeu a oportunidade de desenvolver a arte da improvisação e espontaneidade sobre a qual depende uma expressão musical vibrante e criativa. A música Européia, diz Walton, “tornou-se altamente racionalizada com os Gregos.” (Será lembrado que Platão associa música com uma matemática desespiritualizada, ambas devem ser um aspecto importante da educação dos Guardiões, porque ajudam a encorajar e desenvolver os “hábitos mentais adequados.”) Mais tarde, a Igreja ainda “racionalizou” a música na sua tentativa de controlar o seu conteúdo. Ele diz que um sistema de notação começou no Ocidente com a idéia Grega de ethoi, ” que foi adicionado nos séculos seguintes, lançando a música Ocidental em um fenômeno rígido, inalterável e fixo.” *

[ * — Ortiz Walton, “A Comparative Analysis of the African and Western Aesthetic,” em The Black Aesthetic, Addison Gayle, Jr. (ed.), Doubleday, Garden City, N.J., 1972, 1972, pp. 154-155.]

Walton acrescenta que os fabricantes de instrumentos Europeus refletiram a predileção Européia de racionalização em

. . . uma nova tecnologia de instrumentos temperados. . . . Trompas sem válvulas [valveless horns] que se assemelham a seus protótipos Africanos e instrumentos de sopro de madeira sem chaves [keyless woodwind instruments], foram substituídos por chaves e válvulas altamente racionalizadas e mecânicas. É difícil compreender esses desenvolvimentos no Ocidente exceto como uma paixão pelo racional. . . .

A ordem do mundo auditório já havia sido transformada em um fenômeno visual, mecânico e preditivo. Agora, tudo o que um instrumentista tinha que fazer era olhar para a música e colocar o dedo num certo lugar e então viria o som que havia sido concebido muito antes na cabeça de alguém.*

[ * — Ibid, p. 156.]

Max Weber fala sobre “racionalidade” no desenvolvimento da música Ocidental e Européia:

Música harmoniosa racional, ambos contraponto e harmonia, formação do material de tom com base em três tríades com a terçeira harmônica; Nossa cromática e enarmonia, não interpretadas em termos de espaço, mas, desde o Renascimento, de harmonia; Nossa orquestra, com seu quarteto de cordas como núcleo e a organização de conjuntos de instrumentos de sopro; Nosso acompanhamento de baixo [bass]; Nosso sistema de notação, que possibilitou a composição e produção de obras musicais modernas e, portanto, sua própria sobrevivência, como meio para todos esses, nossos instrumentos fundamentais, o órgão, o piano, o violino, etc. Todas essas coisas são conhecidas apenas no Ocidente, embora programas de música, poesia tonal, alteração de tons e cromática, tenham existido em várias tradições musicais como meio de expressão.*

[ * — Weber, pp. 14-15.]

Embora Weber use esse princípio de racionalidade para reivindicar a “superioridade” e a “universalidade” das formas Ocidentais, ele, segundo Walton, também indica sua própria ambivalência em relação ao efeito final do racionalismo obsessivo da cultura Ocidental:

Weber concluiu que apenas na música Ocidental o impulso para o racionalismo é uma preocupação predominante. E suas descobertas resultaram no que se tornou, para ele, uma questão central: Por que a eficiência dos meios em relação aos fins (a definição de Weber de racionalismo) resulta em um espírito de “desencanto com a vida” — um estado de ser onde a vida (ou a morte) não tem significado. *

[ * — Walton, “Rationalism and Western Music,” em Black World, Vol. XXII, No. 1, November 1973, p. 55.]

Enquanto no Ocidente a tendência era que essa música “escrita”, controlada, tornasse-se elitista e que um público passivo fosse “confrontado” com uma performance, na África as prioridades e valores culturais exigiam uma forma musical comunal em que não havia real separação entre “artista” [“performer”] e “audiência”: uma experiência participativa para todos os envolvidos. Walton diz,

Contrastada com a filosofia de música-para-a-elite predominante no Ocidente, a música Africana manteve suas características funcionais e coletivas. O elemento de improvisação foi desenvolvido em vez de ser abandonado, e encontrou seu caminho para a música Negra neste país. Da mesma forma, o elemento unificador da participação do público também foi mantido. *

[ * — Walton, “A Comparative Analysis of the African and Western Aesthetic,” pp. 159.]

Certamente, havia formas de música Européia destinadas à participação comunitária (às vezes, centenas de vozes cantando caminhando pelo campo Europeu), em estágios iniciais no desenvolvimento Europeu. Mas a asili era tal que esta forma logo seria eclipsada por aquelas que se adequavam a um utamaroho ansiando por poder e um utamawazo construindo mecanismos de controle. As formas de música/arte comunais e participativas seriam desencorajadas até que desaparecessem, já que não refletiam a matriz/impulso ideológico da cultura. Elas não eram “Européias” o suficiente.

A ênfase na participação comunal na música Africana deu origem à antífona ou a forma de “chamado-resposta,” “pergunta-resposta” que passou para as criações musicais dos Africanos nas Américas, como observa Walton. Enquanto o controle, a precisão técnica e as complexidades teóricas são valorizadas na música clássica Européia, o ritmo e a variação tonal são preocupações primárias na música Africana, e a sinfonia, portanto, tem um potencial estético limitado para o ouvido Africano.*

[ * — Este ponto é feito por Joseph Okpaku em New African Literature, Vol. I, ed. Okpaku, New York; Thomas Crowell, Apollo Edition, 1970, p. 18.]

O que poucos entenderam, no entanto, é que a predileção Africana pelo ritmo em suas diversas complexidades não é por acaso, mas está intimamente ligada à bioquímica melaninizada Africana e à natureza cósmica da visão de mundo Africana. *

[ * — Ver Leonard Barrett, Soul-Force, Doubleday, Garden City, N.J., 1974, p. 83, Naim Akbar, “Rhythmic Patterns in African Personality,” in African Philosophy: Paradigms for Research on Black Persons, Lewis King, Vernon Dixon, and Wade Nobles (eds.), Fanon Center Publications, Los Angeles, 1976; and Kariamu Welsh-Asante, “Rhythm as Text and Structure in African culture,” in The Griot, Fall 1990, on the significance of rhythm in African cosmology. Este ponto é bem feito por Joseph Okpaku em New African Literature, Vol. I, Thomas Crowell, New York, 1970, p. 18.]

É apenas através do contraste com outras formas de arte que a peculiaridade e a singularidade da estética Européia se tornam claras. Esta sugestão de contraste é convincente numa etnologia da cultura, na tentativa de neutralizar o nacionalismo Europeu bem sucedido que projeta a ideologia Européia na forma de universais, em oposição à escolha e particularismo Europeus. O desenvolvimento de uma “ciência” da estética no Ocidente apenas ajuda a confundir a questão e, em geral, foi o rótulo de nacionalidade cultural particularmente Europeu que permitiu aos críticos Europeus “avaliar” as formas de arte Africana e outras não-Européias . Joseph Okpaku nos oferece um excelente exemplo do Eurocentrismo inevitável que resulta dessa postura presuntiva. Ele cita de Jones-Quartey, que está comentando em um evento no qual uma audiência Africana achou divertida uma tragédia Ocidental. Jones-Quartey diz que os Africanos têm um “equívoco de significado” [“misconception of meaning”], e

que drama de qualquer gênero é puro entretenimento (para os Africanos) e nada mais. Mas, em segundo lugar, e em um nível mais profundo ainda, também é possível que os Africanos sejam relutantes a isolar, ou incapazes de isolar, o único elemento da morte ou desastre de seu conceito trivial de existência como constituído pelos mortos, os vivos, e os vindouros e tratando este elemento separadamente ou de forma diferente.*

[ * — Citado em Okpaku, p. 18.]

De fato, os “equívocos” [“misconceptions”] dos autonomeados críticos Europeus de concepções estéticas não-Européias são, infelizmente, geralmente não tão óbvios quanto o exemplo acima. A caracterização do escritor da concepção Africana da morte como “trivial” seria simplesmente divertida se tais julgamentos não fossem tão bem sucedidos com o aparato do imperialismo Europeu.

Em seu artigo, “Afro-American Ritual Drama” [“Drama Ritual Afro-Americano”], Carlton Molette faz algumas observações perceptivas sobre a estética Européia a título de comparação. Molette ressalta que a mimesis ou imitação e mimetismo são esteticamente agradáveis ​​aos Africanos, enquanto que o observador Europeu frequentemente se queixa do que ele chama de “monotonia.” A atitude de Platão em relação à “mimesis” é que ela é um aspecto daquela fraqueza humana natural que deve ser expulsa da mídia oficial do Estado. Para o Europeu, a “manutenção da realidade” é crucial, enquanto que no ritualismo Africano a forma “é de uma importância muito maior.” Tal como acontece com a experiência musical, o público Europeu é passivo, enquanto que o objetivo Africano é a participação total do grupo. Todos esses fatores, diz Molette, são operacionais no serviço religioso Afro-Americano, que ele identifica como “drama ritual.” “A tradição. . . .concentra-se em criar … uma ilusão de realidade de tempo, lugar e caráter diferentes do real.” *

[ * — Carlton Molette, “Afro-American Ritual Drama,” in Black World, Vol. XXII, No. 6, 1973, p. 9.]

O drama ritual Africano cria o “momento eterno” que transcende o tempo ordinário, unindo as categorias de tempo e lugar (hantu) em uma única experiência ilimitada de comunhão espiritual: a verdadeira realidade significativa.*

[ * — Dona Marimba Richards, “The Implications of African American Spirituality,” in African Culture, Molefi Asante and Kariamu Welsh Asante, (eds.), Greenwood Press, Westport, Conn. 1985, p. 213.]

E a falta de identificação subjetiva que caracteriza o utamawazo Europeu, que Havelock aplaude, pode ser vista como disfuncional à expressão e apreciação artísticas, uma vez que ela evita ou limita o envolvimento emocional do público. O seguinte comentário de Molette reforça nossas observações sobre a concepção racionalista do humano herdada de Platão e teologia Cristã:

A estética Afro-Americana não opera sobre a suposição tipicamente Euro-Americana de que todo o comportamento humano é ou racionalmente motivado, resultando em comportamento elevado, ou emocionalmente motivado, resultando em comportamento baixo [inferior]. A estética Afro-Americana dá um valor muito alto ao comportamento motivado emocionalmente; ou outro termo que pode ser usado para descrevê-lo, com mais precisão, seria um comportamento espiritualmente motivado.*

[ * — Carlton Molette, “Afro-American Ritual Drama,” in Black World, Vol. XXII, No. 6, 1973, p. 9.]

Molette é preciso em seu uso do termo “espiritual” aqui, porque é essa compreensão da espiritualidade que falta e/ou é ignorada na estética e na mitoforma Européias, especialmente nos últimos duzentos anos. Isto não se deve apenas à concepção racionalista da psique humana ou da “alma,” mas também à confusa concepção Européia de “arte pela arte” [“art for art’s sake”] — uma idéia baseada no pressuposto de que há valor em separar a função da arte da vida-sangue do grupo. Molette contesta isso com um esboço dos propósitos do drama ritual Afro-Americano. “Um desses propósitos é celebrar a afirmação de um senso de comunidade, um sentimento de união [togetherness]. . . com base no pressuposto de que nós, que estamos aqui reunidos para participar desse evento, somos e pertencemos juntos.” (Itálico de Molette.) isto, ele diz, é freqüentemente enfatizado através do contato físico, como de mãos dadas. As formas Euro-Americanas, por outro lado, enfatizam o indivíduo, sua singularidade e diversidade. O indivíduo, então, está constantemente ciente de si mesmo como “individualizado” (termo de Diamond) e quase não pode perceber o grupo (o qual, portanto, muitas vezes se torna “inexistente” para ele). Ele se percebe como um “observador,” distinto do que ele observa. Mas “um propósito do drama ritual Preto é criar um envolvimento espiritual total” no evento. “Outro propósito do drama ritual Preto é servir um propósito funcional e útil. . .um ritual fúnebre é suposto ter um determinado efeito futuro útil específico sobre a alma do irmão ou irmã do falecido.” *

[ * — Molette, pp. 10-12; também Stanley Diamond, In Search of the Primitive.]

Isso nos leva novamente à questão crítica do significado cultural da arte Européia. As formas de arte Européias têm um propósito declarado. Seu objetivo é representar uma verdade “universal,” “abstrata” e “eterna” (verdade Européia). Elas não são projetadas para criar um efeito cultural imediato; E definitivamente não são inspiradas por um conceito de unidade ou sentimento comunal do grupo. Pois, diz-se, o artista Europeu cria “arte pela arte.” Ele é capaz de romper as limitações socioculturais e as definições da experiência criativa e, portanto, produzir arte que não tem outro propósito senão o de expressar o próprio ego individual do artista. Isto, diz-se, é “progresso,” assim como Havelock considera a concepção Grega de “conhecimento” como uma “descoberta” que leva ao “avanço” intelectual.

Mas essa formulação é intelectualmente e emocionalmente pouco impressiva. Ela é sem sentido, incompreensível e confusa. Não é de admirar que a arte de elite produzida sob a orientação de tal filosofia não alcance a maior parte da cultura, muitas vezes não tenha nenhum significado cultural além do poder material e tenda a uma morte espiritual? As “belas artes” no Ocidente tendem a se tornar meramente exercícios intelectuais. A “arte pela arte” é peculiarmente Européia e deve ser rejeitada como um padrão crítico em outras culturas. No entanto, este equívoco muito peculiar tem sido uma das principais ferramentas usadas pelos Europeus em suas críticas à arte não-Européia. Às vezes, cercados pela terminologia de um “universalismo” contraditório e superficialmente restritivo, torna-se difícil perceber a severidade da distorção e do auto-engano Europeus. Em relação à “idéia de arte,” René Wassing, no livro African Art, diz: “Fundamentalmente, esta é uma idéia Européia desenvolvida no clima mental da filosofia Européia e aplicada à expressão da cultura Européia.” *

[ * — René Wassing, African Art, Harry N. Abrams, Inc., New York, 1968, p. 5.]

O universalismo, assim chamado pelo europeu, é na realidade muito particular, e essas declarações servem de evidência da natureza do utamaroho Europeu peculiar. Evidentemente, nunca ocorreu à Wassing que ele está falando sobre a “ideia de arte” Européia ou que essa idéia usada no contexto da arte Africana pode ser extremamente enganadora, para dizer no mínimo. Quais são indicações de que uma idéia de arte exista em uma cultura? Sua documentação verbal; sua sistematização; sua tradução para a terminologia filosófica Européia;  sua “objetificação” ou uma tentativa de isolá-la de outros aspectos da cultura, no hábito Europeu, como com aquilo que é considerado por eles como “religião”? Esta é uma manifestação do mesmo ethos, exibido por Placide Tempels, que deseja “ensinar” aos Africanos seu próprio conceito de ser. Seria muito mais útil se os culturalistas “objetivos,” “de mente-aberta,” como Wassing, colocassem mais esforços em uma explicação de suas próprias concepções. (Há alguns anos atrás, tive a oportunidade de participar de uma exposição de Arte Haitiana, na qual o orador convidado [um “especialista Europeu” em Arte Haitiana] nos informou que estava encantado de ver esta exibição, porque quando ele começou a ir ao Haiti, “Não havia tal coisa como Arte Haitiana”, que, ele tinha de fato, trazido a idéia para os Haitianos).

Dos Africanos e sua arte, Wassing diz:

Deve. . . ser lembrado que o artista não se propunha conscientemente a criar uma obra de arte. Eles consideravam uma peça um sucesso se ela cumprisse a tarefa definida, uma tarefa que era primeiramente funcional. Fosse qual fosse a função que uma peça pudesse ter —  econômica, mágica ou religiosa — o princípio estético nunca se tornou um fim em si próprio, à maneira da “arte pela arte.” Crítica e apreciação estéticas da cultura material da África é uma invenção ocidental fundada em uma descoberta feita pouco antes, cujo desenvolvimento é paralelo ao conceito de desenvolvimento da arte na historia ocidental.*

[ * — René Wassing, African Art, Harry N. Abrams, Inc., New York, 1968, p. 5.]

É em declarações sobre outras culturas que os Europeus mais se revelam e as limitações de suas próprias formas de pensamento. A declaração de Wassing diz um pouco sobre a cultura Africana, ao passo que revela inadvertidamente sobre as dificuldades inerentes ao conceito Europeu de arte. A criação artística tende a se tornar identificada com a consciência técnica. Não há dúvida de que o artista tradicional Africano se propôs a esculpir o mais poderoso tamborete ancestral ou a máscara cerimonial que melhor capturassem a natureza do espírito que deviam expressar. Seu objetivo é tanto estético quanto funcional, e porque a experiência da beleza está intimamente ligada à manipulação da força ou da comunicação com o sagrado, ou intercâmbio de dons [gift-exchange], ela não é menos válida. Na verdade, essa é uma compreensão mais existencialmente real e espiritual da “beleza.” Se ele não estivesse escrevendo para um público Europeu, Wassing teria que estar preparado para defender uma concepção de beleza que é separada da vida; Isso é o que é problemático. Mas ele, na maneira Européia característica, confundiu a abstração com a experiência. E é fácil para ele primeiro ser induzido em erro e depois enganar [conduzir em erro]; porque, na lógica Europeia, primeiro os Europeus inventam um conceito, método ou “credo,” depois eles tratam-no como uma “descoberta” sobre a natureza do universo — algo que todos devem conhecer e utilizar. A idéia de “arte pela arte” não é apenas uma aberração Europeia com pouca relevância fora do contexto Europeu, mas é de valor limitado dentro da própria cultura e pode de fato ser sintomática de falta de criatividade, espiritualidade, e vitalidade em grande parte da arte Européia.

Tradicionalmente, a discussão Européia não é sobre “a estética Europeia,” mas sobre a “Estética,” e os participantes afirmam delinear as regras e a dinâmica necessárias de uma “ciência” universal do belo. Embora Kant possa dizer, por um lado, que é infrutífero procurar um “critério universal do belo”, ele pode, ao mesmo tempo, dedicar energia intelectual aparentemente ilimitada a um “julgamento puro” e “analítica da belo.” Mas tais discussões filosóficas e analíticas estão sempre preocupadas com a “estética” conscientemente intelectualista do Europeu. As definições estéticas não-intelectuais, geralmente inconscientes ou menos conscientes, e as imagens que atraem emocionalmente os Europeus raramente aparecem em suas discussões academicamente orientadas sobre “Estética.”

Para chegar a esses aspectos da estética Européia contemporânea, é preciso olhar para o que sai de Hollywood, Madison Avenue, livros ilustrados para crianças, revistas, imagens em uso comum de linguagem e “contos de fadas” — mídia que abunda com símbolos culturais (pinturas religiosas, novelas, revista em quadrinhos, e semelhantes), os símbolos de “arte popular”e de materiais educacionais, e o que resta de uma cosmologia religiosa Européia. Se considerarmos a “estética Européia” para incluir aquilo que é agradável aos Europeus, teremos que incluir certos “sentimentos” em relação a outras pessoas, bem como certas formas de pensamento.

O Europeu recebe prazer de um sentimento de controle sobre outras pessoas; esse sentimento é estendido ao participante mais “comum” na cultura através da sua identificação com a hegemonia Européia. O poder é experimentado esteticamente na capacidade de manipular os outros, e esse desejo foi culturalmente sustentado e gerado talvez desde a experiência “Indo-Européia.” Ele é tão profundamente uma parte da estética Européia que, mesmo aqueles que se consideram livres dos excessos e distorções do chauvinismo Europeu, os críticos da política externa Americana, por exemplo, não estão preparados para enfrentar as consequências de uma depreciação dramática no poder Europeu.

A estética Ocidental está, neste sentido, ligada ao utamaroho Europeu (necessidade de supremacia) e à ética Européia. E a imagem Européia de si mesmo como o “aventureiro-descobridor” que busca continuamente novas terras, povos, e recursos para conquistar — tudo isso é emocionalmente agradável a ele. Da mesma forma, como William James e Arthur Lovejoy apontaram, o racionalismo, o modo de abstração e a “idéia de progresso” e “evolucionismo” são todos esteticamente e emocionalmente satisfatórios para a mente Européia. Eles parecem se encaixar [fit]. Eles são harmoniosos com as concepções Ocidentais do universo e são ditados pela asili da cultura.

A arte Europeia é oposicionista, desenvolvida através do que Armstrong chama de “uma dialética de polaridades.” Na sua opinião, a arte Européia, portanto, pode ser entendida como uma série de competições baseadas em contrastes. “Existem aquelas artes que competem pela gravidade, aquelas que competem com o vazio e as que competem com o silêncio.” *

[ * — Armstrong, p. 114.]

Aqui novamente está a asili da cultura se revelando; a semente/germe que, enquanto se manifesta, determina o sistema de cada modalidade. Cada uma contribuindo para assegurar a organização global de uma cultura ditada por um único conjunto de objetivos, trabalhando para satisfazer o insaciável utamaroho. Através da separação, o eu [self] é isolado, oposto a “outro,” e colocado em uma relação competitiva. Aquele que controla mais vence. Vale a pena ser agressivo.

 

“Branco,” “Bom,” e “Bonito”
A “branquitude” [“whiteness”] da estética Européia pode ser conscientemente ignorada pelo intelectual Europeu, mas, no entanto, ela permeia a cultura e também o atinge. Jesus, o símbolo da perfeição para o Cristão Europeu, é reinterpretado como branco e, muitas vezes, com cabelos loiros, e de forma semelhante todo símbolo de pureza é branco, toda inocência é juventude loira, daí a expressão “menino de cabelo bom” (“menino de cabelos claros”)[“fair-haired boy”]. Mesmo o objeto sexual ideal (mas inalcançável) é loiro. Em representações simplistas, os vilões são de cabelos escuros, bigotados, não barbeados, e vestem preto. E, é claro, os outros atributos físicos associados à raça Caucasiana são parte da estética Européia. Essas imagens são visíveis em qualquer exibição de desenhos animados das manhãs de sábado oferecidas pela televisão Americana. Em The Passing of the Great Race, Madison Grant apoia esta observação:

. . . na lenda Celta como nos romances Greco-Romanos e medievais, o príncipe e a princesa são sempre louros [fair], fato que indica que a massa das pessoas era morena [brunet] no momento em que as lendas estavam tomando forma. Na verdade, “louro” [“fair”] é um sinônimo de beleza.

Os Deuses do Olimpo foram todos descritos como loiros, e seria difícil imaginar um artista Grego pintando uma Vênus morena. Nas imagens da Igreja, todos os anjos são loiros, enquanto os habitantes das regiões inferiores revelam-se em uma morenice [brunetness] profunda. “Non Angli sed angeli” [“Não são Anglos, mas Anjos”], observou o Papa Gregório quando viu pela primeira vez crianças Saxãs expostas à venda no mercado-escravo Romano.

Ao descrever a crucificação, nenhum artista hesita em fazer os dois ladrões morenos em contraste com o Salvador loiro. Isso é algo mais do que uma convenção, pois tais tradições quase autênticas, como temos de nosso Senhor, sugerem fortemente atributos físicos e morais Nórdicos e possivelmente Gregos. *

[ * — Armstrong, p. 114.]

Mas a visão de Grant apenas enfatiza o fato de que a realidade mítica é muito mais importante do que a história secular, uma vez que Jesus teria que ter sido um mutante para ser loiro e de olhos azuis, dado seu lugar de origem.

A mídia Européia demonstra bem este aspecto da estético Européia, mas é na literatura do nacionalismo branco declarado que a estética é expressa descaradamente. Dentro dos limites geográficos da “nova Europa,” tem sido a pessoa de descendência Africana que mais fez para expor este aspecto da estética Européia, uma vez que ele o reconheceu como uma ferramenta que o manteve psicologicamente e ideologicamente preso no papel de peão para o utamaroho Europeu; Se branco era “certo” e bom, então ele [Preto] devia ser errado e muito, muito ruim.

Addison Gayle, Jr., traça a gênese da idéia de branco como “bom” e de preto como seu oposto na literatura Européia. Estes são os símbolos de valor da cultura Européia. Com Platão, diz Gayle, vem a imagem da caverna negra da ignorância em oposição à “luz” do conhecimento. As regiões inferiores (ruins) em oposição às regiões superiores (boas). O simbolismo Cristão intensificou essa imagem, e nele, a branquitude como valor se torna expressamente afirmada. Chaucer, Petrarca e outros escritores da Idade Média “estabeleceram suas dicotomias como resultado da influência do Neoplatismo e do Cristianismo.” *

[ * — Addison Gayle, Jr., “Cultural Strangulation: Black Literature and the White Aesthetic,” in The Black Aesthetic, Addison Gayle, Jr., (ed.) Doubleday, Garden City, N.J., 972, p. 40.]

Gayle escreve sobre a dicotomia branco (belo, bom) / preto (feio e ruim) das “peças de moralidade” Inglesas. Branco, na sintaxe da estética Europeia, também representa o universal, enquanto o preto é paroquial. E, claro, o Cristianismo Europeu nos diz que o branco representa a pureza, enquanto a negritude é pecado. A “idade das trevas” [“dark ages”] são os anos “improdutivos” da Europa. “Período escuro” [“dark period”] refere-se à melancolia das novelas Góticas, nos diz Gayle e, na novela Inglesa do século XVIII, o simbolismo tornou-se diretamente traduzido em terminologia racial e cultural. Gayle escreve:

Robinson Crusoé foi publicado em um momento historicamente significativo. No ano de 1719, os Ingleses haviam praticamente completado a colonização da África. O comércio de escravos na América estava a caminho de se tornar uma indústria em expansão; Na África, o povo Preto era  escravizado mentalmente e fisicamente por estranhos parceiros como criminosos, empresários e Cristãos. Nas esferas social e política, foi necessária uma justificativa e a ajuda veio do artista — neste caso, o romancista — sob a forma de Robinson Crusoé. Na novela, Defoe reúne ambos os simbolismos Cristão e Platônico, aguçando a dicotomia entre luz e escuridão, por um lado, enquanto estabelecendo um critério para a inferioridade do povo Preto em oposição à superioridade do branco.

Basta apenas comparar Crusoé com Friday para validar estas duas declarações. Crusoé é majestoso, sábio, branco e um colonizador; Friday é selvagem, ignorante, preto e colonial. Portanto, Crusoé, o colonialista tem uma tarefa dupla. Por um lado, ele deve transformar a ilha (África — improdutiva, estéril, morta) em uma pequena Inglaterra (próspera, vivificante, fértil), e ele deve recriar Friday em sua própria imagem, trazendo-o tão perto de ser um Inglês quanto possível. No final da novela, Crusoé realizou ambas as tarefas; a ilha é uma réplica da “mãe Inglaterra;” e Friday foi transformado em um homem branco, agora capaz de imigrar para as terras dos deuses.*

[ * — Ibid, p. 41.]

Seria difícil exagerar o grau em que a estética que Gayle aqui descreve permeia a cultura. Uma pressão contínua exerce-se sobre a psique de uma pessoa “não-branca” vivendo dentro dos limites ubíquos do Ocidente para “remodelar,” “refazer,” “pintar,” “refinar” a si mesma em conformidade com essa imagem estética Européia do que um ser humano deve ser. As pressões começam no nascimento e ultrapassam à pessoa, muitas vezes quebrando seu espírito muito antes de sua morte física. Este aspecto da estética Européia é uma arma mortal ao serviço da necessidade de dominar e destruir. Tão profunda é a ferida que ele inflige no Senegal, África Ocidental, que mulheres, algumas das mais belas do mundo, queimam e desfiguram a sua rica, macia e melânica pele de ébano com lixívia na tentativa de torná-la branca. Desde a Maafa, * apenas muito recentemente, particularmente na comunidade Africana na América do Norte, que uma estética alternativa e mais culturalmente válida foi apresentada aos povos “não-Ocidentais,” “não brancos” para emular e valorizar.

[ * — Maafa é (um termo) Kiswahili para “Grande Desastre” (“desgraça”). Este termo refere-se à era Européia do comércio de escravos e seu efeito sobre os povos Africanos: mais de 100 milhões de pessoas perderam suas vidas e seus descendentes foram então assaltados de forma sistemática e contínua por meio do anti-Africanismo institucionalizado.]

Gayle refere-se ao trabalho de Hinton Kelper, um chauvinista Europeu-Americano escrevendo em 1867, que contribuiu explicitamente para o estabelecimento e apoio da “estética branca” na América. Na opinião de Gayle, o trabalho de Kelper influenciou em apresentar “os símbolos culturais e sociais de inferioridade sob os quais os Pretos têm trabalhado.”

Helper pretendia, como afirma com franqueza em seu prefácio, “escrever o negro para fora da América” [“write the negro out of America]. Nos títulos dos dois principais capítulos do livro, todo o aparato simbólico da estética branca transmitida de Platão para a América é revelado graficamente: o título de um capítulo diz: “Branco: Uma Coisa da vida, da Saúde e da Beleza” [“White: A Thing of Life, Health, and Beauty.”]

Sob o primeiro título, Kelper argumenta que a cor preta “sempre foi associada às coisas sinistras como o luto, o diabo, a escuridão da noite.” Sob o segundo, “Branco sempre foi associado com a luz do dia, a transfiguração divina, a lua e as estrelas benéficas . . . a tez clara [fair complexion] das damas românticas, os trajes dos Romanos e dos anjos e o branco da bandeira Americana tão belamente combinado com azul e vermelho sem nenhum toque do preto que tem sido para a bandeira dos piratas. *

[ * — Gayle, p. 42.]

Joel Kovel resume assim: “O OCIDENTE É UMA CIVILIZAÇÃO BRANCA, nenhuma outra civilização fez essa afirmação. O branco emblema a pureza, mas a pureza implica uma purificação, uma remoção de impurezas . . . é sobre este símbolo de branquitude que repousa a psicohistória de nosso racismo.” *

[ * — Joel Kovel, White Racism:A Psychohistory, Vintage, New York, 1971, p. 107.]

Esses comentários apresentam uma visão do sentido geralmente inconsciente ou “não-reflexivo” da estética Européia; o que em alguns sentidos seria referido como a idéia afetiva Européia de beleza. O tema da “branquitude” como valor na história cultural Europeia ocorrerá repetidamente à medida que discutimos outros aspectos do utamaroho Europeu.

Nós temos sugerido que, além da qualidade de branquitude e dos hábitos mentais do racionalismo, a experiência e as idéias de “poder,” “controle,” e manipulação são esteticamente agradáveis ​​aos Europeus de uma maneira que não afeta o utamaroho de outros. Estes são aparentemente os aspectos incontroláveis ​​da estética cultural Européia. O desejo de se relacionar com outras pessoas desta maneira é insaciável para os Europeus. Eles nunca podem ter poder suficiente; eles nunca podem controlar objetos suficientes. O prazer derivado do poder e do controle determina seu comportamento em um grau desordenado, e é expresso em suas fantasias através da indústria cinematográfica e vários outros meios de comunicação.

Giovanni Gentile observa precisamente este elemento da estética Européia, mas, como é geralmente o caso dos Europeus, ele convenientemente universaliza o particular através do conceito de “modernidade.” No entanto, as falsas idéias universais que Gentile apresenta não precisam ser emuladas por outras culturas.

O diferencial mais marcante entre os tempos antigo e moderno [é que] a realidade que agora começa a atrair a mente dos homens e a despertar seu principal interesse, não é mais a realidade que eles encontram no mundo, mas sim aquela que eles criam nele [that which they create within it]. O homem começa a sentir um poder capaz de enfrentar e se opor à natureza; Sua independência e energia criativa são afirmadas, embora ainda não provadas. O poder e a virtude do homem são vistos como capazes de vencer a fortuna e todos os eventos sobre os quais ele não tem controle e que constituem sua natureza. Essa energia humana é mais evidente e mais impressionante na arte e na literatura, em que o homem imagina um mundo interior próprio onde ele pode se encerrar e reinar como mestre absoluto. *

[ * — Giovani Gentile, The Philosophy of Art, Ithaca: New York, 1972, p. 279.]

O Mito de uma Estética Universal

A declaração filosófica Européia de estética atua para apoiar o imperialismo cultural Europeu e o controle de outras culturas de uma maneira crucial, porém perigosamente sutil. Um critério primário para o valor estético da arte, segundo a filosofia Européia, é o “universalismo.” Asante adverte poetas e escritores Africanos: “Universal é outra daquelas palavras que têm sido usadas para manter o inimigo em nossos cérebros.” A “base Afrocêntrica” é classificada como “estreita” (“limitada”) ou paroquial, enquanto a “base Eurocêntrica é considerada universal.” *

[ * — Molefi Asante, Afrocentricity: The Theory of Social Change, Africa World Press, Trenton, 1988, p. 46.]

Este conceito de “universalismo” é uma declaração ideológica de ramificações político-culturais tão amplas e devastadoras que garante uma contínua discussão no processo de delineamento das expressões críticas do imperialismo cultural Europeu. É um tema encontrado em todos os aspectos do nacionalismo Europeu. É um compromisso cultural disfarçado.

Vimos como a reivindicação de universalidade e a projeção de universalidade como valor a ser imitado por outras culturas têm funcionado historicamente para facilitar a proselitização e a imposição do Cristianismo. O universalismo também foi projetado como um critério de valor na arte para efetivamente forçar artistas não-Europeus a rejeitar suas próprias fontes de criatividade cultural. Gayle usa a palavra “estrangulamento,” e é uma boa. Joseph Okpaku oferece um exemplo da marca mais óbvia do nacionalismo Europeu na crítica estética de Jones-Quartey, mas, nesta fase, esse tipo de Eurocentrismo não apresenta mais um “perigo claro e presente” para o artista Africano. O que continua a ameaçar sua expressão da singularidade de sua cultura, no entanto, são as idéias dos filósofos “iluminados” que, na sua luta para ultrapassar os aspectos mais feios de sua própria cultura, postulam as virtudes de uma “humanidade universal” em direção a qual todo artista deve dirigir seus esforços — a negação da cultura. Embora essa concepção possa tender a estrangular artistas Africanos e “não-Europeus,” eles acham quase impossível argumentar contra, porque ela está emocional e simbolicamente ligada à “fraternidade do homem” cristã — a retórica “nós somos todos um.” No clima moralista da ética retórica Europeia, a rejeição desta proposição é feita para parecer má, e, no entanto, a proposição é ela própria a mais anti-natural e, portanto, imoral; é bastante “moral” odiar os inimigos. O mesmo acontece com a proposição Européia da normativa universal na experiência estética. A universalidade como objetivo normativo torna-se difícil rejeitar intelectualmente, atendendo aos pressupostos do pensamento Europeu. É por isso que o caminho para a descolonização intelectual começa com um precário percurso de obstáculos e evita o labirinto da mitoforma Européia.

Aristóteles diz que as declarações poéticas são “da natureza . . . dos universais” e que, por uma declaração universal, ele quer dizer “uma sobre a qual tal ou tal tipo de homem provavelmente ou necessariamente deve dizer ou fazer.” *

[ * — Aristotle, The Thetoric and Poetics of Aristotle, trans., Friedrich Solmesen, Random House, New York, 1954, p. 235.]

Este problema da declaração normativa Européia de “universalidade” na arte pode resultar parcialmente de uma tentativa de alcançar a transcendência. Mas isso é um grave mal-entendido, pois transcendência e universalidade não estão nas mesmas categorias. O transcendente é um tipo de experiência humana muito especial, enquanto a universidade é apenas um “fato” semântico na sintaxe do pensamento Europeu. Gentile nos apresenta um excelente exemplo desse tipo de afirmação filosófica Européia. Aparentemente apolítico e acultural, estabelece as bases teóricas para uma concepção prejudicial dos propósitos da arte. Destas “mentes diversas,” ele diz,

Cada um deles tem sua vida e seu mundo, seus ideais e suas paixões, mas todos sentem no fundo de suas almas uma necessidade comum que não podem satisfazer, a menos que eliminem essas paixões e idéias particulares e revelem aquela alma humana que é uma e a mesma em todos eles e que percebe e cria beleza. A verdadeira alma humana é uma, e é capaz de preservar sua unidade através de diferentes nações, raças e épocas, por mais indelevelmente que todas as obras de arte possam portar a marca de sua época e local de nascimento, isto é, as idéias e as paixões que contribuíram para moldar a vida de seu criador. É verdade que, por trás de todas as aparentes diferenças humanas, vive em cada homem uma alma livre, em virtude da qual todos os homens têm, profundamente dentro de si, uma humanidade comum. *

[ * — Gentile, p. 14.]

O intelectual Europeu está tão bem condicionado e condicionou tão bem os outros que aquilo que Gentile diz aqui soa como a “bondade em si.” A questão é, o que isso significa? Que efeito tem sobre o artista e sua arte? Gentile, como tantos filósofos Europeus, pode não estar ciente das implicações interculturais (ou seja, políticas) de sua afirmação, mas isso não a torna menos prejudicial; Pelo contrário, torna-a mais eficaz e mais debilitante, porque o leitor e o artista cometem o erro de serem influenciados pelo que eles supõem que a intenção de Gentile seja. Eles são enganados por sua aparente “falsa consciência.” Politicamente, é óbvio, e para nossos propósitos, sua “intenção” é irrelevante.

Robert Armstrong critica a antropologia tradicional naquilo em que os antropólogos trazem “estruturas” e ferramentas na tentativa de entender culturas estrangeiras que não lhes “encaixam” [“fit”]. Essas ferramentas, portanto, não podem explicar as culturas sob escrutínio. Mas, no entanto,  elas “encaixam-se” [“fit”] à mente do antropólogo. Uma dessas ferramentas, ele diz, é a idéia de um conceito universal de “o belo.” Quando este “universal” não pode ser encontrado nos objetos de estudo, os antropólogos atribuem sua ausência à uma falta de compreensão, imprecisão, ou feitiçaria por parte dos informantes. *

[ * — Armstrong, pp. 14-15.]

Mas Armstrong precisa olhar mais de perto para o propósito do “estudo” do antropólogo para entender melhor a função do “universal.” A própria antropologia é uma expansão do utamaroho Europeu e satisfaz a necessidade de se perceber como superior. O universal, então, permite ao Europeu julgar outras culturas: todas repetições de um tema familiar.

Novamente, é somente muito recentemente que, a partir de uma perspectiva crítica da cultura Européia, alguns artistas e críticas Africanos e outros não-Europeus começaram a questionar a validade desse conceito de universalidade. A pessoa não deve se perder na qualidade emocional de uma semântica particular. O que importa é o uso de uma concepção: o que isso faz; como isso ajuda; o que compreende suas implicações concretas. De uma perspectiva Africano-centrada, perguntamos, isso é bom para os Africanos? * Ou é é apenas uma abstração usada para endossar um valor ou ponto de vista particular?

[ * — Uma pergunta colocada pelas crianças do African Heritage Afterschool Program no Harlem, Nova Iorque.]

O problema é sempre que a natureza do “universal” deve ser definida e delineada, e é sempre o Europeu que é designado para fazer essa tarefa. Joseph Okpaku é certeiro quando ele diz:

Não existe uma estética universal e, se houvesse, seria muito indesejável. O maior valor da arte reside no próprio fato de que existem pelo menos tantas formas diferentes e, às vezes, conflitantes, quanto existem diferentes culturas. Esta é a base da prosperidade e da riqueza da arte. Para o pleno gozo da arte, não é necessário que toda a arte seja reduzida a uma única forma (a forma Ocidental), a fim de torná-la facilmente compreensível e aceitável para o público Ocidental e para todos aqueles que adquiriram seu gosto (por “educação adequada”), mas sim que o aspirante a apreciador faz um esforço para aprender a apreciar diferentes formas de arte.*

[ * — Okpaku, p. 14.]

Johari Amini atravessa a essência política do conceito Europeu de “arte universal.” Infelizmente, raramente encontramos artistas que têm a habilidade crítica de visualizar os valores Europeus em termos de objetivos Europeus em oposição às verdades “científicas” e “objetivas” que eles são apresentados por ser. Devido à proeminência deste tema no imperialismo cultural Europeu e seu efeito pernicioso sobre outros povos, a análise perspicaz e sucinta de Amini é inestimável. A declaração abaixo segue uma passagem na qual ela tem discutido a maneira como as definições culturais Européias agem para controlar culturalmente “não-Europeus”:

Para um exame mais aprofundado da interação aqui, podemos tomar os termos “arte universal” e “literatura de protesto,” que são usados ​​como definições explícitas pelo estabelecimento literário Europeu e são rótulos para implicar uma oposição em propósito e intenção e uma distinção no nível de capacidade criativa e valor estético. O uso desses rótulos, definições, no entanto, é definitivamente conveniente para quem tem o poder de definir a existência de e manter o domínio sobre grandes massas de pessoas. . . .
. . . “universalismo” é uma definição altamente funcional usada por Europeus que tentam impor seus valores culturais aos outros. O conceito de “universalismo” é inválido: não há nenhuma arte, de qualquer povo, que emane de uma base comum a todas as culturas. Mesmo a arte Européia, que faz afirmações de “universalidade,” não pode discursar com qualquer relevância para os povos de outros contextos culturais. Mas na reivindicação de “universalidade,” o racismo é projetado; uma vez que a arte Européia é “universal,” todos os humanos podem se relacionar com ela; e, da mesma forma, se os Africanos, os Asiáticos, os Latino-Americanos ou quaisquer outros povos indígenas não-Europeus não conseguem se relacionar com ela, então eles são “culturalmente privados” (dos valores culturais Europeus), a implicação adicional sendo a de que eles são, além disso, menos do que humanos.*

[ * — Johari Amini, “Re-definition: Concept As Being,” in Black World, Vol. XXII, No. 7, 1972, p. 11.]

Addison Gayle, por sua vez, demonstra a maneira pela qual o tema do universalismo na afirmação da estética filosófica Européia atua para (culturalmente) debilitar os Africanos e Afro-Americanos, enquanto eles lutam para se tornar aquilo que os Europeus dizem que eles deveriam ser: pessoas “universais” mitológicas [mythological “universal” people]. Referindo-se a Robinson Crusoé, Gayle diz:

A partir de tais artefatos místicos, surgiu a literatura e a crítica do mundo Ocidental; com base em preconceitos tão estreitos como os de DeFoe, a arte do povo Preto em todo o mundo foi descrita como paroquial e inferior. Friday era paroquial e inferior até que, tendo denunciado sua própria cultura, ele assimilou outra. Uma vez que isso foi feito, simbolicamente, Friday sofreu uma mudança. Lidar com ele depois da concersão era lidar com ele em termos de um personagem que havia sido civilizado e, portanto, tinha ultrapassado o paroquialismo racial.*

[ * — Gayle, p. 42.]

O universalismo é um mito Europeu usado para oprimir artistas não-Europeus. Se houver algo em uma criação artística que apele esteticamente a pessoas em culturas diferentes daquelas que produziram o artista, tudo bem. Mas esse não é um critério de seu valor, nem deve ser uma preocupação do artista. É não-essencial e periférico. Os usos políticos da retórica universalista são expostos pela análise Africano-centrada.
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O Fio Condutor: Estética, Utamawazo, e Utamaroho

Ao usar o conceito de asili para explorar a estética Européia, chegamos a uma distinção entre arte de “elite” e arte “popular.” Embora um pouco diferente em função, essas duas camadas da arte na experiência Européia provêm da mesma mitoforma, a mesma base ideológica. A arte de elite funciona principalmente para apoiar o utamawazo como ele é e, por sua vez, atua para padronizar e reforçar a modalidade cognitiva que, em termos de ideologia Européia, é entendida como sendo superior. A arte de elite aborda a consciência intelectual da experiência Européia. Ajuda a estabelecer, juntamente com a Academia, a ciência e todos os esforços especulativos Europeus, os padrões pelos quais o “verdadeiro” é julgado: pois, como Keats nos disse, para o Europeu, “a verdade é a beleza, e a beleza é a verdade.” A gênese deste aspecto da estética Europeia é o conto da reinterpretação de uma antiga concepção “pré-Ocidental” da verdade. É uma história que demonstra a essência do utamaroho, e a forma como o utamawazo determina a resposta cultural. Um utamaroho divergente exige uma interpretação e uma elaboração da ideia original radicalmente diferentes.

Para entender o utamawazo Europeu, como sempre retornamos a Platão. Tanto ele quanto Pitágoras (que parece ter influenciado grandemente a Platão) viajaram amplamente e estudaram em várias “escolas de mistério,” principalmente as de Kemet (antigo “Egito”), que eram consideradas em alta estima. Os ensinamentos nessas escolas eram considerados esotéricos e não deveriam ser escritos ou ensinados aos não iniciados. Pitágoras, depois de ter sido iniciado no conhecimento matemático dos sacerdotes/estudiosos Africanos, retornou a Samos, entre 540 e 530 a.C., e ensinou a nova filosofia que ele aprendeu. As idéias eram tão estranhas e ameaçadoras para a integridade da cultura que ele foi obrigado a sair; um padrão familiar, como destino semelhante aconteceu com Sócrates, Platão e Aristóteles. Pitágoras então foi para Magna Grécia e estabeleceu uma fraternidade secreta ou “escola de mistério” própria. Esta envolvia três graus de iluminação, assim como a maioria das tradições de mistério, onde o conhecimento matemático representava o mais alto nível de compreensão. Para Pitágoras, o “número” incorporava a natureza fundamental do universo. Platão foi iniciado na Fraternidade Pitagórica e sua doutrina secreta sobre o conhecimento matemático. A Liga de Crotona [Crotoniate League], o aspecto político da Irmandade Pitagórica, influenciou a ideia de Platão do “estado ideal” governado por uma elite de filósofos. *

[ * — Matila Ghyka, “The Pythagorean and Platonic Scientific Criterion of the Beautiful in Classical Western Art,” in Ideological Differences and World Order, F.S.C. Northrop (ed.), Yale University Press, New Haven, 1949, p. 99.]

Nas concepções mais antigas, das quais Platão e Pitágoras tinham aprendido, o universo era um cosmos, um todo harmoniosamente ordenado. Apesar de todos os fenômenos estarem conectados por uma força-vital universal, que fazia uma unidade de ser, a “verdade” do macrocosmo era refletida na realidade do microcosmo. Esta é ainda a visão cósmica dos povos Africanos. *

[ * — Germaine Dieterien and Marcel Griaule, “The Dogon,” in African Worlds, Daryll Forde (ed.), Oxford University Press, London, 1954.]

Mas quando a mentalidade Platônica confrontou a concepção esotérica e espiritualista Africana, ela tornou-se intelectualista, cerebral, exotérica e ideológica. O conjunto harmoniosamente ordenado foi entendido como refletido nas propriedades do corpo humano perfeito e na perfeita obra de arte. * Platão chegou a um conceito de beleza absoluta; a “idéia” arquetípica de “beleza.”

[ * — Ghyka, p. 100.]

Entre os antigos, a construção de um dodecaedro representava a “proporção divina” da Seção Áurea [Golden Section]. Mas a ciência do cosmos, que mais tarde passou a ser conhecida como alquimia, usava a matemática, não só de maneira física concreta (na construção de pirâmides, obeliscos, etc.), mas de forma mais significativa como expressão metafórica e linguagem simbólica que permitiam à pessoa iniciada participar de verdades eternas.

Para Platão e para aqueles a quem ele influenciou, as proporções matemáticas e geométricas tornaram-se o padrão de”beleza”. A ordem foi revertida. O espírito já não era primário, criando simetria e proporção na esfera natural, mas a simetria e a proporção agora eram usadas para impor um padrão de beleza nas concepções naturais e humanas. Para Platão, a forma geométrica tornou-se uma medida de perfeição; de fato, a beleza foi identificada com a perfeição e, portanto, com a verdade. Matila Ghyka traça concepções Ocidentais de arte e métodos de composição a partir de suas origens Platônicas. “O número é o próprio conhecimento,” citado de Platão (no Timeu). Ghyka diz que esta máxima viria a “se tornar a principal ferramenta da composição artística Ocidental, ou seja, o conceito de proporção.”*

[ * — Ibid, p. 92.]

A média proporcional ou a “ligação de harmonização entre duas magnitudes baseadas no princípio da analogia influenciaram a arquitetura Gótica e Renascentista.” Ghyka cita Vitrúvio, um Platônico: “A simetria reside na correlação por meio de medição entre os vários elementos do plano e entre cada um desses elementos e o todo.” *

[ * — Ibid, p. 93.]

Platão é creditado com o início da busca pela “beleza absoluta,” livre de contaminação terrestre. Esta concepção é discutida no Simpósio, onde os aspectos mais etéreos de seu conceito são desenvolvidos: esta é a beleza “incriada” e “imperecível,” “beleza verdadeira,” “beleza divina,” “pura e clara e sem-mistura,” “não entupida com as poluições da mortalidade e todas as cores e vaidades da vida humana.” *

[ * — Platão, Simpósio: 211, The Dialogues of Plato, Vol. I, trans. Benjamin Jowett, Random House, New York, 1937, p. 355.]

O outro aspecto do conceito é como uma realidade física mensurável; No Filebo, Sócrates diz:

por beleza de forma eu não quero dizer aquela beleza como a de animais ou imagens, que muitos supõem ser o meu significado; mas, . . . entenda-me significar linhas retas e curvas, as figuras planas ou sólidas que são formadas por estas, através de giros e tornos e réguas e medidas de ângulos; pois estas eu afirmo serem não só relativamente bonitas, como outras coisas, mas elas são eternamente e absolutamente bonitas. . . .” *

[ * — Platão, Filebo: 51, The Dialogues of Plato, Vol. II, trans., Benjamin Jowett, Vol. II, Random House, New York, 1937, p. 386.]

Agostinho demonstra a influência Platônica: “a razão, voltando-se para o domínio da visão, isto é, para a terra e o céu, percebeu que, no mundo, é a beleza que agrada a visão: na beleza, figuras; nas figuras, medidas; nas medidas, números. *

[ * — Citado em Ghyka, p. 112.]

Precisamente! Os Europeus abordam o belo (que é, afinal, uma experiência) com a razão. E à “razão” foi dada uma definição racionalista, que implica controle: relacionamento mecânico ao invés de interação orgânica. Isso nasce da natureza da asili da cultura.

Ghyka traça essa peculiarmente desenvolvida concepção Européia de beleza através da música e da arquitetura Européias, de modo que a “euritmia” [“eurhythmy”] ou o princípio da “composição sinfônica” juntamente com o “uso consciente da proporção” podem ser identificados como a “característica dominante da arte Ocidental.” *

[ * — Ghyka, p. 94.]

Nós o vemos na dança Européia, onde, como Kariamu Asante nos diz, o balé é valorizado por sua natureza clássica, dependendo fortemente de “forma simétrica, proporcional e orientada de perfil [profile oriented].”*

[ * — Kariamu Welsh-Asante, “Commonalities in African Dance: An Aesthetic Foundation,” in The African Culture, Molefi Asante and Kariamu Welsh-Asante (eds.), Greenwood Press, Westport, 1985, p. 78.]

O balé Europeu é o controle no sentido da restrição e extensão precisa dos músculos, de acordo com uma forma preconcebida e prescrita. Mas o dançarino Africano ganha maestria paradoxalmente ao desenvolver a capacidade de permitir que seu corpo expresse a força-vital universal percebida/sentida dentro: aquilo que conhecemos como ritmo.

A estética Européia inserida no contexto ideológico da cultura Europeia oprime, distorce e estrangula o espírito Africano. A estética Européia casada com uma concepção materialista de proporção matemática perfeita, define o Africano como excessivo. Seu espírito é “demais” [“too much”]; ele é muito emocional, muito escuro; o nariz é muito largo. E, à medida em que a Africana tenta de se conformar às restrições do balé Europeu, ela é constantemente lembrada de que suas nádegas são muito arredondadas, muito bem torneadas, muito pronunciadas! haverá um exemplo mais claro e convincente sobre os usos ideológicos da estética Européia? Durante décadas, pequenas meninas Africanas tem sido ensinadas a odiar seu próprio ser natural enquanto estudam uma forma de dança criada para expressar o utamaroho Europeu e simultaneamente, desacreditar a viabilidade estética não só de outras culturas, mas de outras formas humanas! Endireite seus cabelos para que ele possa ser puxado para cima em um coque (mesmo que ele não seja longo o suficiente). “comprima o seu traseiro, para que o perfil do seu corpo seja o mais reto possível!” O Balé é “universal”; outras formas são “étnicas” e, portanto, “culturalmente baseadas.” Assim continua o mito da estética Européia. A concepção Grega de beleza ainda afeta os brancos (Caucasianos Europeus) e tiraniza os pretos (Africanos), que julgam sua aparência física em relação à proximidade com que se [parecem] aproximam dos ​​Adonis e Vênus loiros. A própria cultura Africana (e isso certamente é verdade para outras culturas não-Europeias) ofende a estética Européia. Ela é humana demais [it is too human].

Uma estética que se esforça por um modelo de perfeição; aquela perfeição representada pela proporção adequada a ser determinada por precisão de medição e relação matemática de linha e espaço — tal é a estética Européia Clássica herdada. Como uma expressão do utamawazo Europeu, essa estética tornou-se racionalista, e controladora, representando um esforço para a perfeição, associou à brancura a falta de cor (que é vista como excessiva), e experimenta prazer no poder (utamaroho), não o “poder para,” que é energia; mas o “poder sobre,” que é destruição. De modo que, mesmo quando a estética Européia se relaciona com outras estéticas, ela as incorpora e reinterpreta, e depois as descarta. Mas as culturas que criaram essas idéias nunca podem ser totalmente descartadas porque são uma fonte de criatividade muito necessária.

A mentalidade Européia nescente — uma mentalidade literal, superficial e controladora — tomou a metáfora por realidade, reduzindo a complexidade espiritual à fórmula técnica matemática. E este foi o nascimento da arte de “elite” — arte que poderia ser utilizada de forma ideológica para sustentar uma ordem de Estado perfeita, que, por sua vez, oprimiria o não-elite e colonizaria o “outro cultural.” A arte de elite na Europa contemporânea reforça as concepções ontológicas e epistemológicas Européias, que, como vimos, assumem um significado ideológico no desenvolvimento da cultura e em sua posição em relação a outras culturas. Desta forma, a concepção estética de elite apoia o nacionalismo Europeu e o imperialismo cultural Europeu.

Isso nos leva às formas da arte popular. Uma interpretação óbvia da função da arte neste nível seria dar prazer às massas Européias (Européias-Americanas). Essa visão não é pertinente. Isso é apenas uma parte da realidade, porque não emprega o conceito de asili. Uma perspectiva Africano-centrada nos permite compreender os usos ideológicos e políticos dessa arte. No Cap. 2 vimos que o Cristianismo Europeu desempenhou um papel essencial no desenvolvimento de uma consciência nacional Européia desde o período Romano até a Idade Média. A ciência começou a assumir o controle durante o Renascimento, e então o capitalismo e a industrialização se uniram para formar um edifício da identidade Européia. Na Euro-America contemporânea, a arte popular se dirige à vida subconsciente dos participantes comuns em um esforço para reforçar sua identificação e lealdade como “Americanos,” “Europeus,” “Caucasianos.” A arte popular afirma as formas da consciência nacional. Esta função da arte popular tornou-se maior e mais manifesta recentemente por causa da crise percebida no nacionalismo (patriotismo) Americano e a concomitante insegurança psíquica que é considerada gerada pela realidade do “sucesso” Japonês.

Enquanto a arte de elite apresenta e reafirma o utamawazo (o estilo cognitivo cultural), a arte popular serve ao utamaroho (a força-vital afetiva da cultura). Claro, o utamawazo e o utamaroho Europeus estão intimamente conectados em uma relação simbiótica, alimentando-se um do outro. Seria errado pensar neles como fenômenos diferentes. A modalidade cognitiva generalizada (utamawazo) assume uma forma particular por causa da natureza da personalidade cultural; o espírito característico compartilhado das pessoas (utamaroho). Utamaroho e estética nascem da mesma base da realidade cultural. Ambos têm a ver com “sentimentos” —  aquilo que seria psicológico no nível pessoal. Utamaroho é a fonte da estética cultural, no sentido de uma espécie de “princípio do prazer.”

A natureza peculiar da cultura Européia é que seu “sucesso” é totalmente dependente da manutenção de seu utamaroho único. O utamaroho — sedento-de-poder, expansivo, espiritualmente deficiente, necessitando de  controle — é a força motriz sob os mecanismos e padrões de comportamento que contribuem para a definição da cultura. Este utamaroho é a fonte de energia que mantém a cultura em andamento. A arte popular é usada para apresentar os ícones [ikons] que utilizam a energia do utamaroho. É nesse sentido que a arte na cultura não é periférica, mas é uma parte essencial da sua matriz ideológica sustentadora, tocando a vida de seus membros em um nível profundo.

Uma imagem é um ícone [ikon] quando se torna uma apresentação contundente da idéia nacional/cultural. É uma presença sensorial definida pela visão e auto-imagem coletivas. Um ícone é uma imagem poderosa que faz com que alguém sinta e interiorize uma cultura. (O mecanismo mais eficaz que desempenha essa função na cultura Africana é o drama ritual.) A arte/design é usada para apresentar o ícone à psique individual. O ícone tem a habilidade especial de forjar as psiques individuais em uma psique coletiva. Desta forma, uma consciência nacional é criada, afirmada e/ou reforçada. Esse é um processo contínuo. Mas é um processo do qual o participante comum na cultura Européia/Européia-Americana não tem conhecimento [consciência]. Muitas vezes os ícones são camuflados. Desta forma, eles são mais capazes de afetar a psique individual em um nível subliminar. Atualmente, é possível assistir a muitas apresentações óbvias, como águias, bandeiras, cores nacionais em carros, jeans, uniformes escolares, caixas de cereais e brinquedos. E é claro que existem ícones pronunciados como a cruz (crucifixo). Existem ícones que promovem uma consciência nacional Euro-Americana; há outros, mais sutis, que se relacionam com a consciência Européia mais ampla. A mídia de publicidade usa esses ícoes, como mulheres de cabelos loiros com narizes aquilinos. Há também ícones verbais que abundam na cultura popular Européia e Européia-Americana, de modo que continuamente ouvimos a justaposição de termos como “civilizado” e “terrorista,” ou termos como “futuro,” “amanhã,” “mais novo” [“newest”] para indicar valor.” * Normalmente, não somos conscientes das maneiras pelas quais a arte popular solda a psique coletiva em uma consciência nacional de identidade.

[ * — Aziza Gibson-Hunter, personal conversation, 1988.]

Uma das expressões/usos mais prevalentes da arte popular conforme ela coletiviza a psique Européia individual está no design. Se estudado a partir de uma perspectiva Africano-centrada, vemos que o design é uma influência poderosa e onipresente em nossas vidas. Os carros que dirigimos; os móveis nos quais nos sentamos, dormimos ou comemos; os aparelhos que usamos; mesmo as cores e tecidos com os quais decoramos nossas casas — todos empregam a estética Européia de linha, dimensão e espaço. Muitas vezes, os próprios objetos se tornam ícones. A televisão é um ícone Euro-Americano. A arte popular atua esteticamente; isto é, condiciona a psique da cultura a responder com prazer aos ícones que representam a identidade nacional. A Estética é acima de tudo, neste sentido, um mecanismo emocional.

Esta estética é usada ideologicamente. Engenhosamente, ela dá sinais diferentes a diferentes segmentos da população. Ícones como a bandeira Americana, por exemplo, ou mesmo uma estátua Grega, geram sentimentos de orgulho em uma pessoa de ascendência Européia, pois ela se identifica com o que ela entende ser uma tradição cultural superior. É fácil (cultural) para ele sentir isso por causa de sua memória ancestral e os vários mecanismos, instituições, livros didáticos, teorias, jogos, filmes, vídeos, professores, e formas ad infinitum que o cercam, reforçando a idéia de sua superioridade cultural, todos fazendo uso dos ícones.

Mas o mesmo ícone atinge a psique individual de uma pessoa de ascendência Africana, criando e reforçando sentimentos de inferioridade, dependência e humilhação. À medida que a pessoa de ascendência Africana internaliza a imagem do ícone em seu próprio sentimento individual, ela realmente “deseja” seu relacionamento de dependência, buscando consumir (comprar) tantos produtos quanto possível que incorporem o ícone. A internalização do ícone-imagem faz com que ela deseje ser controlada pelo que ela percebe ser a cultura superior. E então ela adorna a si mesma e a sua casa (espaço pessoal) com ícones Europeus, dando-lhes acesso total a sua consciência.

A pessoa de fundo não-Europeu torna-se vítima do ícone Europeu que atua sobre ela como uma poderosa arma de controle. A razão para isso é que os ícones Europeus apenas agem para coletivizar ou unir a psique Européia: a psique que está ligada à memória ancestral Européia. Mas para os não-Europeus isso tem o efeito oposto. Ele [o ícone] pega aquilo que considera de um coletivo consciente Africano ou outro não-Europeu e divide-o; o individualiza-o, para que possa ser colocado à serviço da causa nacionalista Européia. A solução não é tão difícil quanto pensamos. Para quebrar o controle do ícone Europeu, temos simplesmente que responder com nossa vontade consciente coletiva.*

[ * — Asante, Afrocentricity, Africa World Press, Trenton, 1988.]

Uma consciência Africana rejeita automaticamente os ícones Europeus como desagradáveis ​​ou atua como uma triagem de filtro para aquilo que reforça o ser Africano. Através deste processo, eles [os ícones] são roubados de seu poder ideológico e não são mais ícones. Essa habilidade é promovida através do uso e criação de ícones Africanos que utilizam a energia da memória ancestral Africana. Mas na Euro-América, a estética popular é apoiada pela estética (arte) de elite que faz com que os ícones não-Europeus pareçam representar ignorância, imperfeição, atraso; tudo aquilo que não tem valor.

A razão pela qual a cidade é o modo valorizado da organização social na ideologia Européia não é apenas por sua suposta eficiência para a ordem técnica. No cenário urbanizado Europeu, as mídias mecanizadas e visuais têm o maior acesso à mente/alma humana. A cidade é mídia! O mito da sofisticação é que na cidade a pessoa se torna um “livre pensador,” liberado do controle da moral das pequenas cidades. Na verdade, não há nenhum canto da cidade que nos permita a privacidade de nossos próprios pensamentos. Ao moldar a experiência humana, o sistema da cidade molda as pessoas [the city-system shapes people]. Esse é o seu valor. A multiplicidade de meios de comunicação (dos quais o sistema educacional faz parte) cria nosso meio ambiente e, portanto, em um sentido muito real, nos cria [creates us]. *

[ * — Amos Wilson, an African psychologist, oferece este conceito da “criação” da pessoa, em Black on Black Violence, Afrikan World infosystems, New York, 1990, p. 55.]

Os ícones da “ordem estatal”, a “ordem nacional,” de uma “ordem mundial” dominada pelos Europeus; os ícones da tradição Européia, da memória racial e do orgulho Caucasianos, Indo-Europeus; os ícones do expansionismo e do imperialismo Europeus — esses ícones estão constantemente invadindo o subconsciente e consciente daqueles que moram na metrópole. Nossas imagens visuais e auditivas são continuamente mediadas através dos atavios [accoutrements] da “vida da cidade.” A cidade é cheia de mídia [media-filled]; É feita de mídia. Qual a melhor maneira de controlar sentimentos, compromissos que se tornam padrões de comportamento e metas, do que efetuando respostas de consciência e afetivas? A cidade Euro-Americana cria e medeia imagens. Esse é o propósito e talvez o objetivo mais importante da forma de arte popular. (Esta forma de arte também funciona como uma válvula de segurança para expressar medos e ambivalências sobre o eu nacional/cultural. Este ponto será discutido mais adiante no capítulo a seguir.) O Graffiti representa a produção de imagens não controladas pela ordem estatal. Ele é, portanto, “desprezível”, uma “destruição de propriedade.” Mas os anúncios que nos roubam a visão, que aglomeram-se em nossa visão, que enchem o ar que transmite o som, não são considerados “destruições de propriedade” porque contribuem para o controle da imagem; para a criação do ícone.

Ao usar o conceito de asili, vemos que a estética Européia faz parte do desenvolvimento consistente da semente/germe cultural. O utamaroho é de natureza política. É defensivo/agressivo, sempre com a intenção de separar o eu do outro; o outro que é percebido com hostilidade. Os usos da arte e o caráter da estética, portanto, assumem uma definição intensamente ideológica e política. Tanto a forma de arte de elite quanto a popular são essenciais na criação e no reforço da auto-imagem Euro-Caucasiana e, dialéticamente, da imagem Européia do “outro cultural.” A consideração da função cultural da estética Européia leva-nos primeiro a uma discussão dessas duas imagens (Parte II) e depois a uma discussão de sua relação com o comportamento culturalmente padronizado Europeu. (Parte III).

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O bardo do imperialismo moderno cantou o fardo do Homem Branco.

As notas atingem a superfície de granito do orgulho racial e refletem ecos que reverberam através dos corredores da história, exultantes, avivando o sangue com lembranças de aventuras heróicas, atos de audácia desesperada, travessia de mares desconhecidos, vistas de continentes misteriosos, perigos enfrentados e vencidos, obstáculos triunfantemente superados.

Mas misturado com esses hinos à elação nacional, outro som nos é transmitido, os povos brancos da terra, ao longo dos meandros sem rastros do passado, em cadência melancólica. Deveríamos preferir fechar nossos ouvidos para seu refrão assustador, sufocar seu apelo nas melodias conflitantes de arrebatadora auto-estima. Nós não podemos. E, hoje, nos rasgamos e nos despedaçamos, [logo] nós, que rasgamos e dilaceramos os povos mais fracos em nosso passo imperial, ele [esse som] ganha volume e insistência. *

[ * — E.D. Morel, The Black Man’s Burden, Monthly Review Press, New York, 1969, p. 3.]

A visão Européia de si mesma revela a natureza do utamaroho Europeu e está dialéticamente relacionada à sua visão dos outros. É por causa da natureza deste utamaroho que um dos índices mais precisos da auto-imagem Européia é a sua imagem dos outros. Esta discussão é composta por duas seções sobrepostas e inter-relacionadas: a primeira (Cap. 4) enfatiza descrições e sentimentos Europeus sobre si mesmos (“positivas”); o segundo (Cap. 5) enfatiza as complementares descrições e imagens de outros (“negativas”) que servem para reforçar as primeiras, isto é, através da dialética da dicotomia de valores. A partir do comportamento geral, literatura e outras expressões culturais dos Europeus, surge uma declaração autobiográfica consistente de como eles se imaginam e o que eles “querem ser” em relação aos outros. Ao isolar os componentes desta auto-imagem, descobrimos que o “ego cultural” Europeu é composto de elementos rastreáveis aos estágios iniciais e formulativos da cultura Européia; Traços que maturaram e se desenvolveram simultaneamente com a própria cultura. As características isoláveis ​​estão inter-relacionadas e cada uma delas funciona para suportar a outra, combinando-se para formar um “ego” coeso, que usa o conflito/tensão, resultante de uma deficiência inerente como fonte contínua de energia. O que emerge nesta discussão é a auto-imagem culturalmente visível que funciona de forma significativa para suportar o comportamento normativo e sancionado Europeu.

O termo “ego cultural” é usado por Joel Kovel, é um conceito útil para este estudo. Kovel diz,

O ego que estamos discutindo não é o de um indivíduo … mas sim os egos de uma massa de personalidades conforme se apresentam em uma situação histórica. Vamos chamá-lo de um Ego Cultural … *

O senso do eu [self] e o senso de identidade são reflexos do trabalho sintético do ego. Todos os elementos apresentados ao indivíduo por seus impulsos, seu desenvolvimento passado e as necessidades do ambiente em que ele se encontra, devem ser fundidos em uma auto-imagem e um senso de identidade coerentes. *2

[ * — Joel Kovel, White Racism: A Psycho-History, Vintage, New York, 1971, p. 104.]
[ *2 — Ibid., p. 287]

Os Europeus responderam com entusiasmo à diretriz Platônica inicial adotando a auto-imagem do “homem racional.” O que é que a abstração do “homem” deveria propriamente ser na visão Européia? E como eles se vêem? A cultura é “bem-sucedida” porque convence-os de que essas duas respostas são sinônimas. As duas são idênticas uma à outra, e a abstração universalista colapsa na auto-imagem Européia particular e concreta. O discurso filosófico Europeu trata do específico, das imagens, padrões, desejos e objetivos dos Europeus. Mas emprega uma semântica universalista. É essencial que aprendamos a reconhecer as expressões de valor e auto-imagem Européias quando aparecem. Na linguagem da tradição Europeia, termos como “homem,” “humanidade,” “gênero humano” [“mankind”], “humanidade” conotam “Europeu” e evocam auto-imagens na mente dos Europeus. (Para “o resto de nós,” esses termos, definidos de forma Eurocêntrica, apresentam imagem do que pensamos que devemos ser, mas não podemos nos tornar, por mais que nos esforcemos, e isso pode ser atribuído ao sucesso do imperialismo cultural Europeu.)

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“Homem Racional”

As implicações da “racionalidade” para a mente Européia são cruciais. As características esseciais associadas a este conceito, dentro da visão de mundo Européia, são controle e conseqüentemente poder — o tema que reverbera infinitamente no desdobramento etnológico da cultura, ecoou em cada declaração de valor. O “homem racional”, em termos Europeus, é acima de tudo a pessoa que controla suas paixões. Ele toma decisões — escolhas baseadas na razão — a guia adequada e invulnerável. Estar no controle de si mesmo coloca-o em melhor posição para manipular e controlar os outros — aqueles que são irracionais ou pelo menos menos racionais. Ele tem poder sobre os outros em virtude de seu racionalismo. Através da institucionalização e abstração deste processo de tomada-de-decisão “racional” —  do qual a ciência é constituída — ele acredita que ele pode mesmo controlar seu destino. Ele planeja, predica e cria seu futuro; atividades geralmente associadas a um “deus.”

Quando Platão descreveu a “justiça” como o triunfo da “razão” sobre a “paixão” nos seres humanos, ele estava delineando um plano [blueprint] para o que ele queria que os “homens” da República se tornassem. Quando os filósofos do Iluminismo clamaram pelo planejamento da sociedade de acordo com as “leis da razão,” eles estavam anunciando sua própria entrada no palco da “história” como sua vanguarda indiscutível. Eles eram os “homens racionais” que tinham sido mandatados para determinar essas leis. Eles e sua progênie formariam uma ordem social como apenas homens racionais poderiam.

A versão contemporânea “crítica” desta posição, para a qual infelizmente muitos estudiosos Africanos desencantados se voltam por direção ao invés de desenvolverem suas próprias análises Africano-centradas, é aquela de Jurgen Habermas. Na década de 1980, Habermas clama por um “mundo da vida racionalizado” [“rationalized lifeworld”] que conduza à racionalidade na “conduta da vida.”

[ * — Jurgen Habermas, The Theory of Communicative Action: Reason and the Rationalization of Society, Vol. I, trans. Thomas McCarthy, Beacon Press, Boston, 1954, p. 43.]

Embora ele professe evitar a universalização de uma “compreensão otimista do mundo,” * ele afirma ter alcançado uma definição universalmente aplicável de comportamento racional, a qual inclui ter “bons motivos” para ações; mais especificamente, razões que são cognitivamente “corretas” ou “bem sucedidas,” e moralmente e praticamente “confiáveis” e “perspicazes.” *2

[ * — Ibid., p. 44.]
[ *2 — Jurgen Habermas, The Theory of Communicative Action: Reason and the Rationalization of Society, Vol. I, trans. Thomas McCarthy, Beacon Press, Boston, 1954, p. 43.]

Obviamente, não há julgamento, valor e visão de mundo fugazes; pois qual quadro de referência deve ser usado na definição desses termos? Habermas, como Platão, fala sobre um “universo objetivo.” Ele conseguiu atualizar (contemporanizar) o utamaroho Europeu que se expressa no desejo de ser “homem racional,” como ele próprio, se esforça para postular um “processo histórico-mundial de racionalização das visões de mundo.” *

[ * — Ibid., p. 54.]

A missão de Habermas é limpar o ato Europeu, separando o mitológico do racional na visão de mundo Européia, mas ao fazê-lo, seu pensamento é estruturado confortavelmente pelo utamawazo Europeu que entende a “verdade” e a “justiça” como universais, racionalmente superiores aos valores culturais que são “locais” e “específicos.” * O ideal de Habermas é o “homem racional” por excelência, que, como tal, poderá reivindicar superioridade moral. O círculo se completa; a modalidade é inalterada.

[ * — Ibid., p. 42.]

A imagem Européia do “não-Europeu,” o Africano, ou sua própria antítese [a própria antítese dos Europeus] reforça essas observações. São reconhecíveis nela todas aquelas coisas que eles repudiam — aquilo que eles não querem ser. Na sua opinião, as pessoas de outras culturas são basicamente irracionais. Portanto, essas pessoas não escolhem; elas não tomam decisões. Elas não têm controle sobre seus destinos. Isto é o que os Europeus querem que o caso seja e, conseqüentemente, eles atuam de forma a levar a essa condição. Assim como eles lutam para se tornarem aquilo que querem ser, e ao lutar, são bem sucedidos, eles devem ser “aqueles que controlam”[the ones “who control”] (isto é, eles representam o homem racional). Os Europeus devotam sua vida cultural para se tornarem aquilo que para outros não é necessariamente desejável. COnsequentemente, os benefícios da “racionalidade” devem ser compartilhados — isso é “progresso.”  É a “irracionalidade” que deve ser eliminada — subjugada; isso também é “progresso.” Racionalização (ordem eficiente) torna-se racionalidade (controle do emocional). Esta combinação é um ingrediente essencial da auto-imagem Européia — embora tal racionalidade possa muito provavelmente ser considerada a altura (ou a profundidade) do não-razoável em outras culturas.

A auto-imagem que estamos reconstruindo faz parte da mitologia com a qual os Europeus se equipam. Pelo termo “mitologia,” não quero dizer sobre a verdade ou a falsidade dessas imagens; tais termos não têm relevância para a “mitologia” tal como eu uso. Estou me referindo a um conjunto de crenças, cujo próprio idioma é determinado culturalmente. É a definição, em matriz simbólica, de uma expressão da definição culturalmente operável do “verdadeiro.” Não faz sentido discutir se os Europeus são “racionais;” O que importa é o que eles entendem (significam) pelo termo “racional,” que eles se identificam com essa concepção e que essa identificação orienta seu comportamento. Pode muito bem ser que essa “racionalidade” a que os Europeus aspiram e se vêem possuidores não seja reconhecível como um objetivo normativo para outros povos.

Essa visão da racionalidade faz parte de uma série relacionada de características ou atributos com os quais os Europeus se associam. Na auto-imagem coletiva eles são o “homem crítico.” Havelock escreve em elogio do surgimento na cultura Grega do que ele chama de “inteligência crítica autoconsciente.” Isso é contrastado com a inadequação da mídia poética da Grécia pré-Platônica, a qual se baseava em “aceitação acrítica,” “auto-identificação, e auto-entrega.” Ele descreve o Grego Homérico como tando estado sob um “feitiço hipnótico.” Havelock está, de fato, oferecendo a visão Européia de si mesmos (“crítica”) e sua visão dos não-Europeus (“não crítica”). E, assim como com a idéia do homem racional, [o termo] crítico implica “controle sobre.” Para a mente Européia, isso implica um agente que atua sobre coisas, pessoas, informações; enquanto que o ser não-crítico é passivo, em um transe, para ser manipulado por eventos, objetos, emoções e pelos homens críticos. Para Havelock, a “rendição” do homem não-crítico é “realizada através do emprego pródigo das emoções.” * Novamente, uma relação de poder está implícita e subjacente à concepção Européia de si mesmo como “homem crítico e racional.”

[ * — Eric Havelock, A Preface to Plato, Grosset and Dunlap, New York, 1963, p. 199.]

A idéia de “homem crítico” é, por sua vez, relacionada com o conceito de “objetividade,” como vimos no Cap. 1. Este é um dos componentes mais importantes da mitoforma Européia. Os Europeus são “críticos” e “reflexivos” porque acreditam que podem se separar de suas emoções e dos “objetos” que procuram “conhecer.” Havelock diz:

Assim, o sujeito autônomo que já não mais lembra e sente, mas sabe, agora pode ser confrontado com milhares de leis, princípios, tópicos e fórmulas abstraídas que se tornam objetos de seu conhecimento. *

[ * — Ibid., p. 219.]

E porque os Europeus são capazes de se separar do objeto, é assumido que eles podem ser objetivos. Esta associação de crítica com a noção Européia de objetividade teve consequências muito infelizes, pois, na realidade, uma perspectiva crítica para um conjunto de pressupostos só pode ser informada pelo compromisso com outro, pelo menos quando essas premissas são epistemológicas. Não existe tal coisa como uma objetividade humana verdadeira, assim como não é possível para uma pessoa separar uma “parte” de si mesma de outra.

Mas, de acordo com a mitologia Européia, eles são realmente detentores de uma objetividade que os coloca, como se estivessem, à frente dos outros. Pois, enquanto os outros se afundam em um mar de emoção (isto é, compromisso cultural) que colore e nubla sua visão, os Europeus podem subir acima desse embargo (identificação). Com a racionalidade e a objetividade vem a “universalidade.” Os Europeus estão mais próximos de ser “universais” porque, ao serem racionais, eles são mais capazes de escolher e projetar as formas sociais e intelectuais adequadas para todas as pessoas. Eles são aquilo que se espera que os outros se tornem, por mais remota que seja a possibilidade. Ao serem objetivos, sua visão e interpretação podem ser de alcance internacional e ter significado universal, ao contrário de serem paroquiais e culturalmente vinculadas [culturally bound]. O mito continua.

Todos esses temas normativos afetam a estética intelectual Européia, assim como afetam o comportamento Europeu. Estas são as características, os atributos para os quais um participante na cultura se esforça e, ao mesmo tempo, eles se combinam para formar uma parte importante da construção ontológica que governa o utamawazo. A crítica e a análise são consideradas partes importantes da experiência estética Européia. Nesta visão, outras culturas quase não possuem “arte,” em parte porque não podem avaliá-la “criticamente.”

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O Europeu como “Masculino”

A crítica feminista da sociedade Européia tem suas raízes nas entranhas da tradição Européia. * A natureza patriarcal da religião Indo-Européia inicial (ver Cap. 2) indica mais do que um desejo dos homens de dominar as mulheres.

[ * — Iva Carruthers, “War on African Familthood,” in Study Black Bridges, Roseann P. Bell, Betty Parker, and Beverly Guy-Sheftall. (eds.), Anchor Press, Garden City, N.J., 1979, pp. 8-17.]

Ela também resulta da associação de “masculinidade” com superioridade e “feminilidade” com inferioridade. Talvez a primeira definição Européia de “eu” [“self”] e “outro” tenha sido como masculino e feminino. Em reação a uma tradição de controle masculino de mais de 4000 anos, as feministas Européias se organizam para acabar com a opressão feminina. Alguns vêem a base de seu movimento na igualdade de homens e mulheres, que traduzem como “semelhança” [“sameness”]. De uma perspectiva Africano-centrada, esta posição é incorreta. Outros desenvolveram uma “ideologia feminista,” grande parte da qual usa os princípios de uma visão de mundo Africana como sua base dentro da categoria do que Ruether chama de “feminismo de reforma” [“reform feminism”], embora não a identifiquem como tal.

[ * — Rosemary Radford Ruether, Sexism and God-Talk, Beacon Press, Boston, 1983, p. 44.]

A questão aparece: por que foi o homem na experiência Indo-Européia que buscou separação e domínio, e não a mulher? Ou as mulheres compartilharam as mesmas ambições, mas simplesmente perderam por causa da disparidade na força física? Susan Brownmiller parece estar dizendo que a dominação masculina está relacionada a características anatômicas que permitiram ao humano homem violar a humana mulher. *
[ * — Susan Brownmiller, Against Our Will, Bantam, New York, 1976, p. 4.]

Engels oferece uma análise materialista que liga o domínio masculino à origem da propriedade privada. Essas explicações não são específicas da cultura [culture-specific]. O conceito de asili exige que estejamos acima de toda especificidade cultural.

Na nossa análise, a dominação masculina tem uma história específica na cultura Européia e está ligada às outras formas culturais de uma maneira exclusivamente Européia. Esse fenômeno não deve ser entendido como um [fenômeno] universal, porque, embora possa ter aparências semelhantes em diferentes culturas, o grau de intensidade varia assim como a relação com o asili da cultura. Talvez a resposta à pergunta que se coloca é que separação e domínio são, elas próprias, ​​parte de uma abordagem “masculina” ou “patriarcal” da realidade, e que essa abordagem se tornou associada para os Europeus com a masculinidade de gênero. De fato, argumentei que separação, oposição, e domínio são característicos do utamawazo e da mitoforma Europeus. Isso confere o que Eric Neumann chamaria de “consciência patriarcal” à cultura. Essa consciência é direcionada para controle, distância, e análise ou divisão, e tende a ser ameaçada pela natureza matriarcal da consciência. Neumann diz: “Um desenvolvimento fundamental tem sido expandir o domínio da consciência patriarcal e atrair tudo o que poderia ser adicionado.” * A natureza patriarcal da cultura Européia neste sentido profundo como parte de seu asili explica muitos aspectos de seu desenvolvimento; por exemplo, por que a tradição abraçou a teoria Freudiana, mas relegou o pensamento Junguiano às suas margens lunáticas.

[ * — Erich Neumann, “On the Moon and Matriarchal Consciousness,” in Fathers and Mothers: Five Papers on the Archetypal Background of Family Psychology, Spring Publications, Zurich, 1973, p. 55.]

Em outras culturas onde encontramos padrões de opressão feminina, esses padrões não têm o mesmo posicionamento ideológico na cultura do que na tradição Européia e, portanto, não são tão fortes. Eles coexistem em tensão com filosofias matriarcais, muitas vezes sistemas de descendência matrilineares, tradições de liderança feminina e fortes padrões de cooperação e associações entre mulheres. * A literatura e ideologia do feminismo Europeu atingem essas culturas para inspiração intelectual e a criação de um novo eu feminino, ou tentam competir com a natureza patriarcal da tradição Européia, negando o feminino e buscando dominar o masculino.

[ * — Ifi Amadiume, Afrikan Matriarchal Foundations, Karnak House, London, 1987.]

Mas o modo analítico não se limita ao gênero masculino, e os homens não necessariamente carecem de espiritualidade. É a cultura que tende a criar o domínio da consciência patriarcal em ambos os sexos, ou seja, em todos os que participam nela. O que deve se aprender com a filosofia Africana e outras filosofias não-Européias é o princípio da complementaridade aposicional [appositional complementarity]. * Não é uma questão de qual gênero domina, nem de se todos podem se tornar “masculinos” (isto é, assumir a posição dominante), antes é uma questão de saber se a nossa visão da existência dita a necessária cooperação de princípios “femininos” e “masculinos” para o sucesso e continuidade do todo.

[ * — Iva Carruthers, “Africanity and the Black Woman,” in Black Books Bulletin, 1980, Vol. 6, No. 4, pp. 14-20.]

Platão foi muito claro sobre esta questão, mas ele estava simplesmente desenvolvendo o asili Indo-Europeu em sua forma intelectual e ideológica. Os homens não só eram superiores, mas eles eram superiores de maneiras que demandavam seu controle sobre as mulheres. Eles eram mais racionais, críticos e inteligentes, mais capazes de compreender verdades mais elevadas. Somente os homens poderiam ser filósofos. Na verdade, as mulheres nem sequer eram qualificadas para serem suas amantes. *

[ * — Platão, Simpósio, Os Diálogos de Platão, Vol. I, trad. Benjamin Jowett, Random House, New York, p. 185:192.]

Mas se aceitarmos para o momento uma análise Junguiana, as características pelas quais a prole Européia era, de fato, “masculina”: frieza, controle, pensamento oposicional. Mesmo as mulheres que conseguem esses termos são incompletas, já que a cultura está em contínuo estado de desequilíbrio por causa do desenvolvimento “desequilibrado” [“lopsided”], uma vez que o asili não se baseia no princípio da complementaridade ou da totalidade, mas sim no domínio e na destruição.

[ * — Platão, Simpósio, Os Diálogos de Platão, Vol. I, trad. Benjamin Jowett, Random House, New York, p. 185:192.]

O Europeu não tem outra opção senão ser “masculino” em termos de auto-imagem positiva. Não é acidental que o termo para uma pessoa masculina, “homem,” se torne o termo em línguas Européias para todos os seres humanos. Isso resulta da distinção inicial Europeia de eu/outro, onde o masculino é o “eu” [“self”] e o “feminino” é o outro.
Michael Bradley diz: “Os sexos Caucasóides nunca se acostumaram realmente um com o outro, nunca se confiaram completamente.” *

[ * — Michael Bradley, The Iceman Inheritance, Warner Books, New York, 1978, p. 123.]

Isto, ele diz, é devido ao dimorfismo sexual extremo exigido pelo desenvolvimento Neandertal como uma adaptação ao ambiente glacial. Os Caucasóides, ele argumenta, descem dos Neandertais. Bradley considera que os homens são mais territorialmente assertivos e, uma vez que a categoria de tempo era abordada “territorialmente” pelos Neandertais, os homens temiam as mulheres como portadoras de crianças que os substituiriam posteriormente. *

[ * — Michael Bradley, The Iceman Inheritance, Warner Books, New York, 1978, p. 123.]

Voltaremos à análise de Bradley em um capítulo posterior. O que já é aparente, no entanto, é que esta tem muitos furos, mas ela aponta para o reconhecimento de que as relações e diferenças masculino/feminino são problemáticas para os Europeus, e que isso está de alguma forma relacionado com a extrema agressividade da cultura.

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“Homem Científico”

O Europeu é “homem cientifico.” Para eles, isso implica a essência da universalidade, objetividade e capacidade de ser crítico e racional. “Homem científico” não conota, para a mente Européia, simplesmente a pessoa que se dedica à atividade científica. Para eles, o termo indica um estado de espírito e de ser: uma maneira de olhar para o mundo. Uma vez que a ciência assume uma qualidade mágica na cultura Européia, o uso de sua metodologia pode conferir valor ao indivíduo. O homem científico é “aquele” que aborda o universo com uma atitude particular. A atitude da ciência é um veículo pelo qual o mundo é consumido. Ciência para o Europeu é sinônimo de “conhecimento,” e esse “conhecimento” é a representação do poder. O conhecimento científico é a capacidade de controlar, manipular e prever os movimentos de pessoas e outros “objetos.” Na verdade, os Europeus se vêem como esse “homem cientifico” que manipula o mundo ao “seu” redor [he who manipulates the world around “him”].
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O Problema do “Cientista Louco”

De acordo com a auto-imagem Européia, o “homem científico” está em uma posição desejável, pois ele é, acima de tudo, lógico — remoto e imparcial [detached]. Mas isso não é o mesmo que ser “um cientista.” Um cientista, em termos da imagem Européia, é aquele que se invólucra na ciência. Ele está totalmente imerso no laboratório e usa “óculos” especiais que lhe permitem ver apenas o seu trabalho — os “objetos sobre os quais ele experimenta.” Esta imagem tem um lugar especial no ego cultural Europeu. Esses “cientistas” são relegados para uma parte muito pequena da personalidade coletiva, mas, em um nível inconsciente, esta personalidade é identificado com uma tendência característica de toda a cultura. É uma parte do eu [self] que os Europeus se percebem como sendo; mas eles não querem se tornar nem se identificar com esta.

Nesse sentido, ela não faz parte da auto-imagem Européia como um autoconceito “positivo.” Ela é o único aspecto de sua cultura perante o qual eles expressam ambivalência e possível medo. Um veículo importante para a expressão desse medo é o filme de “terror.” O tema recorrente do “cientista louco” na fantasia de pesadelo Européia é uma expressão do medo e reconhecimento de que, de alguma forma, é a asili Européia que produz tal loucura em todos os “Europeus.” A loucura desta caracterização não é a confusão emocional de um ser humano excessivamente sensível que se recusa a acomodar-se à desumanidade da vida contemporânea (bem o contrário), nem é a de um indivíduo enfraquecido e deprimido. Não é nada causado pela fragilidade humana comum. É uma loucura culturalmente induzida causada pela própria ausência de humanidade.

Na trama típica encontra-se a mesma pessoa. Ele (sempre masculino) é comprometido apenas com seus experimentos e não os impededirá, independentemente do perigo que eles impliquem para a comunidade. O que o excita são as implicações de ele ser capaz de controlar e manipular alguma parte da natureza que anteriormente estava intocada, talvez algo sagrado. Isso, ele insiste, é “ciência” e “progresso.” Como ele é tipicamente retratado, esse homem não pode amar, não tem amigos, torna-se surdo às admoestações daqueles ao seu redor. Ele perde a habilidade até mesmo para entender o que eles estão dizendo. Ele é um fanático no sentido mais completo do termo. Este é o Dr. Frankenstein (retratado em filmes de 1920, 1932 e 1941). O Dr. Jekyll e todos os outros não infames o suficiente para serem conhecidos pelo nome, mas sempre lá. The Deadly Mantis (1957); Dr. Cyclops (1940); A Ilha do Dr. Moreau (1977); The Thing (1951); Alien (1979, o vintage mais moderno) — o tema não “sai de moda,” mas continua a fornecer material para o “thriller” [“suspense”] de ficção científica Europeu/Americano.

Um estudo etnológico intensivo de tais filmes por si só, sem dúvida, proporcionaria informações valiosas sobre a natureza da psique Européia. Mas, infelizmente, todos os “cientistas loucos” não são tão bizarros como esses filmes os retratam. Há aqueles que tiveram compromissos culturais/filosóficos profundos. Há uma certa “loucura” mesmo no fanatismo e na unidireção de homens como Platão, Aristóteles, Agostinho, e Tomás de Aquino. Todas as pessoas mais ideologicamente influentes no desenvolvimento Europeu tiveram essa dedicação fanática, quer para a sistematização total ou para as visões do que o mundo deveria ser e uma determinação para torná-lo dessa maneira — monolítico e consistentemente Europeu. Este parece ser o único aspecto da auto-imagem Européia que pode ser percebido como negativo-indesejável. Eles querem ser racionais, críticos, objetivos, universais e científicos; mas eles não estão certos de que querem ser “o cientista.” Eles sentem de alguma forma que, nesse racionalismo frio, eles perderão o controle. O pesadelo do eu [self] que eles imaginam, portanto, é que eles perderam completamente sua humanidade e se tornaram monstruosos (pois é o cientista louco que é o “monstro” nesses filmes de monstro). A realidade do pesadelo é que a natureza da cultura Européia é tal que esse monstro pode e ganha o poder de pôr em perigo a vida daqueles não só em sua cultura mas em todo o mundo.
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“Homem Civilizado”

Os termos “moderno” e “civilizado” são também aqueles com os quais os Europeus se descrevem. Eles representam o epítome do valor na escala de “progresso;” sua própria interpretação e descrição de valor e a abstração à qual o empreendimento humano está mais propriamente comprometido. Se isso for mantido em mente, torna-se mais fácil reconhecer instâncias em que os Europeus estão se descrevendo, mesmo que eles lutem, e geralmente tenham sucesso, para fazer parecer que eles estão fazendo de outra forma. Esta é a manifestação mais comum do nacionalismo/imperialismo cultural Europeu.

Certamente, o historiador Harry Elmer Barnes afirmaria que ele está sendo “objetivo” na declaração a seguir:

Do ponto de vista intelectual, então, um homem, é um [homem] moderno, se ele pensa de forma lógica e adquire sua informação através dos métodos indutivos de observação e experimentação. Na medida em que ele acredite em causalidade sobrenatural, pense de forma ilógica e não se apoie em fatos cientificamente verificados, seu pensamento é de um aspecto primitivo, quer ele seja um graduado de uma Universidade Norte-Americana líder no segundo terço do século XX ou um bosquímano analfabeto. *

[ * — Harry Elmer Barnes, An Intellectual and Cultural History of the Western World, Vol. I, 3rd ed., Dover, New York, 1965, p. 43.]

Em termos de uma retórica científica Européia, a última frase é prova da validade  e objetividade universais de sua afirmação. Para Barnes, é a indicação de que ele não está manifestando Eurocentrismo. Enquanto suas observações se aplicam “universalmente,” elas são “científicas” e “racionais,” não “emocionais” ou “políticas.” O fato é, obviamente, que a frase em questão não altera o impacto nacionalista da declaração. A imagem positiva em sua mente é, sem dúvida, a do graduado de uma universidade líder que se esforça com todas as suas forças para pensar de uma forma lógica, enquanto representando a antítese do “bosquímano analfabeto.” Barnes continua,

Tão poderoso é o aspecto místico ou religioso da mente pré-alfabetizada que, em muitos aspectos, a civilização avança apenas no grau em que o homem se livra do feitiço do sobrenatural, abandona seu animismo, tabus, fetiches, totens — assim como uma criança em crescimento abandona seus brinquedos — e apoia-se em seu intelecto e observações para interpretar as diversas manifestações da natureza e as atividades de sua própria psique.*

[ * — Ibid, p. 53.]

Aqui deve-se ler: “Somente na medida em que eliminamos a religião e a filosofia Africanas, conseguimos disseminar nossa cultura, pois nós, os Europeus, confiamos na inteligência, em vez do misticismo, e somos, portanto, adultos, maduros e [estamos] no controle de nosso destino.”

William Schockley diz que as pessoas pretas são geneticamente menos inteligentes do que as pessoas brancas; Quão diferente é isso das implicações da afirmação de Barnes? Schockley perde na eficácia, [ele] é até mesmo vaiado por estudantes universitários e não tem permissão para falar, porque ele usa os termos de “raça.” O trabalho de Barnes, por outro lado, é considerado um material sólido e respeitável para o ensino de um curso sobre a História da Civilização Ocidental, um curso básico exigido para a maioria dos estudantes de graduação na Europa e na Euro-América. Ao usar termos “universalistas” e “objetivos” — os termos do desinteresse — Barnes consegue proselitisar a visão de mundo Européia, onde Schockley falha. Talvez seja Barnes que é mais nacionalista. No exame da dinâmica e da natureza da cultura Européia, é imperativo comparar a função do termo “civilizado” com a idéia de “branquitude” [“whiteness”]. Eles funcionam da mesma maneira: mas um oculta o compromisso Europeu, enquanto o outro o confessa. Aqueles que são críticos estariam muito menos chateados com as teorias de Schockley, Jensen, e outros, se eles simplesmente as considerassem como declarações da auto-imagem Européia e características valorizadas expressas nos termos do utamawazo Europeu. Em outras palavras, esses Europeus devem ser entendidos como estando a falar de si mesmos e de sua cultura; e, portanto, fornecendo material valioso estivermos interessados em examinar a vida mental e emocional Européia.

Essas características às quais os Europeus aspiram e às quais eles se vinculam têm a ver com seu desejo de poder e a maneira como eles interpretam o poder. O poder vem do controle — a capacidade de “objetivar,” manipular, e prever. E essas manifestações intelectuais de poder têm sua contrapartida no auto-retrato Europeu, na imagem de seu comportamento na arena política internacional. MacDougall cita Lord MaCaulay como se vangloriando de que a história da Inglaterra ” é enfaticamente a história do progresso.” Os Ingleses “tornaram-se o povo mais excelente e mais altamente civilizado que o mundo já viu.” * Isto foi reiterado por uma multidão de nacionalistas Europeus ao longo do século XIX.

[ * — Hugh A. MacDougall, Racial Myth in English History, Harvest House, Montreal, 1982, p. 91.]

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“O Conquistador”:  Expansionismo
no Utamaroho Europeu

Em um discurso exortando o Presidente McKinley a manter as Filipinas, Albert J. Beveridge disse sobre o controle dos Estados Unidos,

Isso significa oportunidade para toda a gloriosa juventude da república — a mais viril, ambiciosa, impaciente e militante juventude que o mundo já viu. Significa que os recursos e o comércio desses domínios imensamente ricos serão aumentados tanto quanto a energia Americana é maior do que a preguiça Espanhola; Pois os Americanos daqui em diante monopolizarão esses recursos e esse comércio. *

[ * — Citado em Paul Jacobs et al, To Serve the Devil, Vol. II, Vintage, New York, 1971, pp. 333-335.]

O exercício deste poder, que os Europeus atribuem a si mesmos e que eles continuamente buscam, é manifestado na habilidade — não no mandato — de conquistar tudo o que eles encontram. Sua avaliação de si mesmos inclui seu direito de nascimento [birthright] para conquistar, não apenas aquilo com o que eles entram em contato, mas aquilo que eles procuram — novas terras, natureza, pessoas. Esta atividade de “conquistar” é sancionada pelo utamaroho Europeu que fornece uma espécie de justificativa moral para ela. Esta característica pode ser rastreada a partir da antiga herança Indo-Europeia da cultura. O utamaroho conquistador abriga as intrínsecas tendências agressivas. A própria cultura redireciona essas tendências como “energia progressiva.” A destrutividade torna-se a reconstrução do mundo na auto-imagem conquistadora. Esta característica ajuda a determinar o comportamento Europeu em relação a outros povos. A passagem citada de Beveridge (escrita na década de 1890) expressa a mesma convicção e autoconceito que os discursos de Ronald Reagan em 1988, os de Richard Nixon em 1974, os de Bush em 1990, os dos papas Católicos durante as Cruzadas, e os dos oradores Romanos no “Ocidente” Arcaico. A história da Europa Ocidental tem muitos exemplos. A história da Europa Ocidental abunda em tais exemplos. A consistência e o poder deste utamaroho é formidável, tendo sido expressado simbolicamente há pelo menos 2500 anos atrás no mito Persa (Iraniano) de Yima, considerado o primeiro líder do povo Ariano, que foi nomeado pessoalmente por Ahura Mazda, o deus da ” luz” e “bondade,” para “governar o mundo.” *

[ * — Merlin Stone, Three Thousand Years of Racism, New York Sibylline Books, New York, 1981, p. 21.]

Os seguintes são excertos de um discurso pronunciado em Roma no século II. É um elogio oferecido por Aristides, um orador profissional, para Roma, “a cidade eterna.” É evidência do utamaroho Romano: de como eles viam a si mesmos, e das características das quais eles mais se orgulhavam. Mikhail Rostovtzeff disse que este discurso é uma das fontes mais importantes de informação sobre as idéias políticas e a mentalidade da época de Antoninos.

. . . Se alguém olha para todo o império e reflete sobre como uma fração tão pequena governa o mundo inteiro, ele pode se surpreender com a cidade, mas quando ele viu a cidade, ele não pode mais se surpreender com o fato de que todo o mundo civilizado é governado por uma tão excelente. (Seção 9)

Sua posse é equivale ao que o sol pode passar sobre, e o sol passa sobre sua terra. Nem os promontórios Chelidoneano nem Cieniano [Cyanean] limitam seu império, nem a distância a partir da qual um cavaleiro pode chegar ao mar em um dia, nem você reina dentro de limites fixos, nem outro determina em que ponto seu controle atinge; Mas o mar como um cinto se estendeu, ao mesmo tempo no meio do mundo civilizado e da sua hegemonia. (Seção 10)

. . . o atual império foi estendido para fronteiras sem distância média, de modo que, de fato, não se pode medir a área dentro delas. Pelo contrário, para aquele que começa uma jornada para o Oeste a partir do ponto em que nesse período o império dos Persas encontrava seu limite, o resto é muito mais do que a totalidade de seu domínio, e não há seções que você tenha omitido, nem cidade, nem tribo, nem porto nem distrito, exceto possivelmente alguma que você condenou como sem valor. O Mar Vermelho e as Cataratas do Nilo e do Lago Maeotis, que anteriormente se diziam nos limites da terra, são como as paredes do pátio para a casa que é sua cidade. Por outro lado, você explorou o Oceano. Alguns flutuaram ao redor da terra; Eles pensaram que os poetas haviam inventado o nome e o introduziram na literatura por mero entretenimento. Mas você o explorou tão completamente que nem as ilhas nele escaparam. (Secções 23, 24)*

[ * — Aristides, “To Rome,” in History of Western Civilization: Selected Readings, Supplement, University of Chicago Press, Chicago, 1958, pp. 18, 19, 23, 24.]

O que é que faz com que Aristides e sua platéia Romana sintam auto-orgulho? Que apenas uma pequena fração dos homens do mundo governa o resto; que este resto são seus “sujeitos” — a quem governam com perfeição. Seu império se estende até onde eles podem conceber; império conota “tudo em meu poder.” O que está associado a eles é todo o mundo “civilizado”; ou seja, “tudo de valor no mundo.” O que resta, só é de valor naquilo em que possa ser usado por eles. Estes são os sonhos, ambições e imagens que compõem o utamaroho Europeu. O mesmo hoje como quando Aristide fez esse discurso.

Essa auto-imagem como o conquistador de todo o imaginável manifesta-se no desejo de se espalhar por sobre tudo o que vêem (o Sol nunca se põe no Império Britânico); Desta forma, aquilo que eles controlam torna-se uma extensão de si mesmos. A auto-imagem Européia se traduz em expansionismo fanático — insaciável e ilimitado. Eles continuamente procuram novas terras, pessoas, objetos para conquistar e, ao fazê-lo, expandir seu ego cultural simbolicamente — até que tudo se relacione com a imagem deles (ou espelhando-a ou sendo seu reverso). Não é acidental que o Europeu fale de “conquistar o espaço.” Este utamaroho expansionista tem sido consistentemente uma parte do ego cultural e da auto-imagem desde os tempos Romanos até a vida Americana contemporânea, obrigando-os a consumir o universo.

Nas palavras de Joel Kovel,

O Ocidente tornou-se intoxicado com a idéia do espaço distante, que foi representada no sonho de um Novo Mundo (e hoje, um novo universo) a ser conquistado.

Aqui estava a síntese nuclear do homem e seu mundo que poderiam se estender ao infinito.

A imensa paisagem, estendendo-se interminavelmente e atraindo os Americanos para seus horizontes à sumir de vista, tornou-se um nutriente simbólico.

Ela tornou-se representada interiormente como a idéia de amplitude [spaciousness], uma expansividade de estilo pessoal; uma sensação interna de vazio que se combinaria com a brancura da pele do colonizador na concepção de um eu [self], puro e ilimitado, um eu que tem o direito, a necessidade e o destino manifesto de dominar o continente e os povos mais escuros sobre este. Um eu [self] cresceu neste solo simbólico, que poderia dividir abstratamente o seu universo tão facilmente quanto ele separa [cleave] a terra desestruturada. *

[ * — Kovel, pp. 133, 144, 182.]

 

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“Salvador do Mundo”

Somente o Ocidente desenvolveu religião teísta e providencial . . . a crença de que Deus trabalha ativamente na história para aperfeiçoar o mundo . . . Os ocidentais foram obrigados a levar a sério a mudança social e a história e acharam natural considerarem-se como agentes da Providência que se esforçavam para aperfeiçoar a sociedade temporal.” *

[ * — Norman Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. I, Scott, Forsman, Atlanta, 1969, p. 4.]

Consistente com a auto-imagem como “conquistador do mundo” é o mandato autoproclamado Europeu para salvar o mundo. Esta imagem é encontrada de forma bastante explícita nas formulações religiosas Européias e, portanto, nas fases iniciais do desenvolvimento Europeu. Embora o Judaísmo não tenha procurado incluir o mundo em sua declaração nacionalista, ele contém uma declaração da obrigação para a humanidade de fornecer o exemplo apropriado que seria, portanto, a salvação do mundo. Assim, começa o imperativo do utamaroho Europeu — a “voz” que diz ao Europeu que ele é de alguma forma “especial,” que ele tem qualidades e conhecimentos superiores que o obrigam a suportar o fardo de orientar aqueles menos afortunados do que ele (o resto de o mundo). A afirmação Cristã é o epítome desta imagem e, de fato, apresentou um “salvador mundial” ao mundo. Este aspecto do utamaroho Europeu implica a idéia de superioridade Européia; ele não implica altruísmo, como tem sido mal interpretado. Os Europeus são eles mesmos o “Cristo,” que salvaria o mundo e cujas qualidades são superiores o suficiente para permitir que eles se mantenham como um modelo para todos nós imitarmos.

A expressão desse aspecto do utamaroho Europeu sob a forma de ideologia Cristã tornou-o mais aceitável e sutil — mais eficaz entre aqueles que deveriam ser “salvos.” As implicações da superioridade e da auto-imagem do salvador do mundo são uma parte da atividade missionária assim como são [uma parte] do utamaroho expresso no conceito de Kipling do ” fardo do homem branco.” Philip Curtin diz: “O sentimento conversorista de meados do século [dezenove] e de curadoria[trusteeship] no final [do século] eram duas maneiras de avaliar os objetivos adequados para os povos não-ocidentais.”.*

[ * — Philip Curtin, The Image of Africa, University of Wisconsin Press, Madison, 1964, p. 415.]

A arrogância e a presunção na auto-imagem Européia em relação ao resto do mundo são evidenciadas nas expedições expansionistas que eles empreenderam. Seja nos estágios iniciais ou contemporâneos do seu império em desenvolvimento, os Europeus, na melhor das hipóteses, se relacionaram com o resto do mundo com paternalismo. Curtin diz:

Naquela grande era do imperialismo, o racismo tornou-se dominante no pensamento Europeu. Poucos acreditavam que qualquer “raça inferior” pudesse realmente alcançar as alturas da realização Ocidental. Sua salvação seria alcançada de alguma outra maneira; Mas enquanto isso eles tinham direito, em sua inferioridade, à proteção paterna de um poder Ocidental. A idéia de curadoria [trusteeship] gradualmente substituiu a de conversão.*

[ * — Ibid.]

Joel Kovel oferece sua própria interpretação psico-cultural desta imagem de “salvador” e suas implicações para o relacionamento político Europeu com os outros. Kovel diz,

Quando o oficial da Marinha descreveu a obliteração Americana de uma cidade no Vietnã, explicando que “nós tivemos que destruir a cidade a fim de salvá-la,” não estava ele expressando sob a forma sucinta dada por uma situação tão extrema, a pura e nuclear fantasia subjacente à história Ocidental — salvar e destruir, incluir e extrudar?*

[ * — Kovel, pp. 164-165.]

O que ele refere é que o “salvamento” Ocidental significava uma “conquista,” a posse e a destruição, até que o que o mundo mais precise seja ser salvo do insaciável apetite e egoísmo do Europeu.

O utamaroho Europeu permite às pessoas experimentarem uma ideologia intensa de supremacia cultural e racial como [sendo] “beneficência” e “altruísmo.” Isto, em essência, é a mensagem a ser extraída de um exame da auto-imagem Européia. Os Europeus não apenas cometem atrocidades contra outros povos e depois as racionalizam na expressão nacionalista; eles parecem acreditar que têm o direito e a obrigação de “pensar” e “agir” — tomar decisões morais — para outros povos e, portanto, cometer tais atrocidades. Como vimos no Cap. 1, o utamawazo Europeu permite que eles “acreditar” nisso. O utamaroho Europeu é um fenômeno etnológico único e explica a intensidade do comportamento cultural Europeu/Euro-Americano.

Yehoshua Arieli diz:

Este nacionalismo Protestante adotou teorias raciais peculiares. A legitimação do direito à conquista e a teoria do destino manifesto, sempre que pregadas pelos Americanos, aceitavam até certo ponto a idéia da superioridade da “raça” Anglo-Americana como uma força progressiva que deveria impor a liberdade a toda a humanidade. O conceito da Nova Inglaterra sobre a natureza da missão Americana combinou o universalismo e o nacionalismo em uma ideologia que representava suas próprias realizações por uma teoria da raça e ainda acreditava que seus padrões de vida poderiam ser impostos aos outros. A raça Anglo-Americana tinha o dever de transmitir o padrão de vida que ela desenvolveu para o mundo inteiro, a fim de promover o Cristianismo puro. A expansão da nação Americana foi o meio pelo qual a Providência promoveu a causa da religião e a propagação da fé pura.*

[ * — Yehoshua Arieli, Individualism and Antionalism in American Ideology, Penguin Books, Baltimore, 1966, pp. 250-251.]

Arieli, citando Horace Bushnell em Christian Nurture, oferece esses exemplos:

Qualquer pessoa que seja fisiologicamente avançada . . . certamente renegará e, finalmente, viverá melhor que seu inferior (sic). Nada pode salvar a raça inferior, exceto uma assimilação pronta e flexível . . . E se fosse o plano de Deus povoar o mundo com um material melhor e mais refinado. Certamente é . . . (seu plano) que exista um tremendo aumento imperioso de poder nas nações Cristãs, que . . . inevitavelmente submergirão e enterrarão . . . (as [nações] menos capazes) para sempre.”

Os Anglo-Saxões e Anglo-Americanos, de todas as raças modernas, possuem o caráter nacional mais forte e o mais adequado para a dominação universal, e isso também não é um domínio do despotismo, mas um [domínio] que faz de seus súditos cidadãos livres. Neles . . . o impulso para a liberdade e o sentido da lei e da ordem estão inseparavelmente unidos, ambos assentam-se numa base moral.” *

[ * — Yehoshua Arieli, Individualism and Antionalism in American Ideology, Penguin Books, Baltimore, 1966, pp. 250-251.]

Este é precisamente o mesmo sentimento, humor e convicção que Aristides expressou em favor dos Romanos. A auto-imagem Romana como “conquistador mundial” e “salvador [mundial]” nasce de um ego que não se confina às limitações de uma cultura, uma nação, ou mesmo de um continente, mas de um ego que vê seus limites como ultra-universais. Esta é a contrapartida da auto-imagem intelectual do Europeu como “homem universal.” Ele é “universal” em sua liberdade do apego e objetividade emocionais, por virtude de sua abordagem científica e uso da “lógica;” Ele, portanto, tem o direito de se espalhar universalmente para “iluminar” o mundo.

Aristides diz:

Para Roma, vocês que são “muito grandes” distribuíram sua cidadania. Não foi porque você [Roma] se afastou e se recusou a compartilhar esta [cidadania] com qualquer um dos outros que você fez de sua cidadania um objeto de maravilha. Pelo contrário, você buscou a sua expansão para ser o rótulo, não de associação [membership] em uma cidade, mas de uma nacionalidade comum, e esta não é apenas uma entre todos, mas uma equilibrando todo o resto. Pois as categorias nas quais você agora divide o mundo não são entre Helenos e Bárbaros, e não é absurda a distinção que você fez, porque você mostra-lhes uma cidadania mais numerosa, por assim dizer, do que toda a raça Helenística. A divisão que você substituiu é uma entre Romanos e não-Romanos.*

[ * — Aristides, Section 88, pp. 31-32.]

E assim, de fato, o mundo se tornou dividido em “Europeus” e “não Europeus,” o valorizado e o não valorizado, o digno e o indigno.

Os Europeus, acima de tudo, se vêem como os “grandes organizadores,” os forjadores da ordem a partir do caos. Eles não reconhecem a ordem que eles encontram na natureza e em outras culturas, e assim eles impõem a sua própria onde quer que vão. (Ele não é um homem “religioso” no sentido fenomenológico em que Eliade usa este termo e, portanto, para ele, o mundo não se apresenta como “cosmos” — mas apenas caos, que ele deve transformar em uma ordem artificial, desacralizada e totalmente racional.”) *

[ * — Mircea Eliade, The Sacred and the Profane, Harcourt Brace, New York, 1959, p. 116ff.]

A terra e as pessoas (e até o espaço) não estão conquistadas até que estejam assim ordenadas; O Cristianismo é, acima de tudo, um “ordenamento” do indivíduo. E são os militares na cultura Européia que representam o epítome desse tipo de ordem. Aristides diz novamente,

Em relação à ciência militar, além disso, você fez todos os homens parecerem crianças. . . . Como um fio na máquina de fiar que é continuamente extraído de muitos filamentos em cada vez menos mechas, os muitos indivíduos de suas forças [militares] sempre se juntam em cada vez menos formações; e assim eles alcançam sua completa integração em todos aqueles que estão, em cada ponto, colocados no comando, um sobre os outros, cada outro acima de outros ainda, e assim por diante. Isso não se eleva isso acima do poder de organização do homem? *

[ * — Aristides, pp. 38-39.]

Abaixo, Philip Curtin descreve a Expedição Britânica ao Níger. Ele exemplifica o humor, a presunção e o utamaroho que estamos descrevendo, a peculiar auto-imagem Européia:

A expedição do governo navegou em abril de 1841 com um clima de grande esperança. Todos os cuidados foram tomados. Os vapores foram especialmente construídos e colocados sob o comando de oficiais navais experientes. Eles também deveriam assinar tratados comerciais anti-escravidão com as autoridades Africanas e estabelecer um ou mais postos comerciais, além de uma “fazenda modelo” em terras compradas dos Africanos na junção do Níger com o Benue. O governo forneceu os navios. A African Civilization Society forneceu a equipe científica. Os representantes da Sociedade Missionária da Igreja enviados, organizados como uma empresa privada, assumiram a responsabilidade pela fazenda modelo.*

[ * — Curtin, p. 303.]

A suposição subjacente a este esforço é que o Europeu tem o direito e o dever de navegar para terras estrangeiras; nenhuma terra é de fato “estrangeira” para eles. A expedição ao Níger foi nada mais do que uma invasão (felizmente para os Africanos, neste caso de qualquer forma, esta falhou). Mas para aqueles que participaram nela, esta era uma “missão de misericórdia.” Para os Europeus, não há terras que pertençam à outros. Toda a terra e espaço (ar e água) pertencem a eles. E como eles trazem “ordem,” eles trazem “paz.” Aristides diz novamente sobre as realizações de Roma:

. . . Antes de seu império, havia confusão em todos os lugares e as coisas seguiam um curso aleatório, mas quando você [Roma] assumiu a presidência, a confusão e a disputa cessaram, e a ordem universal entrou como uma luz brilhante sobre os assuntos privados e públicos do homem, as leis apareceram e os altares dos deuses receberam a confiança do homem . . . agora, uma clara e universal liberdade de todo o medo foi concedida tanto ao mundo como a quem vive nele.*

[ * — Aristides, p. 43.]

E assim o Europeu se torna o pacificador do mundo. torna-se a sua missão trazer “paz” e “liberdade” a todos pela imposição de sua ordem. Pax Romanus é a “ordem mundial Romana,” assim como o objetivo Americano da paz significa tanto controle pelos Estados Unidos quanto possível. Em um discurso proferido em 4 de abril de 1973, Nixon disse: “somente a América tem o poder de construir a paz.” O utamaroho que inspirou esta declaração é precisamente o mesmo que aquele ao qual Aristides responde em seu hino à Roma no século II. Esses homens representam a mesma tradição cultural e são ambos defensores nacionalistas dessa tradição.

 

RAÇA E IDENTIDADE NACIONAL

A criação de uma consciência nacional tem sido um componente crucial do sucesso Europeu, devido à preeminência de definições políticas na natureza do utamaroho Europeu. Consciência pressupõe identidade. A questão da identidade nacional é essencial. Nenhum grupo de pessoas percebeu isso mais do que os historiadores Europeus.

O que o pensamento Platônico, o Cristianismo, e a ciência fizeram pela unificação da Europa é complementado pelo que os historiadores da Europa contribuíram para a mitologia das origens raciais e nacionais dos povos Europeus. Hugh MacDougall começa seu livro Racial Myth in English History [Mito Racial na História Inglesa] dizendo: “Os mitos de origem permitem que as pessoas se localizem no tempo e no espaço.” Isso é verdade para a maioria das culturas, mas uma simplificação excessiva no caso da experiência Européia, como demonstra o livro de MacDougall. Os mitos de origem para os Europeus têm funcionado de forma mais significativa para justificar e inspirar o comportamento imperialista em relação aos povos não-Europeus.

A auto-imagem nacional Européia tinha que servir e apoiar o utamaroho e a ideologia Europeus. Sua construção foi parte de um longo e lento processo, aparentemente desigual às vezes, já que cada nacionalidade Européia se imergiu dentro dos parâmetros limitados de seus próprios limites definidos. Mas mesmo este processo competitivo alimentou a construção de uma maior consciência nacional Européia e a auto-imagem da qual esta dependia. A história cultural Européia, entendida da perspectiva do conceito de asili, revela a centralidade do mito e da criação de mitos para o sucesso político (neste caso, o imperialismo). O que é essencial para a experiência Européia nesse sentido é o mito da origem nacional/racial. E, mesmo em mitos concorrentes dos Alemães, Franceses, Ingleses, Italianos e Espanhóis, podemos identificar certos temas comuns que, eventualmente, cristalizaram-se em e emergiram como uma monolítica e poderosa auto-imagem Européia “preferida.”

Em seu livro The Aryan Myth [O Mito Ariano], Leon Poliakov se concentra no que ele chama em uma passagem, “Germanomania.” *

[ * — Leon Poliakov The Aryan Myth: A History of Racist and Nationalist Ideas in Europe, trans. Edmund Howard, New American Library, New York, 1974, p. 82.]

Desta forma, ele descreve o que talvez seja o mito de origem nacional mais comum entre os Europeus: descendência “Ariana.” No começo, mesmo a obsessão com as origens Alemãs foi colorida por uma atribuição à mitologia Bíblica, e todas as nações Européias afirmaram que seu povo descendia de Jafé. Mesmo Martinho Lutero até o início do século XVI disse que o povo Alemão descendia de Ashkenaz, que foi o primogênito de Gomer, que foi o primogênito de Jafé e Noé, que vieram diretamente de Adão. * Tais alegações eram comuns em toda a história Européia.

[ * — MacDougall, p. 344.]

Martinho Lutero, comemorado por sua inspiração de reforma religiosa, foi acima de tudo um nacionalista alemão rebelando-se contra o controle da Cristandade Latina. Ele comparou o Papa ao anticristo e deu voz aos sentimentos nacionais do povo Alemão, que se sentia explorado por Roma. Poliakov aponta que a Reforma Protestante também pode ser entendida, em parte, como uma reação Alemã ao Papado Italiano.*

[ * — Poliakov, pp. 82-83.]

Se o Cristianismo Ortodoxo, tendo servido seu propósito na criação do mito da superioridade Européia, agora era percebido como interferindo na realização do eu nacional Alemão, então ele tinha que se afastar. Séculos mais tarde, Adolf Hitler seguiria a mesma tradição, como a auto-imagem Alemã conflitava com a questão prática da unidade Européia. No desenvolvimento Europeu, era essencial que as pessoas, especialmente as lideranças, possuíssem uma imagem de si mesmas que lhes permitissem galvanizar suas energias no cumprimento de um destino imaginado. O controle Papal estava em conflito com a auto-imagem Alemã.

Em Espanha, Rússia e Inglaterra também, o desejo de se associar a uma herança Alemã era atraente. Esta associação tornou-se uma convicção que ajudou a inspirar os Europeus a buscar o poder sobre os outros. Poliakov diz que no início da história Européia, a ascendência Gótica era entendida como superior. “Os príncipes Cristãos da Espanha medieval, inspirados pela convicção de que eram Godos, fizeram todos os esforços para comportar-se como a prole de uma raça conquistadora.” *

[ * — Ibid, p. 14.]

O utamaroho Europeu exigiu identificação com o modo conquistador. “A antiga tendência na Espanha era superestimar o sangue Germânico e dar preferência à descendência de Magog sobre a posteridade indígena de Tubal.*

[ * — Ibid, p. 15.]

As primeiras reivindicações de descendência de personagens Bíblicos foram posteriormente substituídas por ideologias raciais e nacionalistas. “Durante o Renascimento, a influência da antiguidade começou a rivalizar com a das escrituras sagradas.” *

[ * — Ibid, p. 20.]

Na seguinte passagem do prólogo da Lei Sálica, escrita no século VIII, os Franceses traçaram um auto-retrato, chamando-se de “Francos” [“Franks”] por causa do prestígio com que eram consideradas as origens Alemãs: “raça ilustre, fundada pelo próprio Deus, forte em armas, firme em aliança,  sábia em conselho , de singular beleza e justiça, nobre e sonora em corpo, ousada, rápida e impressionante, convertida à fé Católica. . . ” * Desde o início, “pureza” [“fairness”] ou “branquitude” [“whiteness”]  era parte da auto-imagem Européia. Isso talvez seja parte do motivo pela obsessão com as origens Germânicas.

[ * — Citado em Poliakov, p. 18.]

O utamaroho Europeu muito cedo exigiu a criação de um mito nacionalista de superioridade. O mito inspiraria as pessoas ao que elas consideravam como sendo “grandeza.” A imagem auto-imagem Romana inicial sofreu em comparação com o que eles consideravam ser uma herança cultural Grega superior, e no segundo século antes da Era Cristã, eles procuraram se conectar com essa herança reivindicando descendência dos Troianos através de Eneias, a fundador mítico de Tróia. *

[ * — Ibid, p. 18.]

Séculos mais tarde, os Ingleses tentariam fazer o mesmo. Os Franceses queriam ser “Francos,” porque eles estavam convencidos, assim como outros Europeus, da superioridade das antigas “virtudes Germânicas.” Montesquieu escreveu que os antepassados Germânicos dos Franceses gozavam de uma tradição de liberdade e independência, um ingrediente da auto-imagem Européia que se tornaria endurecido na subestrutura ideológica da civilização. Os “antepassados” Germânicos dos Franceses eram honrados, corajosos e orgulhosos; “Eles enforcavam seus traidores e afogavam seus covardes.” *

[ * — Citado em Poliakov, p. 25.]

Poliakov diz que Montesquieu argumentou que as instituições do Parlamento Inglês eram dessa antiga origem Germânica e que os Franceses imitaram seu exemplo. *

[ * — Ibid, p. 25.]

Parece que a mentalidade Européia, desde o seu princípio nas hordas Indo-Européias do Norte, fez com que eles temessem estranhos e, portanto, reagissem ao seu medo com agressividade.* Era necessária uma disposição guerreira, ou então não se poderia desfrutar da “liberdade.” Este é o tema que surge repetidamente na auto-imagem do Europeu que se identificava com uma defensividade e desconfiança de outros que se traduziu em agressiva destruição/consumo de tudo o que era “outro”: o “amor à liberdade” e mandato para “liderar” os outros em “liberdade.”

[ * — Cheikh Anta Diop, The Cultural Unity of Black Africa (A Unidade Cultural da África Negra), Third World Press, Chicago, 1978.]

Uma interpretação Africano-centrada da história cultural Européia, usando a ferramenta analítica do conceito de asili, demonstra a centralidade do pensamento racialista, do mito racial na ideologia Européia. O conceito de superioridade racial está inextricavelmente entrelaçado na matriz do mito mítico Europeu. O pensamento racialista foi até sistêmico para o desenvolvimento Europeu. Ele complementa o comportamento capitalista, explorador, e agressivo; mas não é causado por esse comportamento. O racismo é endêmico ao chauvinismo Europeu, um fator consistente da história Européia. Baseia-se na natureza do utamaroho, ou seja, ameaçado pela diferença, essencialmente materialista e agressivo. É o utamaroho Europeu que cria o sistema do capitalismo, que por sua vez complementa a consciência nacional, um ingrediente do qual consiste o nacionalismo branco. Vemos esse padrão repetidamente no registro histórico/etnológico.

O desenvolvimento da Inglaterra como entidade nacional exemplifica o papel especial do pensamento racial na criação de uma identidade nacional na experiência Européia. A história da Inglaterra é a história da auto-imagem Européia, forçando-se na consciência da humanidade. Também demonstra o papel indispensável do historiador no processo e responde a questão de por que é importante criar primeiro o mito Europeu de uma história secular “objetiva” e “científica.” O mito cultural tinha que ser entendido como “fato” histórico. (Este é o problema que está subjacente à maior parte da interpretação Bíblica.)

Na Inglaterra do século XI e do século XII, o problema político era o de reunir os Bretões [Britons], os Anglo-Saxões e os Normandos em uma única nação; isto é, fazer com que esses grupos se identificassem como uma nacionalidade. Em 1136, Geoffrey de Monmouth completou sua história dos grupos em questão. Sua “história” criou a lenda Arturiana que conectava todos eles ao mito Troiano. Hugh MacDougall, a este respeito, diz que a “história” de Geoffrey, como uma obra de imaginação criativa foi uma excelente conquista.” *

[ * — MacDougall, p. 11.]

Ela forneceu o quadro mitológico e a justificação para uma nação baseada em uma monarquia real, na qual o rei tinha autoridade absoluta. Esta autoridade era apoiada por uma mitologia que elogiava as realizações lendárias dos reis passados, mas como o poder da realeza começou a dar lugar às demandas dos novos interesses comerciais em desenvolvimento, uma nova estrutura econômica e a forma parlamentar que acompanhava essas mudanças, a lenda do Rei Artur não era mais politicamente útil. *

[ * — Ibid, p. 26.]

As origens Troianas cederam lugar em poder inspirador para as origens Germânicas. A auto-imagem Inglesa estava evoluindo. MacDougall diz:

O Anglo-Saxonismo, nascido no século XVI, em resposta à necessidade de demonstrar uma continuidade histórica para a igreja nacional, e alimentado no século XVII nos debates sobre a supremacia racial, finalmente triunfou e tornou-se o mito dominante que fixou a imaginação nacional. *

[ * — Ibid, p. 26.]

Basicamente, o Anglo-Saxonismo sustentava que os Ingleses descendiam de Anglos Germânicos, Saxões e Jutos, e, embora este mito de origem racial não se tenha tornado dominante até o século XVI, ele foi prefigurado muito antes no trabalho de Bede, “o pai da história Inglesa,” escrevendo em 731 que os Ingleses haviam sido eleitos por Deus para estabelecer hegemonia política. *

[ * — Ibid, p. 31.]

Esta suposta superioridade veio cada vez mais a ser associada a supostas origens Germânicas. Este mito, segundo MacDougall, alternadamente referido como “Anglo-Saxonismo,” “Teutonismo,” ou “Goticismo,” tinha quatro postulados:

  1. Os povos Germânicos são de origens não misturadas, tendo uma missão civilizadora universal e são superiores a todos os outros.
  2. Os Ingleses são de origem Germânica; Sua história começou com o desembarque de Hengist e Horsa em Ebbsfield, Kent, em 449.
  3. As instituições políticas e religiosas Inglesas são as mais livres do mundo. Este é um legado de ancestrais Germânicos.
  4. Os Ingleses representam o gênio da herança Germânica em maior grau do que qualquer outro descendente e, portanto, possuem uma responsabilidade especial de liderança no mundo. *

[ * — Ibid, p. 2.]

Esta herança Germânica viria a ser exaltada por inúmeros historiadores, literatos e líderes políticos de quase todas as nacionalidades Européias. O mito racial e nacional Inglês começou a se relacionar cada vez mais com aquele da Alemanha, que se via como tendo sido difamado e negligenciado para facilitar a dominação por uma hierarquia da Igreja Latina. Este raciocínio deve ter sido extremamente atraente para os Ingleses, que, sob a liderança de Henrique VIII, buscaram a independência religiosa de Roma. O nacionalismo Inglês criou uma igreja Inglesa, e é interessante que, enquanto Henrique rejeitou a autoridade Latina, ele não rejeitou o próprio Cristianismo, por sua profunda associação com a definição de “civilização.”

Martinho Lutero disse aos Alemães aquilo que o Anglicanismo estava dizendo aos Ingleses: “Agradeço a Deus por eu ser capaz de ouvir e encontrar meu Deus na língua Alemã, a quem nem eu nem você jamais encontraria no Latim, ou Grego ou Hebraico.” *

[ * — Citado em MacDougall, p. 44.]

A consciência Germânica da Inglaterra foi encorajada ainda mais pelo fato de que Londres se tornou um lugar de refúgio para os Protestantes Alemães que fugiam da perseguição. “A partir do Renascimento e da Reforma desenvolveu-se um mito de um povo Germânico original com raízes remontando à Adão, possuindo uma língua e uma cultura mais ricas e independentes do que qualquer outra.” *

[ * — Ibid, p. 44.]

William Camden (1551-1663) foi, de acordo com MacDougall, o primeiro Inglês a tratar a história dos Anglo-Saxões de forma séria e detalhada. Ele disse que foi motivado por “um amor comum pelo nosso país e a glória do nome Inglês,” e que ele estava decidido a enfatizar as origens Germânicas dos “Saxões Ingleses.” *

[ *— Ibid, p. 46.]

Segundo Camden, a Inglaterra devia sua linguagem e grandeza às vitórias históricas dos Germânicos. Esses Germânicos eram os triunfantes Francos e Borgonheses na França; os Heruli, os Godos Ocidentais, os Vândalos e os Lombardos na Itália; os Suevos e os Vândalos na Espanha; e os Saxões-Ingleses na Inglaterra. A grandeza dos Saxões foi expressada por Camden como: “Esta nação guerreira, vitoriosa, dura, forte e vigorosa.” * Esta é uma evidência adicional da funcionalidade das ciências sociais, neste caso história, ao serviço do mito nacional e da ambição imperial. Também é evidência da auto-imagem dos Europeus como Senhores da guerra.

[ * — Ibid, p. 46.]

A fim de argumentar de forma convincente sobre as origens Germânicas do povo Inglês e sua cultura, a influência Normanda teve que ser minimizada. MacDougall descreve a obra Restitution of Decayed Intelligence [Restituição da Inteligência Decadente] de Richard Verstegen (1605) como “Panegírica para a descendência Germânica dos Ingleses” e diz que ela foi “a primeira apresentação abrangente em Inglês de uma teoria de origem nacional baseada na crença na superioridade racial do povo Germânico.” *

[ * — Ibid, p. 49.]

A capacidade de uma nação ou nacionalidade para mobilizar-se para a resistência contra a opressão, ou para a agressão imperial, não pode existir em um vácuo. Ela está necessariamente ligada à definição de si mesmo de um povo, e essa auto-definição deve se localizar no tempo e no espaço. A enraizamento que resulta é um produto do mito nacional. A ação política bem-sucedida está ligada à auto-imagem positiva. Uma campanha militar concertada é fortalecida na medida em que as pessoas em questão se identificam como uma entidade única com uma fonte comum e um destino comum. A crença em origens especiais inspirará um comportamento especial. A Europa entendeu isso melhor do que outros e muito antes de outros grupos culturais sentirem a necessidade de agir politicamente. Na maior parte, o senso político Africano e outros não-Europeus sofreram sob prioridades humanistas. À medida que as pessoas de ascendência Africana e outros afirmam suas definições de si mesmo em um esforço para criar uma consciência nacional, a academia Européia deprecia esses esforços como juvenis e desnecessários. Pode ser que eles façam isso (1) porque seus próprios mitos de origem nacional há muito tempo foram construídos e têm servido seus propósitos bem e (2) porque eles estão bem cientes do poder motivacional de tais mitos?

Os Inglêses, na realidade, um povo com muito pouco do que se orgulhar, cuja própria história começou como resultado da colonização por parte de outros, auto-conscientemente transformaram uma herança de mediocridade em uma que inspirou o sucesso imperial, tal como nunca tinha sido visto. Eles então negaram o processo a outros e fingiram que este nunca tinha ocorrido entre eles, exaltando as virtudes da “objetividade” e do historicismo científico! Mas o escrutínio da história Inglesa pinta uma imagem muito diferente.

À medida que a classe comercial Inglesa lutou para estabelecer um parlamento que tomaria o poder de um grupo e o colocaria nas mãos de outro, eles argumentaram que tal instituição devia sua génese à Alemanha Saxônica. A lei Inglesa também se originou ali. O argumento era para a limitação do poder da Coroa. Pessoas como John Toland (1701) e Catherine MaCaulay (1763) argumentaram a favor de uma tradição de “liberdade” que exigia que eles fossem libertados do jugo do poder real.

Aqui está um aspecto da auto-imagem Européia que tem sido consistentemente expressa no nacionalismo Europeu, de modo que não temos dificuldade em identificá-lo na Euro-América contemporânea. Os Saxões Arianos (Sânscrito: Arya, “nobre”) eram um povo “amante da liberdade.” Este é talvez o aspecto mais significativo do mito nacional/racial. Supostamente, o povo Germânico adorava sua liberdade e nunca se deixou conquistar. Os Ingleses, de todos os descendentes dos povos Germânicos, tinham a responsabilidade de continuar a herança da “liberdade” e a obrigação de compartilhá-la com os outros através do seu domínio. Este tema viria a ser ecoado repetidamente ao longo da história do chauvinismo Europeu e Euro-Americano. A antiga Alemanha foi habitada por um povo que amava a liberdade e os Ingleses procuraram associar suas instituições políticas e sociais à “liberdade” desses antepassados. Em um discurso pronunciado em 1832, o Barão Henry Bulwer disse: “Foi nas livres florestas da Alemanha que a luz de nossa religião mais pura surgiu.” *

[ * — Ibid, p. 91.]

Em seu famoso trabalho The Decline and Fall of the Roman Empire [O Declínio e Queda do Império Romano], Edward Gibbon afirmou que os “insignificantes” Romanos haviam sido resgatados pelos “ferozes gigantes do Norte, seus invasores Germânicos.” *

[ * — Ibid, p. 82.]

A implicação é que esses “ferozes gigantes” trouxeram a liberdade, não importa quão violenta seja a libertação dos Romanos. Mesmo Kant colocou o valor mais alto nesta noção de “liberdade” e disse que, para ser moral, era necessário “ser livre.”*

[ * — Immanuel Kant, Critique of Practical Reason, Bobbs-Merrill, Indianapolis, 1956.]

De acordo com MacDougall, Sharon Turner (History of the Anglo-Saxon, 1805) escreveu que, embora as tribos Germânicas fossem bárbaras, elas tinham um “amor à independência individual e um alto senso de liberdade política” e que essas características foram “a fonte de nossas [da Inglaterra] maiores melhorias em legislatura, sociedade, conhecimento e conforto geral.” *

[ * — Citado em MacDougall, p. 92.]

Turner caracterizou a “mente nômade” como sendo especialmente adequada à criação de instituições sociais livres. É fascinante como os historiadores são capazes de tomar o que eles geralmente julgam como um fator culturalmente debilitante — o nomadismo — e transformá-lo em uma força para servir o mito nacional.

A mente nômade é uma mente de grande energia e sagacidade, nas perseguições e necessidades peculiares a esse estado, e desenvolveu muitos princípios de leis, governos, costumes e instituições, que foram superiores aos outros que os civilizados anteriores estabeleceram.” *

[ * — Citado em MacDougall, p. 92.]

Turner acrescenta que, entre as tribos Germânicas, os Saxões eram “superiores aos outros em energia, vigor e força de guerra,” e que a Igreja Anglicana encontrou seus começos rudimentares na Saxônia. *

[ * — Ibid, p. 93.]

Os Franceses também usaram um mito de origem nacional para apoiar a luta da crescente burguesia contra o poder real da Coroa: uma luta que os protagonistas consideravam em termos de “liberdade” contra “tirania.” Diderot, um enciclopedista, conectou esta necessidade de “liberdade” com o legado Franco [Frankish]:

Três tipos de nobres existiam no início da monarquia: os descendentes da cavalaria Gaulêsa que seguiram a profissão de armas; outros que derivaram da magistratura Romana e que combinavam o exercício das armas com a administração da justiça, governo civil ou finanças; e o terceiro eram os Francos [Franks], todos dedicados à prática das armas, que estavam isentos de todas as servidões e impostos pessoais. Por isso eles foram chamados de Francos, em oposição ao resto da população, que era quase inteiramente de servos. Essa franquia foi entendida como a marca registrada da nobreza, de modo que Franco [Frank], Homem-livre [Freeman] ou Nobre [Nobleman] eram normalmente expressões sinônimas. *

[ * — Citado em Poliakov, p. 27.]

A auto-imagem, que a Euro-America herdou de seus antepassados Europeus, do conquistador que “liberta,” é acompanhada por um valor que se torna parte da ideologia Européia. Esta “liberdade” é definida em termos de individualismo e a licença para “alcançar,” não importa o custo para os outros. Essa “moralidade” peculiarmente capitalista é a donzela do imperialismo Americano. Mas os Europeus-Americanos estão seguindo uma tradição estabelecida há muito tempo neste padrão de comportamento cultural/político. Charles Kingsley, escrevendo em meados do século XIX, disse que os Ingleses eram Teutões com uma missão universal: “O bem-estar da raça Teutônica é o bem-estar do mundo.” * E, claro, eles foram escolhidos por “Deus.”

[ * — Citado em MacDougall, p. 98.]

O presidente americano Woodrow Wilson tornaria o mundo “seguro” para a “democracia.” Richard Nixon e Ronald Reagan criaram policiais. O conceito de serem líderes autodesignados do mundo, que obriga as pessoas de ascendência Européia a “libertar” os outros, faz parte da lógica de uma auto-imagem ligada na mitologia às antigas hordas das florestas Alemãs, reinterpretada como uma raça “amante-da-liberdade.” É desta tradição cultural que nasceram os conceitos de “liberalidade” [“freedom”], “liberdade” [“liberty”], e “livre empreendimento,” “a busca” de “tudo aquilo”— associado ao mundo Ocidental e ao valor Ocidental.

Verstegen, escrevendo em 1605, disse que esses Germânicos antigos eram excelentes porque: (1) nenhum outro povo havia habitado a Alemanha; (2) eles não se misturaram com nenhum outro grupo racial; e (3) nunca foram subjugados por nenhum outro grupo.*

[ * — Ibid, p. 49.]

Enquanto James Ronde, escrevendo em 1865, disse que “o ignorante e o egoísta podem ser e são justamente obrigados por sua própria vantagem a obedecer a um governo que os resgata da sua fraqueza natural . . . e aqueles que não podem prescrever uma lei para si mesmos, se eles desejam ser livres devem se contentar em aceitar a direção dos outros.” *

[ * — Ibid, p. 99.]

Esses dois conjuntos de idéias, unidos, produziram a auto-imagem que combinou o utamaroho de poder, a ideologia do expansionismo e o utamawazo de controle.

Mas ainda haveria mais um ingrediente para o auto-retrato esmagadoramente bem-sucedido. A ideologia do “progresso” foi o golpe de misericórdia do ego cultural conquistador. “O século XIX foi o século da Inglaterra.” Então, diz MacDougall. O que tornou possível esse sucesso? Foi uma combinação de fatores culturais, todos ideologicamente consistentes. Nada era mais adequado a essa ideologia do que a visão do progresso Europeu. Seu otimismo, arrogância e liberdade dos grilhões da moral humana comum, que normalmente impede outros povos de roubar, estuprar e assassinar indiscriminadamente. O século XIX foi o “século da Inglaterra,” porque não havia nada que os Ingleses não pudessem fazer — não havia barreiras para a nação Inglesa — nenhum lugar onde eles não pudessem ir à serviço da ganância e no cumprimento desse insasiável utamaroho. A ideologia do progresso justificou todos os atos possíveis que poderiam ser cometidos neste serviço. O progresso era um caminho que tinha que ser seguido por seres humanos “civilizadores,” e os Ingleses eram os líderes cujo destino era levar todos para esse objetivo abstrato. Uma auto-imagem poderosa! *

[ * — Dona Marimba Richards, “European Mythology: The Ideology of Progress,” em Black Contemporary Thought, Molefi Kete Asante and Abdulai S. Vandi (eds.), Sage Publications, Beverly Hills, 1980.]

Na visão de MacDougall;

Como uma força diretiva que leva a sociedade Ocidental a uma forma de civilização cada vez maior, a noção de progresso foi aceita como axiomática pela maioria dos grandes pensadores. Reconhecida pelos homens do Iluminismo como uma substituta secular da antiga crença no domínio providencial divino, esta dominou o pensamento Europeu no final da Revolução Francesa. Em associação com o neo-nacionalismo e o industrialismo, proporcionou o dinamismo que levou à hegemonia do mundo ocidental. *

[ * — MacDougall, p. 89.]

Ele diz que Kant apoiou essa auto-imagem com uma teoria da história como sendo o desdobramento do significado e da verdade e como servindo o propósito da moralidade. Esta teoria leva à interpretação da história como justificativa de todas as ações de seus “senhores” Europeus: industrialistas, capitalistas e imperialistas. Esta era a “era do progresso.” MacDougall ressalta que “Hegel liderou o caminho para identificar o processo da história universal com o pensamento político e a cultura Germânicos. Ele afirmou que a etapa final da história foi alcançada com o desenvolvimento da Europa Cristã e especificamente com a manifestação em seu próprio tempo do Espírito Germânico.” * “O espírito Germânico é o espírito do novo mundo.” (Hegel citado em MacDougall, p. 90.)

[ * — Ibid, p. 90.]

MacDougall nos lembra que nenhuma outra profissão serviu a causa da ideologia do progresso e do Anglo-Saxonismo mais do que a do historiador. Mas isso é porque é o historiador que assume a responsabilidade pela construção do mito de origem nacional sobre o qual repousa uma identidade nacional e uma imagem de sucesso. Dentro da tradição cultural Européia,é na ideologia do progresso que a “história” assume significado. A ideologia do progresso é distintamente Européia, porque se baseia no utamaroho Europeu, gerando uma auto-imagem efetivamente agressiva. (Ver Cap. 9.)

Subjacente a todos estes temas do Saxonismo, “liberdade,” e “progresso,” está o conceito de “raça,” tal como definido no contexto do nacionalismo branco. MacDougall cita de Charles Wentworth Dilke (b. 1866): “A extinção gradual das raças inferiores não é apenas uma lei da natureza, mas uma benção para a humanidade.” *

[ * — Ibid, p. 99.]

Os Arianos foram vistos como os pais da cultura Européia Ocidental. A grande missão tinha sido atribuída a três grupos Arianos superiores: os Gregos, os Romanos e os Teutões. Cada um [destes], por sua vez, viriam a “ser líderes e professores do mundo.” Isto foi de acordo com Edward Freeman em sua History of the Norman Conquest [História da Conquista Normanda] (1876). *

[ * — Citado em MacDougall, p. 100]

A Inglaterra Vitoriana havia descendido em uma linhagem ininterrupta da Alemanha Teutônica, assim foi o mito de origem racial e nacional. “As teorias raciais elitistas que enfatizavam a superioridade Nórdica receberam confirmação adicional das novas ciências da etnologia e da antropologia.” A partir do século XVIII, Lineu, Comte de Buffon e Blumenbach classificaram os seres humanos com base em diferenças biológicas. * A frenologia envolvia a medição de crânios, que eram supostos serem uma indicação de habilidade intelectual.

[ * — Ibid, p. 121.]

Era inevitável que o mito de origem nacional, a questão da identidade nacional e a auto-imagem positiva dos povos Europeus fossem expressados ​​em termos branco-nacionalistas [white nationalist terms]. À medida que a Europa se tornava mais unificada em termos de uma consciência nacional coesa, as categorias de distinção racial, obviamente, se tornariam mais amplas, com a concorrência entre as nacionalidades Européias dando lugar a uma declaração de identificação racial que tendia a uni-las — o mito da descendência Ariana sempre reinando supremo . À medida que o Império Britânico se espalhou para explorar povos mais melaninados que de modo algum podiam reivindicar a herança Germânica, as linhas de “raça” ficaram mais claramente ligadas às amplas linhas culturais/históricas que separavam a Europa do resto do mundo. A auto-imagem Européia sempre foi baseada na percepção implícita da diferença cultural/racial. O utamaroho prospera com essa diferença. Devido à natureza deste utamaroho, o complemento dialético da auto-imagem Européia positiva é uma imagem negativa dos outros.
Mídia e Auto-Imagem

Kovel diz que a mídia de massa e a publicidade “detêm a força principal do superego cultural,” e mais certamente os temas isolados acima são expressos de forma flagrante na mídia Européia e Euro-Americana. A indústria do cinema mantém um caráter propagandista nacionalista óbvio; uma função que tem ela realizado habilmente. Não há nada comparável em qualquer outra cultura, em termos de efeito. A linha entre a imagem projetada e a auto-imagem verdadeiramente operativa é muito tênue, se é que pode ser traçada, e não há dúvida de que os filmes feitos pelos Euro-Americanos revelam o utamaroho Europeu. Filmes que descrevem a “virtuosa” família pioneira defendendo-se contra os Nativos Americanos “imorais” e irracionalmente “hostis” e seu comportamento em relação à população Indígena. Mas é também o caso de que esses pioneiros devem, de fato, ter considerado a si mesmos como as almas virtuosas e aventureiras que eles são retratados por ser. Certamente, eles acreditavam que era seu “destino manifesto,” “enfrentar os selvagens de terras indomáveis” e que, construindo suas propriedades e trazendo a vida familiar e a “civilização” para os “selvagens,” eles estavam sendo os mais morais dos seres. É igualmente certo que eles não podiam entender a hostilidade intransigente dos “Índios” — afinal, não estavam eles fazendo grandes sacrifícios para trazer seu talento herdado para a “civilização” para esses ingratos?! Esta imagem teve que ser assimilada na auto-imagem Européia Ocidental. Ela tem sido adotada nas primeiras manifestações de Ocidentalidade [Westernness]. Os filmes que projetam isso são consistentes com a auto-imagem Européia como “aqueles que criam a ordem a partir do caos” e “aqueles que conquistam o inconquistável.”

Os filmes Britânicos que são a contrapartida do ethos imperial Britânico retratam os nacionalistas Indianos Orientais e Africanos como “elementos irresponsáveis” que procuram trazer sofrimento, violência e desordem ao seu povo — para seu próprio ganho pessoal ou, na melhor das hipóteses, por motivos políticos mal-direcionados. O oficial Britânico e suas forças, por outro lado, representam o interesse dos nativos e trazem racionalidade, paz, e, acima de tudo, estabilidade com seu governo. Mais uma vez, isso é, é claro, propaganda nacionalista Européia, mas também é consistente com a auto-imagem operativa Européia como “pacificador mundial,” “organizador mundial,” e “superior mundial.” O conceito de fardo do homem branco não é meramente propaganda, é um auto-retrato internalizado que funciona de forma normativa. Isso nos ajuda a entender a reação Européia-Americana ao lançamento da série The africans na Televisão pública (novembro de 1986). Grandes filmes, documentários e outras produções de mídia que não servem para propagar a auto-imagem preferida dos Europeus são ignorados e vistos como “tendenciosos.”

A locação dos filmes Europeus é muitas vezes uma indicação desse aspecto da auto-imagem Européia que o filme está projetando. Quando a história ocorre em solo estrangeiro, o filme se torna uma oportunidade para a expressão da auto-imagem Européia em relação à imagem dos outros. As terras de outros povos geralmente fornecem cenários e ambientes exóticos para as “aventuras amorosas” [“love affairs”] e as intrigas políticas e econômicas dos protagonistas Europeus. (“Seu amor colocou o Continente Escuro em chamas!”) [“Their love set the Dark Continent aflame!”] A razão pela qual essa configuração é tão comum nos filmes Europeus (Americanos) é que ela se tornou um aspecto significativo do utamaroho Europeu. O mundo existe como um campo de jogos [playground] — um pano de fundo — para o esporte e o jogo, para as aventuras do Europeu. (O filme Out of Africa é um exemplo contemporâneo.) Os povos de outras culturas são realmente experimentados como “adereços,” apoiando a ação principal (importante) do roteiro. Esses cenários exóticos são excelentes para esses fins; uma dançarina “nativa” sexualmente estimulante em um momento estratégico em uma aventura amorosa — a atmosfera romântica de um terreno “intocado” (ainda não civilizado) — ajuda a excitar a imaginação “sofisticada” e saciada do público Europeu. Às vezes, uma garota “nativa” ajuda a incluir parte do recurso “intocado” para ser apreciado; Noutras, o Europeu se envolve com o entorno nativo ao ponto de se tornar um “deus” ou “chefe” temporário. Tudo isso aponta para a verdadeira crença e pressuposto dos Europeus de que as terras de outros povos fornecem um ambiente no qual eles devem atuar suas fantasias.

Na publicidade, esse uso e relacionamento com outras culturas é um tema dominante. Não só o terreno, mas os próprios povos Indígenas não são mais do que “ornamentos” utilizados para realçar o encanto dos Europeus que estão sendo representados. Não existe uma expressão mais precisa do utamaroho Europeu do que um anúncio de moda com um cenário “exótico” ou um comercial de companhias aéreas em que o mundo é representado como uma vasta área turística [resort] para a qual os Europeus podem escapar da “seriedade” de seus “importantes” trabalhos. A Pan American Airlines atesta a todos os lugares que ela “abriu” para o Ocidente: “Podemos levá-lo a qualquer lugar neste mundo que nós abrimos.” A Delta Airlines fala sobre “Nosso Caribe” e os vários outros lugares que “pertencem” a eles. Essas frases expressam a convicção e a suposição Européias de que ele possui o mundo, ou pelo menos que este é potencialmente dele. A tarefa torna-se simplesmente uma questão de transformá-lo — pouco a pouco — em seu tipo de mundo, naquilo que é familiar e confortável para eles. As companhias aéreas, hotéis, agências de viagens, e empresas asseguram que isso aconteça. Elas querem garantir aos Europeus-Americanos que elas estão trabalhando para tornar mais uma área, parte do “mundo ocidental” (e, portanto, do mundo “civilizado.”)

É claro que as implicações desse processo são que essas áreas ficam cada vez mais desconfortáveis ​​para as populações indígenas que as habitam, dado que os habitantes originais ficam cada vez menos acolhidos pelos invasores. Somente em papéis muito controlados, eles são bem-vindos — como garçons, carregadores de malas e similares — o que ajuda a reforçar a auto-imagem Européia. É característico do utamaroho Europeu que a praga dos “turistas de aventura” Europeus-Americanos seja mais atraída por lugares que foram menos contaminados por si mesmos. Mas o alicerce deve ter sido colocado pelo “homem avançado” para assegurar-lhes que o selo Europeu tenha sido colocado lá; para que eles estejam de fato protegidos contra a hostilidade e “desordem não-Européias.” O desejo Europeu/Europeu-Americano historicamente (tão potente agora como em qualquer momento da história ocidental) é “salvar” e destruir (Kovel); “descobrir” e assumir o controle; “abrir” e avançar.

O livro de William Golding, e o filme com base nele, Lord of the Flies [O Senhor das Moscas] é uma excelente fonte para o estudo da expressão do utamaroho Europeu na literatura Européia. Contém declarações bastante explícitas da auto-imagem Européia em relação à imagem dos outros Européia. As dicotomias polares do livro refletem aquelas do nacionalismo Europeu Ocidental: ordem (lei) versus caos; o omnipresente bem versus o mal; “o chefe” e Piggy (que representam a civilização) versus Jack e “os caçadores” (que representam o primitivo). Uma corrente subjacente em toda a trama é a batalha do “conhecimento” contra o abismo da “superstição.”

A história gira em torno de um grupo de garotos Ingleses muito jovens (provavelmente de seis a doze anos), que são abandonados em uma ilha desabitada sem adultos durante uma crise causada pela guerra nuclear. Os meninos mais inteligentes e bem-educados (os “mocinhos”), liderados por Ralph, “o chefe,” elaboram um plano para a tomada de decisões e a manutenção da ordem e garantia de sobrevivência. Opondo-se a eles são “os caçadores.” Estes são os “primitivos”, os vilões, os não muito inteligentes. Eles são liderados por Jack,  que é divisivo, “regressivo” e destrutivo. Ele ameaça a ordem “civilizada” do grupo, saindo sozinho e induzindo os outros a se juntarem à sua “tribo.” Os vilões são totalmente irresponsáveis; Eles brincam com fogo, eles grunhem com mais freqüência do que falam, e eles participam de “ritual” (não o ritual ordenado e culturalmente construtivo que conhecemos nas sociedades Africanas), em que eles correm descontroladamente, matando os mocinhos e gritando, “Mate a besta.” A “besta” é um ser mítico em que os “caçadores” acreditam; uma crença que eles promovem e usam como uma justificação para matar os mocinhos. No filme, os caçadores são feitos para se parecer com a imagem de não-europeus Européia. Eles dão a impressão de terem peles mais escuras. Eles pintam seus rostos, gritam e berram e fazem ruídos como animais e supostamente como povos “primitivos.” Piggy (que é gordinho) é o intelectual inteligente que Jack despreza desde o início, e em um momento Piggy diz a Jack: “Vocês serão um bando selvagens ou serão sensíveis como Ralph?” E nisso reside o tema da história, que é o da regressão contínua dos meninos na ausência de supervisão adulta (Européia). Os caçadores matam Piggy, mas antes que possam chegar a Ralph, os meninos são resgatados por adultos. Em termos Europeus, os meninos “retrogrediram” culturalmente milhares de anos em uma hora e meia de tempo de filme. Esta é uma expressão de um dos maiores medos do Europeu. Talvez o pior destino que pode acontecer aos Europeus é que eles percam sua “civilização” (superioridade) e sejam reduzidos àquilo que eles vêem os “não-Europeus” por ser. As dicotomias apresentadas não são aquelas que indicam com precisão o caráter distintivo da cultura derivada da Europa ou mesmo a diferença entre as culturas tradicionais e as sociedades seculares. As imagens apresentadas são quase o inverso dessas distinções. As sociedades Africanas e outras sociedades primárias são caracterizadas como sendo “desordenadas,” “descontroladas,” e “imorais”; A sociedade Européia supostamente simbolizava o movimento de distanciamento disso em direção a ordem, moralidade, e responsabilidade — onde o indivíduo pode se sentir seguro!

O filme de Hollywood de 1954, The Naked Jungle [A Selva Nua] é um protótipo da interpretação da mídia da “saga do homem Ocidental,” na qual ele é retratado como “conquistando novas terras” e “domesticando os selvagens.” Quer o cenário seja África, Índia, Ilhas do Pacífico ou América do Sul, a história é etnologicamente a mesma.

Charleton Heston é um “forte,” “robusto,” “destemido” proprietário de plantação Euro-americano na América do Sul. Ele também é muito, muito orgulhoso. Ele diz a sua namorada recém-chegada: “Eu vim para cá quando eu tinha dezenove anos e comecei com apenas vinte acres. Eu construí tudo isso com minhas próprias mãos, eu desbastei tudo. Não havia nada quando eu cheguei aqui.” Mas ele a adverte, para que não cometa o erro de pensar que tudo é como o paraíso que ele construiu.”A civilização só vai tão longe quanto a minha terra, depois da qual você está na selva, onde nenhum homem tem um nome. Na selva, o homem é reduzido a um animal e a única lei é a sobrevivência.”

Em um momento eles conhecem um “amigo” nativo. O herói explica à mulher que seu amigo “é mais civilizado que os outros [porque] ele tem sangue Maia.” Em outro momento eles vêem um ritual indígena “cruel” em que um homem está sendo morto por ter tomado a esposa de outro homem. A mulher branca está horrorizada com tal “imoralidade” e protesta que isso deveria ser interrompido.

O filme dá a impressão de ser um comando longo e muito autoritativo de Charleton Heston, o “chefe” incontestável de tudo e de todos, pontuado pelo som de tiros que partem da pistola que ele porta constantemente, cuja racionalidade fria é o símbolo supremo do poder branco na imagem.

A trama atinge seu ponto alto quando Heston confronta as “formigas soldado” [“soldier ants.”] Estas são formigas que “pensam” e que movem-se em números tão imensos que podem dizimar a encosta de uma montanha. Elas aterrorizam a maior parte da América do Sul. Todos na plantação querem fugir, mas não Heston, cuja imagem é nada menos do que a de um deus branco. Ele diz que ele vai ficar e lutar! Seu amigo, o policial Sul-Americano, acha que ele está louco. Ele diz a Heston: “Se você não pensa em você, pelo menos pense em seus homens [todos os indígenas].” Ao que Heston responde (na voz de Moisés entregando os Dez Mandamentos): “Eu estou pensando neles. Há quinze anos atrás, eles eram selvagens. Eu os tirei da selva. Se eu for embora, eles voltarão, e a civilização os deixará.”

Em seguida, vem a cena inevitável em que ele confronta o “pajé” [“witch doctor”] (que também pensa que Heston é louco). Com razão, o “pajé” está tentando convencer os povos indígenas a sair o mais rápido possível. Mas Heston, o deus branco, diz-lhes para “serem corajosos como sua mulher branca.” Ele vence, pois os homens decidem ficar, e o “pajé” retira-se, parecendo covarde e fraco. Mais uma vez, a tradição cultural não-Européia é derrotada.

O restante do filme lida com a batalha heróica de Heston contra as formigas soldado, uma batalha que ele, obviamente, ganha. E assim os Europeus são novamente bem-sucedidos; mas então eles merecem ser. Eles são “fortes” e “valentes,” “inteligentes” e “bons.” Eles são, acima de tudo “altruístas” em seus esforços para levar a “civilização” a uma desafortunada terra “atrasada.” O dinheiro e o poder que eles recebem de suas plantações não contradizem o altruísmo de seus motivos, pois, afinal, esse espírito aventureiro e expansionista deve ser devidamente recompensado.

Em um tratamento satírico excelente (e excruciantemente raro) do utamaroho conquistador dos Europeus, o filme de comédia Britânico, Carry on Cleo [Os Apuros de Cleópatra] satiriza não só os Romanos e suas incessantes expedições militares, mas também todos os filmes de Hollywood que glorificam essa era do imperialismo Ocidental. No filme, durante uma campanha conquistadora, Antônio diz a Júlio César: “Você sabe, Júlio, não acho que essas pessoas queiram ser conquistadas,” e César responde: “Eu sei o que você quer dizer — apático! . . . Eles nem mesmo usarão as boas estradas novas que eu lhes construí.”

A mensagem de Kipling para seus irmãos Europeus é que “Vossa é a Terra e Tudo o que existe nela.” Não há dúvida de que muitos dos aspectos do utamaroho e da auto-imagem Europeus são extremamente “positivos” no sentido de que, em termos de sua própria interpretação do seu interesse nacionalista, seu utamaroho lhes confere convicção, auto-confiança e otimismo necessários para apoiar seus objetivos. A auto-imagem é funcional. Esta é a função de uma ideologia nacionalista. Mas a definição de nacionalismo Europeu (que se torna expansionismo) e o ego cultural Europeu são tão extremos e tão maciços que a “auto-imagem positiva” no contexto da cultura Européia se torna presunção e arrogância monstruosas. Baseia-se na degradação e aviltamento de outros povos, no apoio e persistência de uma imagem negativa de “outros,” e na falta de respeito pela legítima expressão auto-determinista deles. É a cultura Européia que não pode permitir ou coexistir com a “diferença,” mas paradoxalmente prospera sobre esta.

 

 

A Auto-Imagem Européia na
Literatura do Nacionalismo Branco

A literatura do nacionalismo branco é significativa aqui, não porque expressa um elemento errático ou bizarro na cultura Européia, mas pelo contrário, porque os mesmos temas são reconhecíveis nela como os encontrados no discurso filosófico Europeu, na literatura de ciências sociais Européia, na expressão estética Européia e na mídia Ocidental — onde quer que os Europeus (de forma explícita ou implícita) dêem testemunho de sua auto-imagem coletiva.

As várias manifestações da auto-imagem Européia revelam um utamaroho que é consistente com o do nacionalismo branco. O termo descritivo “racismo,” se não é impreciso, é certamente enganador. Ele desvia a atenção da natureza muito especial do nacionalismo branco, geralmente com o objetivo político de desmantelar qualquer forma de nacionalismo cultural — ignorando assim as possibilidades das ideologias nacionalistas. O que é etnologicamente significativo é como os porta-vozes Europeus-Caucasianos definem seu nacionalismo e as características que eles identificam como “Européias,” “boas,” ou “brancas.”

William Hepworth Dixon escreve em louvor ao homem Europeu, o conquistador:

  O conto de cem anos de progresso branco é uma História Maravilhosa . . . As raças Européias estão se espalhando por todos os continentes e dominando as ilhas e as enseadas de todos os mares. . .

A Rússia. . . levou seus braços à Finlândia, Criméia, Tartária, Cáucaso e aos Maometanos, Khanales, estendendo o império branco no Cáspio e no Euxine. . . Ainda mais vastas tem sido as marchas e a conquista da Grã-Bretanha. . . Dificilmente menos impressionante do que o progresso da Rússia e da Inglaterra tem sido o dos Estados Unidos. . .

A China tem permanecido parada, enquanto a Inglaterra, a Rússia e a América vêm conquistando, plantando e anexando terras. . .

A superfície da terra está passando para as mãos Anglo-Saxãs. *

[ * — William Hepworth Dixon, White Conquest, Chatto & Windus, London, 1876, pp. 368-371.]

Nos escritos de Joseph Arthur Gobineau, fica claro o quão importante é o conceito de “civilização” para a posição nacionalista branca e, portanto, por que a disciplina Européia Ocidental da antropologia tem sido historicamente ligada tão intimamente aos seus argumentos, pois é essa disciplina que tem contribuido mais para a definição nacionalista Européia e para o uso do termo “civilização.” Gobineau diz:

Estou falando continuamente de “civilização,” e não posso deixar de fazer isso; pois é somente pela existência em certa medida ou a ausência completa desse atributo, que posso avaliar os méritos relativos das diferentes raças. *

[ * — Joseph Arthur Gobineau, Selected Political Writings, Michael D. Biddiss (ed.), Harper & Row, New York, 1970, p. 84.]

Depois de descrever as raças “negra” e “amarela,” Gobineau oferece a seguinte descrição da raça branca. Entrelaçados nesta afirmação estão ideais Europeus, os temas do nacionalismo Europeu e os atributos reivindicados pela auto-imagem Européia.

Nós chegamos agora aos povos brancos. Estes são dotados com energia reflexiva, ou melhor, com uma inteligência energética. Eles têm um senso de utilidade, mas em um sentido muito mais amplo e superior, mais corajoso e ideal, do que as raças amarelas; uma perseverança que leva em conta os obstáculos e, finalmente, encontra um meio de superá-los; um poder físico maior, um instinto extraordinário para a ordem, não apenas como garantia de paz e tranquilidade, mas como um meio indispensável de auto-preservação. Ao mesmo tempo, eles têm um notável, até mesmo extremo, amor pela liberdade, e são abertamente hostis ao formalismo sob o qual os Chineses estão felizes em vegetar, bem como o despotismo estrito que é a única maneira de governar o Negro. . .

A imensa superioridade dos povos brancos em todo o campo do intelecto é equilibrada por uma inferioridade na intensidade de suas sensações. No mundo dos sentidos, o homem branco é muito menos dotado do que os outros, e por isso é menos tentado e menos absorvido pelas considerações do corpo, embora em estrutura física ele seja o mais vigoroso. *

[ * — Ibid, p. 136.]

Wayne MacLeod, que se refere a si mesmo como um “racialista,” faz a seguinte observação significativa,

Embora muitos povos tenham se considerado superiores aos seus vizinhos — os Japoneses, os Judeus, mesmo algumas tribos Africanas — foi com a típica variedade branca do Caucasiano que as noções egocêntricas de superioridade racial tem sido associadas. *

[ * — Wayne MacLeod, The Importance of Race in Civilization, Nootide Press, Los Angeles, 1968, p. 6.]

É muito importante, como observa MacLeod, reconhecer o fato de que o nacionalismo étnico ou cultural não implica necessariamente teorias da supremacia étnica ou cultural. Existe uma tendência “natural” para os grupos culturais acreditarem que seus modos são de alguma forma melhores que os de outros grupos, pois afinal, estes são as implicações do compromisso cultural. Não é, no entanto, que eles devam impor essa cultura aos outros ou que devam ser supremos ou governantes entre eles.

Para MacLeod, os povos Europeus são “governantes dos povos conquistados e criadores da civilização. . . . A tendência de povos semelhantes aos Europeus do norte de se espalhar e conquistar é uma das suas características históricas.” *

[ * — Ibid, pp. 6-7 ]

MacLeod explica que historicamente foi a raça Ariana que transmitiu o fenômeno da (e, portanto, a “capacidade” de gerar) “civilização” de geração em geração. O conceito de “civilização” é novamente primordial nesta declaração do nacionalismo branco. A preocupação de MacLeod é que esta [‘civilização’] será destruída se a raça for permitida morrer. (deve ser lembrado também que a “pureza” e o controle da herança racial eram um aspecto importante da “estratégia de Platão.)

Abaixo, MacLeod recita as características da tradição cultural Européia Ocidental da qual ele tanto se orgulha; Essas coisas, em sua concepção, os Europeus deram ao mundo. (Os traços culturais que Weber lista em sua introdução à Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo como “Ocidentais” são muito semelhantes.)

Conhecimento e observação baseados na matemática, as formas sistemáticas de pensamento do Direito Romano, os métodos de experimento e o laboratório, química e ciência racionais, perspectiva espacial na pintura, literatura impressa, imprensa, o Estado com uma constituição escrita, o conceito de cidadão, trabalho livre, a orquestra com sonatas e sinfonias — eram todos desconhecidos para o mundo antes do surgimento do Ocidente, para não mencionar os avanços em invenção e descoberta, melhorias nos transportes, comunicação elétrica, etc., promovidos pela mesmo tipo racial, que é “semelhante apenas a si mesmo” [“like unto itself only“]. *

[ * — Ibid, pp. 22-23.]

Para MacLeod, os tipos superiores de temperamento que produzirão “padrões progressivos” são caracterizados por “disposições pensativas, nervosas, e vigorosas”; em oposição àqueles que são “simpáticos” [“easy mannered”], “sem agressividade,” e “dados à extroversão animada.” O “Intelecto”, diz MacLeod, “é analítico, ele disseca, divide.” E traduzido para a linguagem da ambição política internacional, tudo isso diz que um Império Unido do Mundo Ocidental será a “expressão final da nossa civilização. . . . Este é o nosso destino natural.” *

[ * — Ibid, pp. 28, 45, 71.]

Estas são as imagens fornecidas por Lothrop Stoddard em The Rising Tide of Color:

O homem que abrisse o seu atlas para um mapa político do mundo [em 1914]. . . provavelmente teria uma impressão fundamental: a preponderância esmagadora da raça branca no ordenamento dos assuntos do mundo. Julgado por cânones aceitos de estadismo, o homem branco se sobressaiu como o mestre indiscutível do planeta. Pois da amadurecida colméia-mãe Europa, os imperiosos Filhos de Jafé enxamearam durante séculos para plantar leis, seus costumes, e suas bandeiras de batalha nas extremidades mais longínquas da Terra. Dois continentes inteiros, América do Norte e Austrália, foram tornados praticamente tão brancos no sangue quanto a terra-mãe Européia; outros dois continentes, a América do Sul e a África, foram amplamente colonizados por estoques brancos; enquanto que a enorme Ásia viu o seu vazio pântano do norte, a Sibéria, ser preparado para a morada do homem branco. Mesmo onde as populações brancas não tinham se prendido ao solo, poucas regiões da terra escaparam da influência imperial do homem branco, e vastas áreas habitadas por miríades incontáveis ​​de pessoas escuras obedeciam a vontade do homem branco. *

[ * — Lothrop Stoddard, The Rising Tide of Colour, Charles Scribner’s Sons, New York, 1920, p. 3.]

Stoddard fala do “Compromisso Nacionalista Branco,” e embora a retórica fortemente racialista não seja permitida a inteferir, podemos ver que a história política da Europa na África até e incluindo o presente é descrita com precisão em suas declarações.

Felizmente, o homem branco tem todas as razões para manter um firme domínio sobre a África. Não só os seus trópicos centrais são as principais fontes de matérias-primas e alimentos os quais somente a direção branca pode desenvolver, mas para o norte e o sul o homem branco atingiu raízes profundas no solo. Ambas as extremidades do continente são “países do homem branco” [“white man’s country”], onde povos brancos fortes devem finalmente surgir. Dois dos principais poderes brancos, Grã-Bretanha e França, estão comprometidos nesta tarefa racial e não pouparão esforços para salvaguardar o patrimônio de seus filhos pioneiros. . . . Em suma, o verdadeiro perigo para o controle branco da África não está em ataque mulato ou revolta negra, mas em possível fraqueza branca através da discórdia crônica dentro do próprio mundo branco.*

[ * — Ibid, pp. 102-103.]

Em 1920, Lothrop Stoddard pedia a unidade dos povos brancos na causa do nacionalismo Europeu Ocidental. Hoje, os Estados Unidos, a Comunidade Econômica Européia, a ex-União Soviética e a África do Sul estão exibindo essa unidade por essa causa, apesar de acharem conveniente usar uma retórica ligeiramente diferente da de Stoddard.

Stoddard descreve o que ele chama de “A Inundação Branca” [“The White Flood”]; ou seja, a expansão mundial da raça branca durante os quatro séculos entre 1500 e 1900, “o fenômeno mais prodigioso em toda a história registrada.” * (Registrado pelo próprio “fenômeno prodigioso”!) Desde a época Romana, diz ele, a raça estava diminuindo por várias razões, incluindo a Morte Negra [Black Death] e a relutância em “se multiplicar.” **
[ * — Ibid, p. 145.]
[ ** —Para uma declaração contemporânea desta preocupação com a infertilidade comparativa Européia, veja Ben J. Wattenberg, The Birth Dearth, Pharos Books, New York, 1987.]

Mas depois das grandes descobertas [Colombo, 1492 e Da Gama, 1494], o homem branco poderia flanquear seus antigos oponentes. Novos mundos inteiros, povoados por raças primitivas foram descobertos, onde as armas do homem branco tornaram a vitória certa, e de onde ele conseguiu arrumar riquezas para acelerar sua vida doméstica e iniciar um progresso que em breve o colocaria imensamente acima de seus uma vez temidos assaltantes.

E o branco provou ser digno de sua oportunidade. Suas aptidões raciais inerentes foram estimuladas pelo passado. As condições difíceis da vida medieval o haviam disciplinado para a adversidade e o haviam sachado [weeded him] pela seleção natural. . . As nações do norte — ainda mais vigorosas e audaciosas (do que Portugal e Espanha) — surgiram instantaneamente e avançaram o orgulhoso oriflame da expansão branca e da dominação mundial. *

[ * — Stoddard, p. 148.]

A esperança de Stoddard era que “os brancos formassem universalmente uma casta governante, dirigindo em virtude de inteligência superior e vontade mais resoluta, e explorando recursos naturais para o lucro incalculável de toda a raça branca.” * Suas esperanças foram realizadas. **

[ * — Ibid, p. 149.]
[ ** — Para mais material etnográfico deste tipo, ver Barry Schwartz e Robert Disch, eds., White Racism, Laurel, New York, 1970, especialmente, “The idology of White Supremacy,” por James Vander Zanden. Ver também ambos os volumes de Paul Jacobs et al., To Serve the Devil. Claro, os escritos dos próprios nacionalistas brancos devem ser lidos.]

Mas Stoddard estava escrevendo em 1920. Será que ainda é possível encontrar expressões manifestas do nacionalismo branco extremo? A resposta é, claro, sim. Na verdade, temos uma instância em que os sentimentos do nacionalismo branco são abertamente utilizados para determinar as políticas governamentais de um poderoso, embora ilegalmente constituído, Estado na África.
As seguintes afirmações foram feitas por P.W. Botha, presidente da República da África do Sul, em 1985,

Meus queridos Afrikaaners brancos, Saudações a todos vocês irmãos e irmãs em nome do nosso santo sangue. . .

Pretoria foi feita pela mente branca para o homem branco. . . . Nós somos pessoas superiores. . . . A República da África do Sul. . . não foi criada por simples desejo. Nós a criamos à custa de inteligência, suor e sangue. . .

Intelectualmente somos superiores aos Pretos; isso tem sido comprovado além de qualquer dúvida razoável ao longo dos anos. . .

Não é plausível (portanto) que o homem Branco seja criado para governar o homem Preto? *
[ * — P.W. Botha, “Why We Hate Blacks,” in The Shield, the official African American newspaper of Hunter College. Reprinted from the South African newspaper, Sunday Times, Aug. 18, 1985, in the by-line of David G.]

Os temas do utamaroho Europeu é que são significativos nesta amostragem da literatura nacionalista branca: o “homem” Europeu, o conquistador, salvador mundial, portador da ordem e, mais importantemente, [portador] da “civilização,” superior e, portanto, magnânimo em seu esforço para impor-lhes os benefícios de seus conhecimentos e talentos. Não importa para os povos Africanos (para o “resto de nós”) se os Europeus dizem que seu estado abençoado de “civilização” é transmitido “racialmente” (fisicamente) ou culturalmente; Esta é, em última análise, uma distinção muito fina. As conseqüências da teoria “racista” flagrante podem ser ainda menos prejudiciais culturalmente, pois poderiam “logicamente” levar a uma política de não interferência e de separação. Por outro lado, etnologicamente, o utamaroho Europeu é uma sutil mistura de raça, cultura e concepções ideológicas de “civilização” e “progresso.” As declarações nacionalistas brancas são as declarações do nacionalista liberal Europeu com a adição de uma retórica racialista , uma retórica que foi abandonada pela intelectualidade Européia contemporânea. Este último grupo está acostumado a esconder seu nacionalismo em uma barragem de então-chamada terminologia e metodologia universalistas. Qual é o inimigo mais formidável?

Por esta razão, se não por outra, os Africanos e outros não-Europeus não devem deixar-se assustar com a palavra “raça”; e a lição a ser aprendida é que o “homem branco” realmente “fala com língua bifurcada (enganosa) [forked tongue].”

Estes vários aspectos do utamaroho Europeu combinam-se para formar uma auto-imagem que apoia externamente o comportamento imperialista Europeu e apoia internamente ou intraculturalmente racionalidade extrema, cientificismo fanático, estética superficial e analítica e uma grave falta de espiritualidade. O imperialismo é apoiado pelos cientistas que constroem teorias pelas quais o mundo é consumido; por intelectuais e acadêmicos que usam esse “conhecimento” como poder, por missionários (“cruzados” modernos) que procuram apenas a sua “paz” no mundo (de modo que eles “altruisticamente” oferecem “cidadania” em seu império). Todos esses tipos de indivíduos têm a mentalidade do “salvador do mundo” — a contrapartida do “conquistador do mundo.” O “humanitário” Europeu também compartilha muitas dessas características. Ele muitas vezes possui a mesma imagem de si mesmo em relação aos outros, assim como o imperialista Europeu. Ambos acreditam que estão em posse de uma “verdade absoluta” que eles compartilhariam com o mundo — goste ou não! O racionalismo de estilo Europeu termina em hegemonia Européia, não importa como você o corta [no matter how you cut it]. O paternalismo do humanista liberal ou científico é ainda uma expressão do utamaroho Europeu, pois implica superioridade Européia. O “humanitarismo” torna-se nesta interpretação o compartilhamento dessa superioridade. Os liberais intelectuais têm a mesma imagem de si mesmo que os nacionalistas brancos declarados e os imperialistas culturais Europeus; eles usam o termo “moderno” em vez de um que seja mais obviamente vinculado à cultura, mais claramente nacionalista. O problema não é a intenção que essas pessoas podem ter, mas reconhecer que a ideologia subjacente às suas disciplinas científicas é um produto do mesmo desenvolvimento cultural/histórico que o do nacionalismo branco.

Mais uma vez, o conceito de asili é a nossa ferramenta mais valiosa nesta crítica. Ele exige que coloquemos essas várias expressões e características de “Europeidade” [“Europeanness”] em uma realidade significativa: isto é, a única realidade que as explica como partes de um todo cultural/ideológico. A asili da cultura dita uma obsessão com o poder como controle. Este pode ser buscado através do conhecimento (“ciência”) e/ou agressão física (imperialismo militar) e/ou imperialismo cultural (“progressivismo”-Cristianismo) ou a combinação extremamente eficaz de todos os três. A auto-imagem que justifica esses comportamentos agressivos e a consciência nacional que os exige são mandatadas pela epistemologia que separa o universo em “eu” e “outro” e depois faz um objeto do outro. Pouco importa se o objeto é chamado de “pagão”, “sujeito colonial,” “subdesenvolvido,” ou “preto” — ele ainda é “não-Europeu.” Pouco importa se o eu é manifestamente identificado como cientista “civilizado”, Cristão, “salvador,” “moderno,” ou “branco”; O eu conquistador é sempre Europeu. O conceito de asili torna evidente que o utamawazo cria uma auto-imagem consistente. Tanto o utamaroho como a auto-imagem são prefigurados no germe cultural (asili) e, portanto, carregados nos “genes culturais.”

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fig. marimba ani - capitulo 5 citaçao e titulo

 

O Complemento da Auto-Imagem Européia

A persistência do utamaroho Europeu é inerentemente dependente da imagem que os Europeus criaram de seus “opostos.” A imagem dos outros, a antítese dialética da auto-imagem Européia, ajuda a defini-la. A imagem Européia dos outros é um conjunto de todas as coisas que representam falta de valor; isto é, características humanas “negativas,” dentro dos ditames da ideologia Européia. É o oposto desta imagem negativa que eles “priorizam” [“breed for”], que sua cultura se esforça para produzir. A auto-imagem Européia é “positiva” em termos de comportamento normativo Europeu; É funcional em termos de objetivos Europeus. Ela faz bem o seu trabalho. Uma concepção negativa do “outro” é a base sobre a qual os Europeus constroem sua imagem de outros povos, ou seja, o construto conceitual é fornecido pela natureza de sua cultura, e os Europeus criam imagens vívidas para preenchê-lo. O utamaroho é tal que eles não poderiam sobreviver (como Europeus) sem essa imagem de um oposto sobre quem eles podem “atuar” todas aquelas coisas que ajudam a manter sua auto-imagem “positiva.” Isso é importante quando as pessoas falam sobre “bom” e “ruim.” Se, em termos de seu próprio sistema de crença, eles tivessem que tratar todos como si mesmos, eles não poderiam sobreviver como “Europeus.” É precisamente por isso que uma filosofia da “fraternidade universal dos homens” só pode ser interpretada etnologicamente como tendo uma função retórica quando é declarada dentro da cultura Européia, pois é ideologicamente estranha à e incompatível com o objetivo de valor  [value-thrust] e as definições dessa cultura. Ela não se adequa à asili. A própria cultura precisa de “não-irmãos” [“nonbrothers”]; Ela precisa daqueles que podem ser tratados totalmente como objetos, como “outros.”

Um dos mais fortes mecanismos de apoio e influências no desenvolvimento da imagem Européia dos outros — certamente nos estágios iniciais — foi o pensamento Cristão. Essa é uma faceta que evidencia a hipocrisia da identificação do Cristianismo com os ideais de “fraternidade” universal. A visão Cristã do “não-Europeu” é geralmente como “selvagem” necessitando da “palavra,” abandonado aos pecados e aos males de uma existência ímpia, ignorante dos verdadeiros princípios da moralidade. Um missionário, escrevendo em 1838, descreve os Havaianos dessa maneira;

Este povo tem muito tempo ocioso em suas mãos, o qual nos sentimos ansiosos por ter empregado para algum fim valioso. É uma tarefa muito difícil ensinar indústria a um povo ocioso. Mas é necessário para promover o seu caráter Cristão. Um Cristão ocioso, imprevidente, é uma contradição em termos. E tal tem sido o hábito preguiçoso deste povo que eles não podem melhorar por si mesmos, sem a influência e o exemplo daqueles que estão dispostos a perseverar em ensiná-los e encorajá-los a trabalhar. Um pouco de trabalho será suficiente para fornecer um suprimento de comida para seu próprio consumo e, além disso, as necessidades dos filhos da natureza são poucas. . . . O seu tempo deve, portanto, ser gasto na indolência ou, o que é pior, na exposição a influências corruptoras para as quais seu amor pela sociedade do outro os leva peculiarmente. A esta influência, as nossas igrejas continuarão a ser expostas até que possam ser concebidos alguns meios de emprego que tendam a elevá-los da pobreza e da degradação.*

[ * — Paul Jacobs et al, To Serve the Devil, Vol. II, Vintage, New York, 1971, p. 42.]

Um forte competidor com o Cristianismo para o desenvolvimento, a manutenção e a proselitização desta imagem é a disciplina antropológica, uma disciplina que serviu naturalmente para esta tarefa, uma vez que seu assunto era “tudo aquilo que não fosse Europeu.” Conforme o Antropólogo definiu “primitivo” ou “selvagem,” ele definiu o “oposto” do “Europeu.” Nessas descrições, a auto-imagem Européia estava implícita. Elas foram essenciais para a idéia de “civilização,” um termo pelo qual os Europeus denotaram a si mesmos e aos valores de sua cultura. O “primitivo” era acrítico, não-racional, não científico, descontrolado, imoral, irreligioso e, acima de tudo, incapaz de criar “civilização.” Ele [o Antropólogo/o Europeu] tinha, portanto, a necessidade de “salvar” e de “civilizar.”

Os Antropólogos algumas vezes utilizaram esses termos para descrever Africanos e outros “não-Europeus,” mas, mais frequentemente, eles forneceram os materiais e as teorias que, em termos do utamawazo Europeu, suportaram essa imagem. O evolucionismo na teoria etnológica relaciona o utamawazo Europeu (pensamento culturalmente estruturado), ao comportamento Europeu para com os outros e ao utamaroho (princípio vital) Europeu. A dicotomia primitivo/civilizado tem sido utilizada em geral para projetar e substanciar a teoria da evolução cultural que, por sua vez, apoia o utamaroho Europeu. O uso desta dicotomia para fornecer alternativas significativas não foi nem característico da cultura nem apoiado ideologicamente por ela, e essa interpretação certamente nunca contribuiu para o que pode ser generalizado como “a imagem Européia dos outros.” Sem dúvida, a prioridade [thrust] da contribuição do antropólogo para a imagem Européia dos outros tem sido caracterizar os outros como culturalmente negativos, ou seja, como carentes de “civilização” (“alta” cultura) e como representando “estágios iniciais” em seu próprio desenvolvimento. Os antropólogos ajudaram a postular uma espécie de relação “de adulto para criança” entre os Europeus e outros povos. Este tema pode ser encontrado no pensamento de quase todo teórico social Ocidental e muitas vezes é bastante explícito, onde o “primitivo” (o não-Europeu) é comparado ao “filho” da cultura Européia e sua cultura [é comparada] à primeira “infância” da “civilização” Européia.

Este é um aspecto muito significativo da visão Européia dos outros. Está implícito na definição de Edward Tylor do “primitivo”:

. . . a condição inicial do homem . . . pode ser considerada como uma condição primitiva. . . esta condição primitiva hipotética corresponde em grande medida à das tribos selvagens modernas, que, apesar de sua diferença e distância, têm em comum certos elementos da civilização, que parecem resquícios de um estado inicial da raça humana em geral . . . a principal tendência da cultura desde os tempos primitivos até os modernos tem sido da selvageria para a civilização.” *

[ * — Edward Tylor, The Origins of Culture, Vol. I, Harper and Brothers. 1958.]

O “Totem e Tabu” de Freud é um dos trabalhos teóricos mais notáveis a este respeito, mas não é atípico; seus pressupostos básicos são os da maioria dos Europeus que se consideram liberais e “objetivos,” mesmo que eles usem outros para teorizar sobre seu próprio desenvolvimento psicológico e cultural, um que seja supostamente natural para todos os seres humanos. Implícita, mesmo na teoria antropológica esclarecida, é a imagem invidentemente comparativa dos Europeus com pessoas de outras culturas, que se manifesta como uma apologia pouco convincente do “fracasso” daqueles que não “desenvolveram civilização.” *

[ * — Ashley Montagu, “The Concept of ‘Primitive’ and Related Anthropological Terms: A Study in the Systematics of Confusion,” in The Concept of the Primitive, Ashley Montagu, (ed.) The Free Press, New York, 1968, p. 4.]

Harry Elmer Barnes oferece a seguinte caracterização do “primitivo”:

Praticamente falando, a mentalidade primitiva é dominada por comparativa ignorância, e por um tipo de atitude que chamamos de supersticiosa, da qual o homem civilizado e educado de hoje é relativamente emancipado. O homem primitivo também carece da disciplina mental que vem de algum treinamento em lógica. Conseqüentemente, sua imaginação é mais ou menos desenfreada. Ele cria e acredita em um grande número de mitologias. Ele tenta controlar a natureza por magia — isto é, por encantamentos, orações, rituais e festivais. Avanços intelectuais tais como o homem civilizado realizou foram alcançados principalmente através da libertação de tal ingenuidade.*

[ * — Harry Elmer Barnes, An Intellectual and Cultural History of the Western World, Vol. I, Dover, New York, 1965, p. 41.]

Estas são as afirmações em que se encontra a auto-imagem Européia e sua imagem dos outros. Essas imagens são encontradas no que eles chamam de “as histórias intelectuais da humanidade” e as “histórias da civilização Ocidental.” Eles não precisam, e na maioria das vezes não irão, dizer “eu” e “ele” ou “nós” e “eles,” mas usarão termos muito mais prejudiciais para seus “objetos.” Estamos lidando com a relação entre as descrições Européias de outros e suas descrições de “eu” [“self”].

Por Que “o Outro” É Preto (Não-Branco”)

Gobineau, articulando o nacionalismo branco, descreve primeiro os Africanos, depois os Asiáticos:

A variedade negróide é a mais inferior, e fica no pé da escada. O caractere animal, que aparece na forma da pelve, é estampado no Negro desde o nascimento e prefigura seu destino. Seu intelecto sempre se moverá dentro de um círculo muito estreito. Se suas faculdades mentais são embrutecidas ou mesmo inexistentes, ele geralmente tem uma intensidade de desejo e, portanto, de vontade, que pode ser chamada de terrível. Muitos dos seus sentidos, especialmente paladar e olfato, são desenvolvidos à uma medida desconhecida para as outras duas raças.

A própria força de suas sensações é a prova mais marcante de sua inferioridade. Toda comida é boa em seus olhos, nada o desgosta nem o repele. O que ele deseja é comer, comer com furor e excesso; nenhuma carniça é revoltante demais para ser engolida por ele. É o mesmo com odores; seus desejos desmedidos estão satisfeitos com tudo, por mais grosseiro que seja, ou mesmo horrível. A essas qualidades pode-se acrescentar uma instabilidade e capricho do sentimento, que não pode ser ligado a nenhum objeto singular e que, no que lhe diz respeito, elimina todas as distinções de bem e mal. . . . Finalmente, ele é igualmente descuidado de sua própria vida e da dos outros: ele mata voluntariamente, só por matar; e este sacrifício humano, no qual é tão fácil despertar emoção, mostra, diante do sofrimento, uma indiferença monstruosa ou uma covardia que busca um refúgio voluntário na morte. . .
A raça amarela é exatamente o oposto desse tipo. O crânio aponta para a frente, e não para trás. A testa é larga e óssea, muitas vezes alta e projetada. . . . Existe uma maior propensão à obesidade. . . . O homem amarelo tem pouca energia física e está inclinado à apatia. . . . Seus desejos são fracos, e seu poder de vontade é mais obstinado do que violento. . . . Ele tende a mediocridade em tudo. . . . Ele não sonha nem teoriza; ele invente pouco, mas pode apreciar e assumir o que lhe é útil. . . . As raças amarelas são, portanto, claramente superiores às pretas. Qualquer fundador de uma civilização gostaria que a espinha dorsal da sociedade, sua classe média, consistisse em tais homens. Mas nenhuma sociedade civilizada poderia ser criada por eles; eles não poderiam fornecer sua força nervosa, ou colocar em movimento as fontes de beleza e ação. *

[ * — Gobineau, Selected Political Writings, Michael D. Biddiss (ed.), Harper & Row, New York, 1970, pp. 135-138.]

Se compararmos a primeira descrição de Gobineau com sua caracterização da raça “branca” (ver cap. 4 deste trabalho), fica claro que uma é a antítese da outra. Na opinião de Lothrop Stoddard, outro nacionalista branco declarado, os Africanos também são os “mais inferiores” na escala humana e o verdadeiro oposto dos Europeus:

. . . os povos mulatos e amarelos contribuíram grandemente para a civilização do mundo e influenciaram profundamente o progresso humano. O negro, pelo contrário, não contribuiu praticamente com nada. Abandonado a si mesmo, ele permaneceu um selvagem e, no passado, seu único acelerador ocorreu onde homens mulatos impuseram suas idéias e alteraram seu sangue. Os poderes originários dos Europeus e dos Asiáticos não estão nele. *

A raça preta nunca demonstrou um poder construtivo real. Nunca construiu uma civilização nativa. O progresso que alguns grupos negros fizeram foi devido à pressão externa e nunca ultrapassou a remoção dessa pressão, pois o negro, quando abandonado a si mesmo, como no Haiti e na Libéria, retorna rapidamente aos seus modos ancestrais. O negro é um imitador condescendente, mesmo ansioso; mas ele pára aí. Ele adota, mas ele não adapta, assimila, e devolve de forma criativa novamente. . . . Nenhuma das raças pretas, sejam os negros ou os Australianos, demonstraram em tempos históricos a capacidade de desenvolver civilização. Eles nunca passaram os limites de seus próprios habitats como conquistadores e nunca exerceram a menor influência sobre os povos não negros. Eles nunca fundaram uma cidade de pedra, nunca construíram um navio, nunca produziram literatura, nunca sugeriram um credo. . . . Parece que não há nenhum motivo para isso, a não ser a raça. **

[ * — Lothrop Stoddard, The Rising Tide of Colour, Charles Scribner’s Sons, New York, 1920, pp. 91-92.]
[ ** — Ibid, pp. 100-101.]

A “branquitude” é fundamental para a auto-imagem Européia, assim como sua imagem dos outros envolve necessariamente a “negritude” ou a “não-branquitude,” como esta é colocada negativamente em termos Europeus. Este aspecto da estética Européia ajuda a definir o conteúdo do nacionalismo cultural Europeu, e o supremismo branco, dessa forma, torna-se identificável como uma das suas características mais significativas. Declarações como as de Gobineau e Stoddard exigem explicação cultural, ou seja, uma explicação em termos da asili. Nenhuma etnologia da cultura Européia pode, com honestidade, ignorar o significado da cor na mente dos Europeus.

Joel Kovel usa a análise Freudiana para argumentar que, porque os Europeus-Americanos são “brancos,” eles foram capazes de descobrir o “poder” implícito no uso de fantasias anais em um nível cultural; a dicotomia branco/negro de “pureza” e “sujeira.” *

[ * — Joel Kovel, White Racism: A Psycho-History, Vintage, New York, 1971, p. 107.]

Mas, em desacordo, podemos usar termos da mesma análise para argumentar que o desenvolvimento Europeu foi prematuramente congelado em um estágio de infância psicológica (fase anal), que as pessoas de outras culturas superam quando crianças. Movendo-se além de Freud, no entanto, em repúdio à teoria social Européia, em geral, podemos entender os Europeus culturalmente como o yurugu, o ser incompleto e eternamente imaturo.

Enquanto na visão de Kovel, os Africanos (pretos) representam “sujeira,” que é desprezada universalmente pelos seres humanos em um nível reprimido, subconsciente, dois outros teóricos, Frances Welsing e Richard King, também psiquiatras, têm explicações bastante diferentes. Em suas opiniões, essas reações não são comuns a todos os povos. Eles entendem o ódio Europeu à negritude e à cor humana geralmente como sendo peculiares a eles. Eles argumentam que o fenômeno é muito específico da cultura. Ambos Welsing e King concentram-se na ausência de melanina como uma chave para a etiologia do nacionalismo branco. Na opinião de Welsing, o valor Europeu da branquitude é um mecanismo de defesa que surge de uma sensação de inadequação à medida que os Europeus tomam consciência de seu status de minoria extrema no mundo. Essa realização causou uma resposta psicológica. Através de um processo de formação de reação eles mudaram a característica desejada (negritudeo, cor) em uma desvalorizada, e em reverso, a branquitudo (ou a falta de cor), então, poderia ser valorizada. Eles então criaram e sustentaram um sistema no qual a minoria controla a maioria (o “sistema de supremacia branca”). Este processo, segundo Welsing, explica a essência da civilização Européia.

Richard King argumenta que, para os Caucasianos (Africanos que se tornaram “des-melanizados” [meu termo], como resultado de sua sobrevivência física durante o último período glacial na Eurásia), a negritude é traumática. Ela está associada à perda de sua cultura e consciência espiritual causada por um funcionamento diminuído da glândula pineal que secreta melatonina (um hormônio que altera a consciência) e pelo seu isolamento dos ancestrais ​​Africanos. Ele argumenta que os Caucasianos reagiram a essa perda com medo daquilo que se tornou inacessível (desconhecido); então eles transformaram aquilo que eles temiam naquilo que odiavam. A negritude tornou-se má neste processo, e dialéticamente, a branquitude (conhecido) passou a representar bom ou valor.

Essas teorias e outras sobre o comportamento racista branco Europeu serão discutidas mais detalhadamente no Cap. 8. Neste caso, estamos nos concentrando na significação da negritude na imagem Européia negativa dos outros. A dicotomia fundamental de negritude e branquitude na simbologia Européia está, naturalmente, ligada a esse desenvolvimento. É visível na mitologia, tanto quanto podemos dizer, desde o início de sua experiência cultural. Merlin Stone em seu trabalho sobre o racismo, chama a atenção para o Zend-Avesta (aproximadamente 600 AEC.), a literatura religiosa dos Arianos atribuída a Zaratustra. Stone sugere que a mitologia encontrada ali expressa as crenças herdadas de uma tradição oral muito mais arcaica. Ela gira em torno da grande e contínua batalha entre dois deuses e seus respectivos seguidores. Ahriman é escuro e maligno, e aqueles que o seguem são uma “raça de demônios” escura. Ahura Mazda é o deus da luz e do bem; seus seguidores são inimigos do mal. *

[ * — Merlin Stone, Three Thousand Years of Racism, New Sybiline Books, New York, 1981, p. 20.]

Vulindlela Wobogo lembra-nos que o sistema de castas na Índia encontra suas origens na invasão Ariana dessa civilização em cerca de 1700 AEC. Wobogo argumenta que toda a teoria racista pode ser rastreada à origens Européias. Em apoio a este ponto de vista, ele usa a teoria do Berço do Norte de Cheikh Anta Diop sobre o desenvolvimento cultural Indo-Europeu. (A teoria de Diop é discutida nos Capítulos 2 e 8 deste estudo.) Wobogo refere-se, também, a um ensaio de Mlalaskera e Jagatilleke intitulado “Budismo e a Questão da Raça,” que discute as idéias dos primeiros professores religiosos Budistas. De acordo com essas idéias, a raça humana é dividida em seis espécies, cujas características são imutáveis, determinando habilidades e status. Esta é a origem do sistema de castas. Cada “espécie” é designada por uma cor: “Às espécies Pretas pertenciam os açougueiros, rebocadores, caçadores, pescadores, dacoit e executores e todos aqueles que adotam um modo de vida cruel.” (Veja Mlalaskera e Jagatilleke. *)

[ * — Citado em Vulindlela Wobogo, “Diop’s Two Cradle Theory and the Origin of White Racism,” em Black Books Bulletin, Vol. 4, Nº 4, Winter, 1976, p. 26.]

Eles eram a casta mais baixa, de pele mais escura. O sistema de castas que evoluiu fez daqueles de origens Dravídicas, os primeiros governantes da Índia, os marginalizados ou “intocáveis,” cujas sombras não devem sequer tocar uma pessoa de uma casta superior. Os Dravidianos são pretos, de fato tão pretos quanto qualquer ser humano na Terra. Varna, que significa “cor da pele,” é a palavra que designa “casta.”

Aqui vemos a imagem Ariana dos outros como preta, repulsiva, e inferior. Enquanto as espécies “brancas puras,” o grupo mais alto, de acordo com os ensinamentos religiosos desses Arianos, eram os santos perfeitos (auto-imagem Ariana). * As idéias de reencarnação e Karma ajudaram a explicar que esta condição santa não se devia a qualquer coisa que os membros deste grupo tivessem feito ou alcançado, mas sim ao seu estado natural de nascimento (atribuído), assim como o grupo preto era inferior e mal por nascimento e nunca poderia esperar mudar.

[ * — Citado em Vulindlela Wobogo, “Diop’s Two Cradle Theory and the Origin of White Racism,” em Black Books Bulletin, Vol. 4, Nº 4, Winter, 1976, p. 26.]

A Teoria de Cress tem algumas implicações mais imediatas e relevantes que se relacionam com nossa inspeção da literatura nacionalista branca. Há um tema que surge continuamente nas teorias do supremismo branco que parece apoiar as observações de Welsing. Os Europeus expressam o medo de serem “superados em número,” e onde essa circunstância ainda não existe, eles parecem antecipar a probabilidade de uma mudança na relação entre eles e as pessoas pretas (“não-brancos”) que estão próximos deles. Como diz Welsing, o simples fato da composição da população mundial seria suficiente para encher os Europeus com essa ansiedade — dada a sua percepção do mundo como um “outro” basicamente hostil que deve ser controlado. Mas os próprios Europeus criaram ambientes forçados nos quais seu status minoritário é intensificado.

A natureza do utamaroho Europeu tanto define os outros como concorrentes e inimigos, quanto, ao mesmo tempo, compele os Europeus a deixar o “lar” (onde estão, no mínimo, cercados por aqueles que se parecem e agem como eles) e se mudar para terras estrangeiras nas quais eles são os “estranhos.” As situações coloniais e as plantações escravistas são exemplos típicos. A sensação de poder do Europeu é estimulada pelo fato de que eles estão entre os poucos brancos que controlam muitos “nativos” de pele escura. No entanto, imagine, também, o profundo medo subjacente — o pesadelo recorrente — que algum dia esses “subordinados naturais” venham a se “unir” e os superem por números absolutos ou os matem enquanto dormem. Considere a dinâmica emocional apenas parcialmente reprimida de uma pessoa branca na “Rodésia” que vivia com o medo de que a qualquer momento esta [Rodésia] se tornaria o Zimbábue e que ela seria destruída no processo. Na África do Sul, a proporção de brancos para Africanos é necessariamente uma questão política, e os brancos são abertamente encorajados a procriar. Na América, os intelectuais se permitem racionalizar seus medos identificando sanidade ecológica com contracepção, mas é o crescimento da população preta que inevitavelmente assusta a América branca.

A essência de qualquer teoria eugenista é a eliminação de povos “não-brancos” e a proliferação de brancos; pois, no processo de tornar a cultura Européia o que esses arquitetos querem que ela seja, eles também a tornam “mais branca.” A “melhoria” eugênica da “raça branca” pressupõe indiretamente a destruição e exclusão de outros povos.

O argumento de Madison Grant é representativo:

Nas condições existentes, o método mais prático e esperançoso de melhoria da raça é através da eliminação dos elementos menos desejáveis ​​no país, privando-os do poder de contribuir para as gerações futuras. . . . Na humanidade, não seria uma grande dificuldade garantir um consenso geral da opinião pública quanto aos menos desejáveis, digamos, dez por cento da comunidade. Quando este residuo humano desempregado for eliminado junto com a grande massa de crime, pobreza, alcoolismo e debilidade associados a ele, será fácil considerar a responsabilidade de restringir ainda mais a perpetuação dos tipos menos valiosos que ainda restarem. Por este método, a humanidade pode tornar-se suficientemente inteligente para escolher deliberadamente as estirpes mais vitais e intelectuais para conduzir a raça. *

[ *— Madison Grant, The Passing of the Great Race, Charles Scribner’s Sons, New York, 1921, pp. 53-54.]

Mais uma vez, é possível interpretar este tema como sendo “etnológico” em termos de ideologia Européia; ou seja, provenientes da asili da cultura. Ele é consistente e remanescente do ideal social Platônico. Lothrop Stoddard expressa precisamente as preocupações sobre as quais Frances Welsing baseia sua teoria:

Os brancos são. . . os reprodutores mais lentos, e, sem dúvida, se tornarão mais lentos ainda, uma vez que setor após setor da raça branca revela esta taxa de natalidade reduzida, que na França atingiu o extremo de uma população estacionária. *

[ * — Stoddard, p. 17.]

Stoddard refere-se, por outro lado, à “extrema fecundidade” do “negro” e o rotula como o “mais rápido dos reprodutores.” “Nos cruzamentos étnicos, o negro exibe sua potência, pois o sangue negro, uma vez que entra no estoque humano, parece nunca mais sair.” * O trabalho de Stoddard inteiro, “The Rising Tide of Color,” um dos mais significativos na teoria nacionalista branca, é, de fato, baseado no tema do perigo iminente de Africanos e outras pessoas de cor derrubarem seu inimigo comum, o homem branco.

[ * — Ibid, p. 90.]

Para uma expressão contemporânea deste medo Europeu de ser superado em número e um exemplo etnográfico da visão da Europa Ocidental dos outros, oferecemos a seguinte declaração de P.W. Botha, tirada de um discurso pronunciado em 1985, dirigido a seus “amados Africânderes Brancos”:

   Prioridade número um, não devemos, de modo algum, permitir mais aumentos da população Preta, para que não sejamos sufocados muito em breve. [Ele defende o uso de] Armas químicas. . . para combater qualquer aumento de população adicional [e] destruidores de fertilidade.

Também envio um pedido especial a todas as mães Africânderes para duplicar a sua taxa de natalidade. . . devemos nos empenhar imediatamente para garantir que os homens Pretos sejam separados de suas mulheres e que multas sejam impostas a esposas casadas que tenham filhos ilegítimos.

[Ele se refere aos Africanos/pretos como] selvagens gananciosos que estão atrás do nosso sangue. . . . Não podemos simplesmente ficar parados e assistir todos os lauréis que criamos serem saqueados por esses cafres [kaffirs] bárbaros e preguiçosos. . .

É nossa forte convicção (portanto) que o Preto é a matéria-prima para o homem branco. Então, Irmãos e Irmãs, juntemos as mãos para lutar contra esse diabo Preto. . .

Por esta altura, todos nós já vimos na prática que os pretos não podem se governar. Dêem-lhes armas e eles vão se matar. Eles não são bons em nada além de fazer barulho, dançar, se casar com muitas esposas e fazer sexo. . . . Aceitemos que o homem Preto é o símbolo da pobreza, inferioridade mental, preguiça e incompetência emocional.

. . . Nossos especialistas deveriam trabalhar dia e noite para colocar o homem Preto contra seus companheiros. Seu senso inferior de moral pode ser explorado lindamente. E aqui está uma criatura que não tem previsão [foresight]. . . . em média, o Preto não planeja sua vida para além de um ano. . . .*

[ * — P.W. Botha, “Why We Hate Blacks,” in The Shield, the ooficial African American newspaper of Hunter College. Reprinted from the South African newspaper, Sunday Times, August 18, 1985, in the by-line of David G. Maillu, p. 4]

O nacionalismo branco de Botha é óbvio. É do vintage que agora embarassa o típico branco hetero Americano. Botha não tem nada a esconder. Ele é o que Kovel pode chamar de racista “dominativo”: direto e obsessivo. O liberal Americano branco é um racista “aversivo,” que conscientemente ou não, participa de uma sociedade “meta-racista” e, portanto, não consegue escapar do seu racismo institucional inerente. * A retórica do racista dominativo e do racista aversivo pode variar, mas o sentimento subjacente e o resultado final são os mesmos.

[ * — termos de Kovel: Joel Kovel, White Racism: A Psycho-History, Morningside edition, Columbia University Press, New York, 1984, p. xi.]

Tomemos, por exemplo, o argumento de Ben J. Wattenberg como expressado em seu livro The Birth Dearth [A Escassez de Nascimentos]. *

[ * — Ben J. Wattenberg, The Birth Dearth, Pharos Books, New York, 1987.]

O livro está subtitulado: What happens when people in free countries don’t have enough babies? [O que acontece quando pessoas em países livres não têm bebês suficientes?] Wattenberg não diz, como faz Botha, que ele está preocupado que os Africanos e outras pessoas de cor venham a eclipsar os brancos no mundo, de fato, ele nega que a raça seja um problema. Sua única preocupação com essa “questão sensível,” como ele a chama, é que, de acordo com algumas projeções, até o ano de 2080, o estoque branco Europeu majoritário Americano de 80% (1986) cairá para 60% e ainda estará declinante. *

[ * — Ibid, p. 113.]

E embora a América não seja, em sua opinião, “um país essencialmente racista ou intolerante, anti-preto ou anti-Asiático, anti-Hispânico ou anti-Islâmico,” dado os padrões atuais de fertilidade e imigração, surgem algumas dúvidas sobre o futuro. Essas “dúvidas,” de acordo com Wattenberg, não são aquelas dos racistas, mas “apenas daqueles que se perguntam para onde estamos indo e que temem que aonde estamos indo não é onde queremos ir.” Ele nos remete para um livro escrito pelo governador do Colorado Richard Lamm e Gary Imholf intitulado: The Immigration Time Bomb: the Fragmenting of America [A Bomba-relógio da Imigração: a Fragmentação da América]. O livro aborda a questão do aumento do número de imigrantes não-brancos do “terceiro mundo,” enquanto o número de imigrantes Europeus diminui. * A resposta de Wattenberg a este “problema” é bastante simples. Aos Americanos brancos e de classe média ele diz: começem a se reproduzir! Às mães Africânderes, Botha diz: dupliquem sua taxa de natalidade!

[ * — Ibid, p. 115.]

Botha diz que os pretos são “bárbaros.” Wattenberg diz que os países “menos desenvolvidos” do mundo precisam do “Ocidente” para modelos de riqueza, liberdade, tecnologia, “mercados livres” e “valores democráticos modernos.” * As implicações são as mesmas. Se deixados sozinhos, os Africanos e outros povos “não-ocidentais” não irão “progredir.” Mas para Wattenberg, as questões são aquelas de cultura, progresso, e ideologia — e não de raça — ou pelo menos é isso que ele afirma.

[ * — Ibid, p. 98.]

Qual é o problema nesta então-chamada visão não-racial? Neste “mundo ocidental” não haverá crescimento até o início do século XXI (Wattenberg chama isso de “escassez de nascimentos” [“birth dearth”]), então haverá diminuição. Ele pergunta o que isso significará para o mundo? Sua resposta é que o declínio na taxa de natalidade nas nações Ocidentais pode eventualmente levar uma “pesada carga econômica, geopolítica, pessoal e social.” *

[ * — Ibid, p. 33.]

Wattenberg está preocupado com o bem de todos nós! Ele diz, “confiando na sua superioridade tecnológica e organizacional, as democracias industriais poderiam proteger sua posição e talvez até aumentar o crescimento dos valores democráticos em outros lugares.” * Quão magnânimo! Wattenberg argumenta que, com um declínio da população, o “mundo Ocidental” não pode compartilhar esses benefícios com aqueles menos afortunados, nem pode conferir sua liderança. A questão é ideológica e cultural, afinal. Aqueles que ameaçam o poder da “democracia” simplesmente [por acaso] são pretos.

[ * — Ibid, p. 89.]

Wattenberg compara as taxas de natalidade projetadas das “democracias industriais” com as dos “países menos desenvolvidos mais o bloco Soviético” de 1950 a 2100. *

[ * — Ibid, p. 45, Chart 4J.]

Para que não haja nenhuma questão sobre quem são as “democracias industriais,” elas estão listadas: Canadá, EUA, Austrália, Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Japão. (Em outra lista, Wattenberg inclui Israel.) Com exceção do Japão, todas essas nações são nações dominadas por brancos e/ou de maioria branca. Elas podem ter nomes diferentes, mas são meramente “províncias” de uma única hegemonia Européia branca. O Japão se aproxima do nacionalismo cultural Europeu, incluído na lista devido à superioridade tecnológica. Mas a taxa de fertilidade projetada pelo Japão também é lenta, com uma idade mediana para o ano 2025 projetada para ser de quarenta e quatro. * Então eles não são uma ameaça numérica.

[ * — Ibid, p. 67.]

Wattenberg declara seu medo, “o Terceiro Mundo crescerá tanto absolutamente quanto relativamente, nas próximas décadas.” Ele então pergunta: “A cultura do Terceiro Mundo poderia se tornar dominante? Poderia ela erodir nossa cultura?”*

[ * — Ibid, p. 97.]

Faz pouca diferença se ele é considerado um culturalista ou um racista. A partir de uma perspectiva Africano-centrada, nós somos nossa cultura. Descartar um é rebaixar o outro. Temer a cultura Africana é temer os Africanos. Wattenberg torna este medo explícito. Na verdade, ele está dizendo que, se houver mais deles, sua cultura nos contaminará. Se houver menos de nós, haverá menos da nossa cultura e, portanto, teremos menos poder. * Mas, diz Wattenberg, “essa visão não deve ser vista simplesmente como chauvinismo Ocidental,” porque o Ocidente tem tanto para dar ao mundo.**

[ * — Ibid, p. 98.]
[ **— Ibid, pp. 97-98.]

Aqui vemos a dialética da auto-imagem e imagem dos outros como esta funciona para realizar a asili cultural e para expressar o utamaroho. O europeu é o “salvador,” o “civilizador;” portanto, o “não-europeu” deve ser o “selvagem” pecador. O fanatismo de Botha é expresso através do flagrante paternalismo de Wattenberg. Para Wattenberg, “o Ocidente” é o “primeiro mundo,” oferecendo esperança de liberdade para as pessoas nos países comunistas. * Portanto, o mais grave problema do mundo é o “declínio do Ocidente,” porque os portadores da cultura, os Europeus brancos da classe média e da classe alta e os descendentes Europeus têm uma taxa de fertilidade tão baixa que causa uma “escassez de nascimentos” entre sua população.

[ * — Ibid, p. 99.]

Wattenberg apresentou a declaração por excelência do nacionalismo branco liberal contemporâneo, em que a imagem dos Europeus e a cultura que eles sustentam é “notável, potente, produtiva, humana, benéfica” — “a última melhor esperança da humanidade.” *

[ * — Ibid, p. 168.]

A imagem dos outros que ele projeta é como sendo “menos desenvolvidos (portanto, preguiçosos, indolentes, pobres), menos capazes de se desenvolver (portanto incompetentes, sem cultura, auto-indulgentes), dependentes da liderança branca da Europa Ocidental (portanto, não-progressivos, inaptos para auto-governo, incapazes de planejar o futuro), férteis e ameaçadores para o modo de vida Americano. A análise final é que o nacionalista branco, seja da variedade Gobbineau, Stoddard, Botha ou Wattenberg, é petrificado [assombrado] pela fertilidade preta, porque esta ameaça o domínio branco. Esta ansiedade é consistente com a asili, o utamawazo, e o utamaroho Europeus.

 

 

Escravidão, Suas Conseqüências, e a Imagem dos Outros

A relação entre a escravização Européia de outros povos e a imagem Européia dos outros é uma relação de interdependência; elas se alimentam uma da outra. Tal como acontece com todo comportamento Europeu característico, a escravização de outros povos depende da natureza do utamaroho Europeu. Com isso quero dizer que não é absolutamente preciso dizer que as imagens apresentadas sobre povos Africanos serviram para justificar ou racionalizar a escravidão, se por isso se entende que o fato da escravidão era anterior à imagem. Embora os defensores da escravidão fossem muito dependentes de imagens negativas para seus argumentos, deve-se perceber que esse comportamento por parte dos Europeus nunca poderia ter sido iniciado nem sustentado se não tivesse sido, desde o início, consistente com o utamaroho Europeu. E a imagem dos Africanos que acompanhou o tráfico de escravos existia muito antes deste ser iniciado e ainda sobrevive.

James Pope-Hennessy argumenta contra aqueles que sustentam que inicialmente a escravidão não tinha nada a ver com o nacionalismo branco. Os defensores desta posição apontam para alguns exemplos isolados de Ingleses escravizados por comerciantes de escravos portugueses, ou seja, em situações anômalas. Pope-Hennessy, por outro lado, deixa clara a diferença essencial entre a visão Européia de outros Europeus e sua imagem dos Africanos.

Sem dúvida, eles sofreram tormentos, mas eles nunca foram considerados como os escravos negros e seus descendentes, como propriedade mobiliária [chattel property] — como, isto é, uma forma automaticamente inferior de humanidade, uma espécie de animal doméstico de duas pernas.*

[ * — James Pope-Hennesy, Sins of the Father, Capricorn, New York, 1969, p. 47.]

(Platão não se opôs à escravidão, mas apenas à escravização de outros Gregos).
Os argumentos utilizados para apoiar a escravização Européia dos povos Africanos são significativos aqui, devido à imagem dos Africanos sobre a qual os argumentos dependem. Esta imagem, embora apresentada de forma descarada e em termos que agora são constrangedores para o intelectual Europeu, é consistente e dialeticamente relacionada com a auto-imagem expressa na declaração citada do trabalho de Harry Elmer Barnes. (Veja o Capítulo 4 deste trabalho.) Os pressupostos sobre os quais as afirmações de Barnes repousam, conduzem etnologicamente às conclusões dos escravistas. (Veja a citação anterior de Barnes neste capítulo.) Aqui estão dois exemplos da imagem dos outros do escravista branco:

A história social, moral e política, bem como a história física da raça negra, tem forte testemunho contra eles; Ela fornece a prova mais inegável de sua inferioridade mental. Em nenhuma época ou condição, o negro real mostrou a capacidade de descartar as cadeias de barbárie e brutalidade que há muito têm encadeado as nações daquela raça, ou de se erguer acima da nuvem comum de trevas que ainda paira sobre eles. *

  Quanto à raça preta, já nos encontramos em uma condição que sugere seriamente a limitação dos direitos políticos até agora, talvez por engano, concedidos a eles, a inauguração de uma política nacional humana que, por ação cooperativa da nação e dos estados do sul, deve reconhecer que os pretos são uma raça de crianças, que requer orientação, treinamento industrial, e desenvolvimento de autocontrole, e outras medidas destinadas a reduzir o perigo dessa complicação de raça, anteriormente seccional, mas agora rapidamente tornando-se nacional. *2

[ * — Citado em James W. Vander Zanden, “The Ideology of White Supremacy,” em White Racism, Barry N. Schwartz and Robert Disch (ed.), Laurel, New York, 1970, p. 128.]
[ *2 — Paul Jacobs, et al., To Serve the Devil, Vol. II, Vintage, New York, 1971, p. 176, nota de rodapé.]

As imagens são consistentes com as apresentadas pelos nacionalistas Europeus que consideramos no cap. 4 e pela maior parte da antropologia da Europa Ocidental; elas atuam para apoiar a característica auto-imagem Européia. No entanto, é feita uma tentativa para descartar as imagens (e a escravidão também) como sendo inconsistentes, “fora do caráter,” fora de ” sintonia” com o impulso principal do desenvolvimento ou com a visão geral de mundo Européia. As imagens e o comportamento com que correspondem não podem ser “repudiados” pelos Europeus até que a natureza do utamaroho Europeu tenha mudado e isso exigiria uma asili diferente, uma nova cultura. (Uma cultura qualitativamente diferente não pode ser criada pelas mesmas pessoas). É devido ao utamaroho, que serve de base para esses tipos de imagens dos outros, ainda ser característico da cultura Européia, que é possível que os Europeus se comportem de uma maneira sistematicamente agressiva e antagônica em relação aos povos “não-Europeus.”

As “culturas antigas,” diz Wayne MacLeod, “precisavam das massas trabalhadoras, aborígenes ou importadas, para tarefas domésticas de vida, liberando assim o homem conquistador para pensamentos e atos mais elevados.”*

[ * — Wayne MacLeod, The Importance of Race in Civilization, Noontide Press, Los Angeles, 1968, p. 73.]

O homem “não-Europeu” é “não-homem” [“nonman”]. A apreensão do “outro” “não-humano” é natural para a cultura que define “humanidade” em termos de suas próprias ambições, seu próprio “racionalismo.” Não há nenhuma questão de moralidade envolvida aqui, uma vez que “escravos,” simplesmente, não entram no sistema Europeu de ética. O “escravo,” como a máquina, é simplesmente uma ferramenta ou um recurso usado pelos Europeus para promulgar a “história” que eles percebem como seu “destino.” MacLeod diz:

Embora o Homem Germânico seja a última das raças conquistadoras, ele não precisa mais da instituição da escravidão para o avanço cultural; as máquinas assumiram as funções escravas. Não é coincidência que a raça mais dominadora-de-escravos no passado seja também aquela que hoje procura promover seus bens técnicos.*

[ * — Wayne MacLeod, The Importance of Race in Civilization, Noontide Press, Los Angeles, 1968, p. 73.]

Mas será que a natureza do utamaroho Europeu e a imagem dos outros sobre a qual esta depende mudaram com o desaparecimento da escravidão? Pelo contrário, os Europeus/Europeus-Americanos continuaram a considerar como sua obrigação organizar racionalmente o mundo, e um regime branco Sul-Africano representa para eles essa ordem racional.

Merlin Stone entende o racismo como um processo que inicia em um aspecto econômico (motivado pela ganância), então racionalizado em termos culturais (“racismo cultural”). Isso resulta no que ela descreve como “estágios” de racismo em que a terra, os recursos e o trabalho são roubados de um grupo por outro e o estado de apoio do racismo cultural em que as crenças sobre o grupo racial ou étnico sob ataque são propagadas pelos conquistadores. Stone assiduamente evita o óbvio na apresentação de sua teoria: que esse padrão de comportamento é característico dos Europeus. No entanto, a maior parte da sua “evidência” de racismo é retirada da experiência Ariana.

O “racismo cultural” de Stone envolve claramente nossa “imagem dos outros.” Ela diz que o roubo de terras é apoiado pela afirmação de que as vítimas são “inatamente imorais, mesmo inatamente más, por exemplo, demônios, canibais, caçadores de cabeças, selvagens, sanguinários, impiedosos, sádicos, viciosos, assassinos de crianças, estupradores, pagãos, aliados do diabo, criminosos, desonestos, maliciosos, sexualmente perversos, desonestos, ardilosos, etc.” *

[ * — Ibid, p. 3.]

Neste estágio, a inferioridade moral do “outro cultural” (meu termo) é a questão. Ela continua dizendo que o propósito do racismo cultural é incitar a agressão não provocada e a violência extrema característica do primeiro estado de racismo econômico. (Mas essas imagens não são inventadas, são parte do desdobramento da asili.) Segundo Stone, este estágio do “racismo cultural” dura até que os “outros” sejam subjugados; Sua terra está agora no nome do conquistador.

Na próximo estágio do racismo econômico, a violência aberta não é tão necessária. A forma de apoio do “racismo cultural” nesta etapa é aquela em que os objetos de agressão são “inatamente mentalmente inferiores, por exemplo, menos capazes de aprender, menos inventivos, menos criativos, menos motivados para realizações culturais, em um menor nível de desenvolvimento mental humano, etc. * Estas afirmações são então institucionalizadas, o que força sua internalização sobre aqueles que foram escravizados ou conquistados.

[ * — Stone, p. 4]

Esta é a função da imagem dos outros Européia: (1) apoiar a auto-imagem Européia e (2) ser imposta sobre os “outros culturais” de tal forma que eles realmente se tornem aquilo que foram “imaginados” para ser. Alguém se torna um “escravo” quando pensa como um “escravo.” Assim, uma realidade é construída. A arma mais eficaz contra essa imagem imposta é uma forte consciência nacional: Libertação é uma questão de consciência.

Mídia e a Imagem dos Outros

Após a escravidão, durante a “Reconstrução” nos Estados Unidos (o final dos anos 1800 e início dos anos 1900), a imagem do africano sofreu sob um ataque sistemático de propaganda visual, nas mãos dos brancos Americanos. Agora que a escravidão, como uma instituição, havia terminado, a tentativa de desumanizar os Africanos por parte do Europeu teria que continuar usando outros métodos. Era importante para o sistema de supremacia branca que (1) os brancos continuamente reforçassem sua consciência Européia à custa da imagem Africana, por exemplo, através da nossa degradação, e (2) que os Africanos continuassem a agir como “escravos” de um novo tipo e de fato se tornassem o que os Europeus retratavam eles para serem. O objetivo do Europeu era contrariado na medida em que uma consciência Africana era sustentada entre pessoas de ascendência Africana que lhes permitia rejeitar a imagem criada pelos Europeus.

Foi durante esse período que uma mídia controlada pelos Euro-Americanos começou sua longa carreira como uma das armas mais eficazes utilizadas para garantir a exploração e a dependência de pessoas de ascendência Africana. Rostos pretos foram usados para vender tudo, desde pasta de dente até panquecas. Imagens distorcidas apareceram em caixas e tubos, e até em palcos de vaudeville, para fazer pessoas brancas rir. Mas a mídia realmente fez seu trabalho bem quando pessoas pretas também riram e, em 1987, quando pessoas pretas “chegaram” [“arrived”] e, portanto, poderiam colecionar esses produtos vintage de uma mídia racista como “recordações negras” [“black memorabilia”].

O “rosto” que aparecia, distorcia características cuidadosamente escolhidas da fisionomia Africana: a cor da pele, a textura do cabelo, os contornos dos lábios e do nariz. As imagens chamavam atenção para características que mais contrastavam com as feições Européias. A asili da cultura Européia exigia esse tipo de criação e destruição de imagem para o aprimoramento da auto-imagem Européia. Se eles deviam ser considerados fisicamente lindos, aquilo que eles consideravam seu oposto deveria ser projetado como grotesco. Aquilo que tinha sido positivamente expresso na estética Africana, ou seja, o cabelo trançado, a pele escura e as feições completas, agora eram feitos para parecer ridículos. Os intrincados padrões de trança Africanos tornaram-se tranças retas de maneira artificialmente rígida com fitas amarradas em torno de suas extremidades. A pele Africana tão escura e suave tornou-se um preto brilhante plástico, com olhos virados acentuados e uma boca alargada e aberta de lábios vermelhos. Essas imagens, é claro, tinham o duplo efeito de aumentar a auto-estima Européia (a qual deve ter sido excepcionalmente vulnerável a ponto de exigir tal reforço extremo), enquanto ao mesmo tempo devastando a auto-estima Africana, à medida que os Africanos substituíam uma estética Africana por uma estética Européia.

Em seguida, Hollywood assumiu o negócio de criação de imagens, e não só as pessoas pretas na América poderiam ser saltirizadas dessa maneira, mas também Africanos no continente. O resultado foi que tanto os Europeus como os Africanos rejeitaram o que era visualmente Africano. Como Hollywood (a indústria cinematográfica) reinou suprema na criação e no reforço da auto-imagem Européia, ela também teve que ser a arma mais devastadora na destruição da auto-imagem dos povos “não-Europeus,” uma vez que esse é o outro lado da moeda. Visto de outra forma, os filmes eram ferramentas para criar uma imagem negativa dos outros. Dos safaris Africanos às comédias de Bob Hope, com Cleópatras brancas e “Índios” enlouquecidos, uma enorme variedade de estupidez flagrante gritava, atacava, ria e se arrastava pela tela, representando povos “não Europeus” na consciência Européia. De fato, a imagem criada na modalidade de Hollywood é um exagero cartoonesco das características já conjuradas pela psiquiatra Européia nas profundezas de seu utamawazo cultural (estrutura cognitiva coletiva) e utamaroho (tom emocional coletivo). O que foi adicionado foi a imagem negativa audiovisual: Primeiro, os Amoses e Andys e os Beulahs; e agora os Neils (para substituir Hattie McDaniel), os novos palhaços como George Jefferson (para substituir Steppin ‘Fetchit) e a síndrome da puerilidade perene de sentimento nacionalista anti-Africano de Arnold Wilson/Webster — todos desferiram seus golpes para a auto- imagem Européia. Os vídeo-clipes musicais competem com essas outras formas de mídia na produção do grotesco — a imagem dos outros Européia.

Existe ainda outro, novo gênero da expressão da imagem dos outros Européia. A “comédia” em que, como espectadores de filmes sofisticados da década de 1980, rimos de situações inventadas criadas pela interação da cultura Européia “moderna,” “civilizada,” com a cultura isolada “atrasada,” “primitiva.” Sob o riso há uma imagem dos Africanos que apoia dialeticamente a auto-imagem Européia positiva. Em “Os deuses devem estar loucos,” ingênuos Khoi-Khois no deserto do Kalahari ficam desorientado ao encontrar uma garrafa de Coca-Cola. Os aspectos de sua cultura são impiedosamente ridiculizados enquanto eles tentam entender o “significado” do objeto. O filme é justificado pelos liberais — brancos e pretos igualmente — que afirmam que o filme está fazendo uma declaração sobre a “pureza” da cultura Africana em contraste com a cultura Européia corrupta. De alguma forma, este ponto sutil se afoga em um mar de risadas dirigidas à imagem dos Africanos que o filme oferece. Da mesma forma, no filme Airplane, uma mulher branca organiza uma festa Tupperware para as mulheres Africanas “nativas,” e um homem branco tenta ensinar basquetebol aos homens Africanos. Isso é tudo na brincadeira, assim somos informados. Mas esse tipo de humor racial para nós não tem lugar em um mundo ainda muito controlado pelo sistema de supremacia branca. De uma perspectiva Africano-centrada, usando o conceito de asili, o objetivo de tais filmes se torna claro. Eles visam o negócio de criação e sustentação de imagens dos outros para os Europeus que reforçam sua percepção de si mesmos como superiores em relação a seres inferiores.

 

Exigências do Utamaroho Europeu

A auto-imagem funcionalmente “bem sucedida” dos Europeus depende de uma imagem negativa dos outros e da hipótese da existência de seres inferiores. Esta não é uma dinâmica universal da cultura nem, portanto, da natureza humana. O orgulho natural e o compromisso com a autodefinição em outras culturas não se baseiam, nem dependem da existência de outros povos entre os quais esses “eus culturais” devem ser supremos. A supremacia mundial Européia faz parte da definição de ideologia Européia e ajuda a determinar o caráter da imagem Européia dos outros. Nesta visão de mundo, o universo deve ser conquistado. É “justo” (ou seja, “racional”) que inferiores devam ser conquistados por seres superiores. Desta forma, a autodefinição e a auto-realização Européias tornaram-se dependentes de uma imagem “negativa” dos outros (em termos de valor Europeu) e de um correspondente conceito desumanizante dos outros. Poderíamos dizer que a cultura Européia começa seu desenvolvimento, como uma entidade cultural distintiva, com a agregação de povos, cujo caráter do utamaroho se baseia na imagem de um mundo em oposição a si mesmos e na projeção de si mesmos nesse mundo como conquistadores e como seres supremos. Podemos identificar a “Ocidentalidade” como aquela definição do eu e do mundo que naturalmente vê o “eu” em uma relação de poder com o “outro” (o resto do mundo). Nesta visão, a asili, ou semente da “Ocidentalidade,” é a relação de poder e foi plantada muito cedo na experiência Indo-Européia. Como resultado, está na natureza do utamaroho Europeu que ele não pode ser sustentado por uma ética meramente intracultural ou a idéia de um ambiente autônomo que gere o princípio da harmonia e do respeito mútuo. É a cultura Européia que depende da existência de outras culturas. Talvez o hábito de se relacionar com o resto do mundo com base em uma luta sem fim por poder tenha transbordado e infestado a trama interna da própria sociedade. Circularmente, a necessidade de se relacionar com “outros” dessa maneira pode ser explicada pela necessidade funcional de mitigar o comportamento destrutivo internamente.

Visto de maneira diferente, o processo começa com o eu embrionário Europeu (Indo-Europeu), que teme toda a diferença. Esse medo é então traduzido para um paradigma epistemológico pelo Europeu arcaico (Grego) onde a oposição de eu/outro se torna primordial. Então, na Europa Medieval e Renascentista, o eu percebido é expandido, de modo que a continuidade da cultura possa ser assegurada (a asili realizada), caso contrário, seria autodestruída. Portanto, a agressão contra “outros culturais” torna-se uma necessidade.
Com este entendimento, a imagem dos outros se torna uma expressão “racional” ou “lógica” do utamawazo; isto é, inter-relacionada e interdependente com seus outros temas e princípios dominantes. Quando Thomas Jefferson disse: “Os Pretos, quer sejam originalmente uma raça distinta, ou diferenciados pelo tempo e circunstâncias, são inferiores aos brancos no dote do corpo e da mente,” ele estava simplesmente manifestando a necessidade do utamaroho Europeu por um objeto inferior.

[ * — Citado em Marvin Harris, The Rise of Anthropological Theory, Thomas Y. Crowell, New York, 1968, p. 69.]

A extremidade da imagem que foi oferecida reflete a intensidade da necessidade de supremacia e poder. Não deve nos surpreender, portanto, que foram os cientistas, os filósofos, os povos “iluminados” da cultura Européia que mais contribuíram para a imagem negativa dos outros. Dado seu status ideológico privilegiado na cultura, as imagens que eles ofereceram tornaram-se normativas. Esta função não era incompatível com seus compromissos racionalistas. É somente agora no Ocidente contemporâneo que ela se tornou “irracional,” ou seja, disfuncional, expressando explícita ou abertamente uma imagem negativa de pessoas de outras culturas. No Ocidente contemporâneo, o modo de hipocrisia e retórica política é a “ordem do dia.” Na verdade, foram os teóricos da cultura Européia Ocidental que definiram os Africanos como “não muito humanos” ou “apenas quase humanos” para a cultura como um todo. Quem estava melhor qualificado para fazer esses pronunciamentos, uma vez que “humanidade” [“humanness”] foi associada por meio do utamawazo Europeu com “racionalidade” e a capacidade de criar cultura Européia (civilização).

Todas as afirmações a seguir são consistentes com as definições do utamawazo conforme descritas no Cap. 1 e, portanto, são “lógicas,” dada a natureza da asili e os valores da cultura.

 Em algum período futuro, não muito distante, medido por séculos, as raças civilizadas do homem quase certamente exterminarão e substituirão as raças selvagens em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomórficos. . . sem dúvida, serão exterminados. A ruptura será então ampliada, pois intervirá entre o homem em algum estado mais civilizado. . . do que o Caucasiano, e algum macaco tão baixo quanto um babuíno, ao invés de como no presente entre o negro ou o Australiano e o gorila.
Charles Darwin *
[ * — Citado em George Stocking, Race, Culture and Evolution, The Free Press, New York, 1968, p. 113.]

Se o entendimento deles não é diferente de nosso, é pelo menos muito inferior. Eles não são capazes de nenhuma grande aplicação ou associação de idéias, e não parecem formados nem para as vantagens nem para os abusos da filosofia.
Voltaire (sobre os Africanos)*
[ * — Citado em Harris, p. 87]

Nunca houve uma nação civilizada de qualquer outra aparência que a branca, nem mesmo qualquer indivíduo eminente em ação ou especulação. Nenhum fabricante engenhoso entre eles, nem artes, nem ciências. . . . Tal diferença uniforme e constante não poderia acontecer, em tantos países e idades, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças de homens.
David Hume *
[ * — Ibid, p. 88.]
  . . . incapazes de contemplar qualquer entidade objetiva como Deus ou Lei. . . . Nada de remotamente humano é encontrado em seu caráter [dos negros]. Relatos extensivos de missionários confirmam isso e o Maometanismo parece ser o único que pode, em certa medida, aproximá-los de uma condição civilizada.
Georg Hegel *
[ * — Citado em J.M. Ita, “Frobenius, Senghor and The Image of Africa,” in Modes of Thought, Robin Horton and Ruth Finnegan (eds.), Faber and Faber, London, 1973, p. 310 from Hegel, Die Philosophie der Gerschichte, Reclam Vertarg Stuttgart, 1961, p. 155.]

Dir-lhe-ei, então, que não sou ou nunca fui a favor de trazer, sob qualquer forma, a igualdade social e política das raças branca e preta. Que eu não sou, nem nunca fui, a favor de fazer eleitores ou jurados dos Negros, nem de qualificá-los para ocupar cargos, nem de casá-los com pessoas brancas e direi, além disso, que há uma diferença física entre as raças branca e preta, que sempre proibirá as duas raças de viverem juntas em termos de igualdade social e política. E, já que elas  não podem assim viver, enquanto permanecem juntas, deve haver uma posição de Superior e Inferior, e eu, tanto quanto qualquer outro homem, sou a favor de ter a posição Superior atribuída à Raça Branca.
Abraham Lincoln (1858)

Nossos assaltantes são numerosos, e é indispensável que possamos enfrentar o assalto com vigor e atividade. Nada falta além uma forte discussão para convencer ao nosso próprio povo, pelo menos, que ao continuar a comandar os serviços dos escravos, eles não violam nenhuma lei divina ou humana, e que, no cumprimento fiel das suas obrigações recíprocas, reside seu dever.
Edgar Allen Poe (Southern Literary Messenger, 1836)

É inútil negar que eles [Pretos] são uma raça inferior — muito inferior à variedade Européia. Eles aprenderam na escravidão tudo o que eles conhecem na civilização. Quando foram trazidos do país de origem, eles eram selvagens nus e onde quer que foram deixados por sua própria conta ou escaparam do controle da raça branca, eles caíram, em maior ou menor grau, na barbárie.
Andrew Johnson (1867)

Por que aumentar os filhos da África, plantando-os na América, onde temos uma oportunidade tão boa, ao excluir os pretos e morenos, para aumentar os adoráveis brancos e vermelhos?
Benjamin Franklin
(Observações sobre o aumento da humanidade, 1753)

Verifica-se que, quando classificamos a Humanidade pela cor, a única das raças primárias, dadas por esta classificação, que não contribuiu de forma criativa para nenhuma de nossas 21 civilizações é a Raça Preta. (Vol. I, p. 233)

. . . Nos primeiros seis mil anos, a Raça Preta não ajudou a criar qualquer civilização. (Vol. I, p. 238)
Arnold Toynbee *
[ * — Arnold Toynbee, A study of History, Oxford University Press, London, (1934), 1961.]

O Negro é uma criança e, com crianças, nada pode ser feito sem o uso da autoridade. Portanto, devemos, então, organizar as circunstâncias do nosso cotidiano de modo que nossa autoridade possa encontrar expressão. Com relação aos Negros, então, criei a fórmula: “Eu sou seu irmão, é verdade, mas seu irmão mais velho.”
Albert Schweitzer (On the Edge of Primeval Forest, 1961)

  A natureza tem grupos de indivíduos codificados por cores, de modo que previsões estatisticamente confiáveis ​​de sua adaptabilidade para vidas intelectualmente gratificantes e efetivas podem ser facilmente feitas e lucrativamente usadas pelo homem pragmático.
William B. Shockley (Prêmio Nobel de Física, 1956.)

Agora é inteiramente claro para mim que, como sua estrutura craniana e tipo de cabelo provam, Lassalle é descendente dos Negros que se juntaram ao êxodo de Moisés do Egito. Ou seja, assumindo que sua mãe, ou sua avó paterna, não cruzaram com um negro. Agora, essa união dos Judeus e do Germanismo com a substância básica negra deve resultar necessariamente em um produto notável. A oficiosidade do sujeito também é típica do negro [nigger-like].
Karl Marx (Carta a Friedrich Engels, 1862.)

 A antiga escola anti-escravista diz que as mulheres devem aguardar, que devem esperar até que os homens Negros sejam eleitores. Mas nós dizemos, se você não dará todo o pedaço de justiça a um povo inteiro, dê-o aos mais inteligentes primeiro. Se inteligência, justiça e moral devem ser colocadas no governo, então deixe a questão das mulheres “brancas” ser trazida primeiro e a dos Negros por último.
Susan B. Anthony (Resposta à Frederik Douglass, 1869)

Sobre a interpretação de Kant da “Grande Cadeia do Ser,” Arthur Lovejoy diz que “Kant conclui … [que] os seres superiores dessas outras esferas devem ver um Newton como nós vemos um Hotentote ou um macaco.” *

[ * — Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being, Harvard University Press, Cambridge, 1966, p. 194.]

Lovejoy diz que Soame Jenyns afirmou que

enquanto a diferença psicológica entre os animais mais elevados e os homens mais baixos é pouco apreciável entre estes, e os mais dotados da humanidade civilizada, as gradações são muitas e a distância é ampla.*

[ * — Ibid, p. 88.]

Nas próprias palavras de Jenyns: “A partir deste grau mais baixo na brutal razão Hotentote com a assistência do aprendizado e da ciência, avança através dos vários estágios da compreensão humana, que se elevam um sobre o outro até um Bacon ou um Newton que atinge a cimeira.” *

[ * — Ibid, p. 88.]

De acordo com Lovejoy, Fenelon diz que é a ordem natural das coisas que os homens sejam providos com “animais ferozes” para matar, “para que os homens possam ser poupados da necessidade de matar uns aos outros.” *

[ * — Ibid, p. 187.]

A etnicidade e a diferenciação cultural entram na ideologia Européia precisamente na mesma forma e determinam a discrepância entre o comportamento dos Europeus em relação a outros Europeus e seu comportamento em relação aos “não-Europeus” ou aqueles que eles percebem como “animais” e, portanto, de menor valor do que eles próprios. Este tema é consistente — de Platão a Saint-Simon, de Constantino a Lothrop Stoddard. Ele é gerado por uma imagem de si e de outros, cuja “lógica” é que a existência de Africanos e pessoas de cor ajuda a assegurar a solidariedade “construtiva” dos Europeus Ocidentais. Enquanto eles tiverem povos “não brancos” para conquistar (como ter animais para matar), subjugar, escravizar, colonizar e explorar (comportamento moralmente aceitável), diminuirão as chances de eles tentarem fazê-lo na comunidade da Europa Ocidental (comportamento imoral). Isso não quer dizer que o comportamento intracultural Europeu seja tipicamente “amoroso,” “amável” ou “atencioso” de acordo com essas definições dentro de outras culturas, mas a cultura sanciona o comportamento em relação a “outros” que é de caráter totalmente diferente e desumanizante do que um comportamento aceitável um para o outro. Se os Judeus não tivessem sido capazes de convencer a hegemonia do mundo Ocidental de que eles eram parte da família Européia, o comportamento Alemão em relação a eles não teria tocado a “consciência” dessa hegemonia com força. O mercado escravista Europeu e a cumplicidade Européia contemporânea no regime Africano ilícito da África do Sul tocam o ponto bem nitidamente. Esse padrão de comportamento cultural Europeu será discutido mais detalhadamente nos Capítulos 7 e 8.

A documentação da imagem Européia dos Africanos e de outras pessoas de cor não é difícil de encontrar. E fica claro nos “registros” que nós somos considerados o “outro cultural” ou o estranho pelos Europeus. Os autores de “To Serve the Devil” * apresentam exemplos vívidos desta imagem e fizeram uma contribuição louvável para a sua documentação facilmente acessível. Desta forma, eles tornaram mais difícil para aqueles que tentariam desconsiderar esse aspecto do caráter Americano. A obra “Race, Culture and Evolution” de George Stocking (1968), embora não tão volumosa em sua documentação, é uma maior acusação cultural/histórica, ao aproximar-se das profundezas da tradição intelectual da Europa Ocidental. Ao invés de tentar duplicar esses trabalhos, prossigamos para outras implicações da imagem Européia dos outros.

A resposta Européia ao Utamaroho “não-Europeu”

Outras filosofias culturais incentivam padrões de comportamento radicalmente diferentes daqueles da cultura Européia. O encontro inicial entre Europeus e povos “não Europeus” enfatiza inevitavelmente essas diferenças. Mesmo que os Europeus se deparem com seres humanos cujo comportamento pareça conflitar com a imagem necessitada pela ideologia Européia, eles são capazes de transformar automaticamente essas “virtudes” em atributos que correspondem a uma definição negativa. Desta forma, imagens e impressões positivas tornam-se “degradações” [“put downs”] ou avaliações depreciativas. Esta reação é esmagadoramente consistente e encontra-se nos jornais dos “exploradores” Europeus.

Colombo descreve seu encontro com aqueles que ele chamou de “Índios”:

Qualquer coisa que eles tenham, se for solicitado, eles nunca dizem não, mas convidam a pessoa a aceitá-la e demonstram tanta simpatia como se estivessem dando seus corações.*

[ * — Ibid, Vol. I., p. 13.]

O Capitão Cook descreve o comportamento dos Havaianos:

 Essas pessoas mereceram nossos melhores elogios, nesta relação comercial, nunca tentando enganar-nos, nem em terra, nem junto aos navios. Alguns deles . . . revelaram uma disposição desonesta; ou melhor, eles pensavam que tinham direito a tudo o que podiam colocar suas mãos sobre; mas eles logo deixaram de lado tal conduta, na qual, nós os convencemos, eles não poderiam perseverar com imunidade. . .

As civilizações desta sociedade não eram, no entanto, confinadas a mera cerimônia e desfile. Nosso partido em terra recebeu deles, todos os dias, um suprimento constante de porcos e vegetais, mais do que suficiente para nossa subsistência; e várias canoas carregadas com provisões foram enviadas para os navios com a mesma pontualidade. Nenhum retorno foi exigido, ou mesmo insinuado de qualquer forma. Seus presentes eram feitos com regularidade, mais como o cumprimento de um dever religioso, do que o efeito de mera liberalidade; e quando perguntávamos à cargo de quem toda essa munificência era exibida, nos diziam que era às custas de um grande homem. . . o chefe dos sacerdotes e avô do Kaireckeca, que na época estava ausente atendendo ao ao rei da ilha. . . . *

[ * — Ibid, Vol. II, p. 38.]

Ele reage e interpreta a tradição da troca de presentes e entrega de presentes de forma característica; isto é, fora de suas próprias prioridades culturais e em termos do conceito de “propriedade privada” e da santidade de bens materiais. Ele não vê nenhuma contradição ao descrever os Havaianos como “desonestos” e generosos ao mesmo tempo.

Eles parecem ser abençoados com uma disposição franca e alegre. . . . Parecem viver de forma muito sociável na relação uns com os outros; e, exceto pela propensão ao furto, a qual parece inata na maioria dos povos que visitamos neste oceano, eles foram extremamente amigáveis ​​para conosco. E, sem desmerecer sua sensibiliadade, nem nos lisonjear, quando eles viam os vários artigos da nossa fabricação Européia, não podiam deixar de expressar sua surpresa, por uma mistura de alegria e preocupação, que parecia se aplicar ao caso, como um lição de humildade para si mesmos; e, em todas as ocasiões, eles pareciam profundamente impressionados com uma consciência de sua própria inferioridade.*

[ * — Ibid, Vol. II., p. 37.]

Ao relatar esses encontros, os Europeus são forçados a interpretar a experiência em termos de significado e definição Europeus. Eles, portanto, expressam sua imagem dos outros e, assim, reafirmam sua auto-imagem. Assim, as descrições se tornam parte da mitologia Européia; elas se tornam parte do depósito cultural que afirma o significado e a avaliação Europeus. É assim que a imagem dos outros deve ser entendida; isto é, em termos de sua relação com a asili.

A consciência de Cook é informada pela natureza de sua própria cultura e pelo conhecimento de suas próprias motivações, assim como as pessoas que ele encontra dificilmente entendem um ser cultural tão diferente de si. Esses encontros indicam, invariavelmente, os valores operacionais e os padrões de comportamento gerados por cada cultura. Os Europeus chegam cheios de arrogância e motivados por um desejo de poder e pelo desejo de possuir o que encontrarem. Muitas vezes, esse “humor” não é descrito nesta literatura como “o espírito empreendedor”, que está relacionado à sua “natureza empreendedora,” termos que são “positivos” para eles. Porque seus motivos são para usurpar, explorar e trazer aquilo que eles encontram para dentro de seu domínio, eles necessariamente vêm com a desconfiança e antagonismo com os quais alguém se aproxima de um inimigo potencial. Isso sempre cooperou para sua vantagem estratégica. Sua cultura lhes proporciona uma habilidade e uma astúcia política “naturais.” Eles são perpetuamente competitivos e bem equipados para lidar com o jogo de poder. Por outro lado, os “nativos” com os quais os Europeus se encontram na maioria das vezes os recebem com coração aberto, com “sorrisos,” presentes e confiança. Eles cometem suicídio político! Sua cultura não os “criou” para a necessidade de ódio e desdém conducentes a uma natureza exploradora, imperialista ou efetivamente defensiva.

Ayi Kwei Armah escreve:

 Uma abertura ruinosa nós tínhamos,
para aqueles que vieram como mendigos,
Tranformados em cobras depois de alimentados.
O suspeito entre nós tinha medos pronunciados,
incompreensíveis para o nosso espírito até então.
A generosidade das palavras não conseguiu entender.

“Estes são fabricantes de carniça,”
disse o cauteloso,
“Não os abrigue.
Veja seus olhos, seus narizes.
Tais são os bicos
de todas as aves predadoras do deserto.”

Nós nos rimos dos temerosos,
demos o refúgio aos pedintes
e os observamos sem suspeita,
os observamos transformar a fecundidade do nosso caminho,
transformando-se na força que nos empurrou,

Até que o próprio fluxo de todo o nosso povo,
o caminho em si,
tornou-se uma memória solitária
para mentes abandonadas. *

[ * — Ayi Kwei Armah, Two Thousand Seasons, Third World Press, Chicago, 1979.]

Quais características os Africanos e outros apresentam? E o que essas características indicariam sobre nossos sistemas éticos, nossa visão de mundo? Nós, pessoas de outras culturas, cometemos muitas vezes o erro de tentar tratar com este Europeu, que vem para levar nossa terra e que parece tão diferente de nós como um irmão ou uma irmã! Os Africanos e outros povos não-Europeus invariavelmente procuram incluí-lo em nosso sistema de troca de presentes, oferecendo-lhe amor e paz. Em outras palavras, os preceitos puramente retóricos de comportamento propagandizados como “virtudes Cristãs” são, na verdade, os modelos de comportamento natural para outras culturas e tradições mais antigas que a do Europeu. E os Europeus, naturalmente, apresentam padrões de comportamento que estão em contradição direta com o que eles designaram como “virtudes cristãs”; isto é, virtudes que são realmente valores e padrões de comportamento Africanos/não-Europeus, os quais sua própria cultura não gera, sustenta, motiva, nem sanciona. Pessoas de outras culturas muitas vezes devem ser ensinadas a desconfiar do seu inimigo; aquele que os destruiriam. Os Europeus instintivamente “odeiam,” ou melhor, não amam aqueles que estão fora de sua cultura, que são, a priori, “inimigos.”

Cheikh Anta Diop diz:

O que considero notável é que, na atitude individual dos Pretos em relação a outras raças, há uma diferença de abordagem. Os Pretos não são racistas. Os Pretos não temem contatos étnicos. Os Brancos sim. Eu acho que grande parte do racismo decorre desse temor. Será este uma característica hereditária da vida nômade do Ariano primitivo? Eu não sei. Será um tipo de instinto biológico ou de outro tipo? Eu também não sei. O que é bastante evidente, no entanto, é que a xenofobia é definitivamente um traço arraigado das culturas Européias desde há muito. Eu acho que mesmo os estudiosos Europeus concordariam comigo sobre isso. Na verdade, uma das fraquezas da Civilização Preta, particularmente durante a época medieval, foi a abertura, o cosmopolitismo dessas sociedades. Os reinos Pretos medievais estavam abertos a povos de todos os horizontes. E hoje, uma das fraquezas básicas das sociedades Africanas é que elas ainda mantêm essa característica cosmopolita herdada. O nacionalismo na África emergiu como um reflexo puramente defensivo. Nacionalismo estreito, xenofobia, exclusão de estrangeiros, nunca foi uma política de culturas Africanas. Nós sempre a encontramos associada às culturas Indo-Européias.*

[ * — Cheikh Anta Diop, “Entrevista,” em Black Books Bulletin., Vol. IV, No. 4, 1976.]

Qual é a reação de um Europeu quando ele é saudado por alguém que oferece confiança e amizade? Em primeiro lugar, ele considera essas pessoas como encantadoramente “infantis” (como pueris, realmente), porque em sua cultura, onde tal comportamento não é valorizado, apenas crianças muito novas, ainda não devidamente socializadas, se comportariam de tal maneira. Em segundo lugar, como diz Cook, esse comportamento é uma indicação para um Europeu de que as pessoas em questão “reconhecem sua própria inferioridade.” Em outras palavras, é culturalmente impossível para ele ver essa confiança automática e natural de estranhos como uma descrição positiva e valorizada (em contradição com sua propaganda “Cristã”). Ele a vê, em vez disso, apenas como um sinal de “fraqueza” e falta de auto-estima. Esta reação é uma chave para o utamaroho Europeu e para a visão Européia da natureza humana. A xenofilia do que Diop designa como civilização do “Berço do Sul” (África) é explorada pela xenofobia da civilização do “Berço do Norte” (Europa).

É um reconhecimento da “naturalidade” e consistência dessa visão do ser humano e do comportamento que a acompanha que deve informar ideologias autodeterministas mais realistas e efetivas para os Africanos e outros povos primários. Mas a grande maioria dos povos do mundo ainda não conseguem absorver o fato do comportamento de grupo Europeu. Isso levanta, entre outras coisas, a questão de saber se essas outras culturas podem preparar seus membros para a possibilidade do tipo de engano e destruição que o Europeu é capaz. É parte do gênio malévolo dos Europeus se alimentar dessa “ingenuidade” política, por assim dizer, entre os povos do Primeiro Mundo, ao apresentá-los com sua própria “fraqueza” (ou seja, a capacidade de amar) sob a aparência de uma “nova” religião superior. Esta “nova” declaração religiosa é mostrada a eles como um padrão de comportamento, interpretado como o mandamento de “amar os inimigos.” O “inimigo” que o apresenta é muito politicamente astuto para ser afetado por sua própria retórica. É por esse aspecto do utamaroho Africano que o Cristianismo foi uma ferramenta tão bem sucedida para a expansão política Européia. (Esta questão é retomada no Capítulo 6.)

Livre da posição enganosa da maioria dos pretensos conquistadores, Wayne MacLeod atesta um valor Europeu honesto e não retórico:

Muitos consideram a amabilidade, em vez da pervasividade, como sendo o critério do calibre racial; mas a amabilidade não tem nenhuma influência sobre a essência e a decadência da civilização.

  Não existe uma única instância em que a história tenha recompensado povos de riqueza, prestígio e poder porque estes eram bem amados; invariavelmente as nações agressivas é que foram as promotores da sociedade. *

[ * — MacLeod, p. 73.]

Imagem e Definições de Valor

Johari Amini concentra-se na dinâmica político-cultural da definição de valor. Ela se refere à “dialética da definição” que nos ajuda a reconhecer a relação dialética entre a auto-imagem Europeia e sua imagem dos outros; pois, como diz Amini, ao definir algo, seu oposto também é definido.*

[ * — Johari Amini, “Re-Definition: Concept as Being,” in Black World, 1972, Vol. XXII, No. 7, p. 6.]

As implicações políticas do imperialismo cultural tornam-se surpreendentemente claras: “Funcionar com as definições de outra pessoa é perigoso para a auto-imagem, o autoconceito.” *

[ * — Ibid, p. 10.]

Os Europeus são bem-sucedidos em seus esforços para controlar econômica e politicamente os outros, porque culturalmente eles são capazes de nos forçar a assimilar sua definição de nossa inferioridade em nossa própria auto-imagem, ao mesmo tempo que ganham suporte para sua imagem de si mesmos como superiores — novamente a dialética. Como diz Amini, a definição Européia de “bom” funciona destrutivamente para os povos Africanos e outros povos “não-Europeus” que a aceitam.” Ela funciona de forma construtiva para o Europeu, projetando e reforçando sua auto-imagem positiva e estabelecendo uma norma cultural funcional que possui amplos benefícios políticos/sociais/econômicos.” *

[ * — Ibid, p. 10.]

Termos como mestre/escravo; homem/menino são iniciados pelos Europeus a partir de seu quadro de referência e funcionam para servir a seus propósitos, em oposição àqueles das comunidades em que são impostos. Aqui, novamente, vemos o valor do mito do “universalismo” pois o que permite aos Europeus impor suas definições com tanto sucesso é, em parte, sua capacidade de convencer seus objetos políticos de que estas não são definições Européias e não servem a interesses Europeus, mas sim definições universalmente válidas, que servem ao benefício da “humanidade.” O mito do “universalismo” é sempre o golpe de misericórdia na busca do imperialismo cultural Europeu; e, inevitavelmente, as “definições” Européias são traduzidas em termos “universalistas.” Estes aspectos da ideologia Européia serão discutidos mais detalhadamente no Capítulo 10 deste estudo.

O utamaroho Europeu, então, é criado e apoiado pela relação dialética da auto-imagem com a imagem dos outros:

fig. marimba ani - quadro i.jpg

Essas imagens e conceitos de definição de valor Europeu se traduzem então na relação de poder que é exigida pelo utamaroho e asili da cultura:

fig. marimba ani - quadro ii

As relações entre a estética Européia, a auto-imagem e a imagem Européia dos outros não são apenas dialéticas, mas parte de um processo circular e interminável de definição de valor. Estes aspectos do utamaroho Europeu continuamente se inter-relacionam em apoio entre si. A filosofia Européia da estética está ligada às definições epistemológicas Européias (utamawazo) de um universo racionalista e a uma visão racionalista do humano: o Europeu se vê como esse ser “racional” que é, mais propriamente falando, “homem.” A estética é favorável à auto-imagem;ela gera o valor da “branquitude” e do racionalismo. O ego exige que a pessoa se veja em oposição a outras pessoas; exige uma busca incessante de poder para sua satisfação emocional. O poder é interpretado ou definido em termos de controle sobre objetos (pessoas, natureza, objetos materiais). O controle é conseguido através de racionalismo, abstração, análise, “objetificação” e subjugação da natureza; tudo isso com a ajuda da “ciência.” No domínio das relações humanas, o controle é conseguido através de estruturas imperialistas, ou seja, subjugação e exploração de outras culturas. Essas culturas são constituídas por pessoas que, na definição Européia, são consideradas como objetos. Na retórica do imperialismo cultural Europeu, isso se torna “salvando” o mundo e “ordenando-o” por um “homem” superior Europeu racional, em benefício de um ser irracional inferior “não-Europeu.” Os Europeus às vezes até se convencem de sua própria magnanimidade e altruísmo em sua disposição de suportar a incrivel responsabilidade de governar o mundo: mas, se não eu, quem mais? — e o que seria de todos nós? As dicotomias aqui descritas são essenciais para a lógica do nacionalismo cultural Europeu Ocidental.

James Baldwin descreve a imagem Européia dos outros dessa maneira;

No caso do Negro. . . Sua história vergonhosa foi levada literalmente, em sua testa. Vergonhoso; pois ele era tão pagão quanto preto e nunca descobriria o sangue curativo de Cristo se nós não tivéssemos enfrentado as selvas para lhe trazer essas boas novas. Vergonhoso; pois, como nosso papel como missionários não tinha sido totalmente desinteressado, era necessário lembrar a vergonha da qual o libertamos para escapar mais facilmente da nossa própria. Ao aceitar o alabastro de Cristo e a sangrenta cruz — no carregamento da qual ele acharia sua redenção. . . ele deve, doravante, aceitar aquela imagem que nós lhe demos de si mesmo: não tendo nenhuma outra e ficando, além disso, em perigo de morte se ele não aceitar a luz deslumbrante assim trazida a uma escuridão tão grande.*

[ * — James Baldwin, Notes of a Native Son, Beacon Paperback, Beacon Hill, 1957, p. 30.]

Baldwin sugere a relação de nossa discussão anterior ao que se segue. Na discussão subsequente nos preocupamos com os padrões de comportamento incentivados pela auto-imagem Européia e pela imagem Européia dos outros; e com as características do comportamento Europeu dentro da cultura, como estão dialeticamente relacionados à natureza do utamaroho Europeu. Esses relacionamentos e padrões culturais são ditados pela asili da cultura, que, como um modelo, estabelece suas prioridades de desenvolvimento. A asili é um modelo contendo os logos da cultura. Nesse sentido, ela implica consistência etnológica. Utamawazo, utamaroho, comportamento e imagem não podem ser inconsistentes uns com os outros. Eles devem ser compatíveis, trabalhando juntos para forjar um construto ideológico bem-sucedido. O conceito de asili nos ajuda a entender esse fato etnológico da cultura Européia e a eliminar a retórica (capítulo 6) que muitas vezes bloqueia nossa visão.

 

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fig. marimba ani - titulo capitulo 6.jpg

Watergate não é um mero acidente da história. É a conseqüência natural de um governo confrontado com o problema de tentar preservar a fachada de democracia diante de seus cidadãos enquanto faz guerra imperialista no exterior, saqueando o tesouro público em casa e apoiando a reação onde quer que seja encontrada. Para manter o mito da integridade Americana, o governo não tem outro recurso senão mentir. De fato, a mentira se torna o comportamento político central do estado.*
William Strickland

[ * — William Strickland, “Watergate: Its Meaning for Black America,” in Black World, 1973, Vol. XXIII, No. 2, p. 7.]

O que há em uma mentira?
[What’s in a lie?]

O Acordo Iraniano:  Venda de armas pelos Estados Unidos ao Irã em troca da libertação de reféns Americanos.

13 de novembro de 1986:  Reagan diz que as acusações de que sua administração trocou armas por reféns são “totalmente falsas.”

16 de novembro de 1986:  Reagan remove o Vice Almirante John M. Poindexter do cargo de Assessor de Segurança Nacional, por seu papel no Acordo Iraniano de Armas.

Antecedentes:   Os Estados Unidos devem ganhar com a continuação da guerra entre o Irã e o Iraque, que atrasa as forças progressistas no Irã. O objetivo dos Estados Unidos tem sido o de impedir ambos os lados de ganhar uma vitória decisiva. Isso é chamado de “neutralidade” por parte dos Estados Unidos pela máquina de propaganda Americana. Na verdade, os Estados Unidos enviam armas para o lado que pareça estar perdendo. Documentos da Heritage Foundation, “uma influente estrategista política para a administração Reagan,” tornam esta posição clara. Em “Mandade II” publicado em 1985, a fundação diz que os EUA devem manter uma postura pública de “Estrita neutralidade política” na guerra Iraniana-Iraquiana, mas “silenciosamente fornecer ajuda militar para o lado que estiver perdendo. . . O interesse dos EUA continua a ser que nenhum dos lados vença. A longo prazo, uma boa relação com o Irã continua a ser muito mais importante. Com uma população de 45 milhões e fronteiras com a União Soviética e com o Golfo Pérsico, o Irã é inegavelmente um prêmio estratégico.”*

[ * — A.R. Faraz, The City Sun, December 6-9, 1986, New York.]

Janeiro de 1991:  Os Estados Unidos invadem o Golfo Pérsico. O presidente George Bush declara a guerra ao governo Iraquiano para “libertar” o Kuwait.

 

Hipocrisia como um Meio de Vida

Dentro da natureza da cultura Européia, existe uma declaração de valor ou de comportamento “moral” que não tem significado para os membros dessa cultura. Eu chamo esta de “ética retórica;” Ela é de grande importância para a compreensão da dinâmica da cultura. Os conceitos de antropologia Européia tradicional são inadequados para explicar o fenômeno a que me refiro aqui, pois não tem equivalência nos tipos de culturas às quais os antropólogos geralmente tem direcionado sua atenção no passado. Mas com o conceito de asili, que facilita uma abordagem ideológica ao estudo da cultura, a ética retórica torna-se visível; mesmo atraente. Ela condiz com a lógica da asili Européia, ajudando a cultura na conquista e manutenção do poder. Sem esta interpretação, certas manifestações dentro da iconografia verbal da cultura parecem ser inconsistentes com o seu impulso ideológico subjacente. E isso simplesmente não faria sentido. Vejamos como funciona o mecanismo da ética retórica.

A distinção relacionada usada tradicionalmente na antropologia é declarada em termos de “cultura ideal” e “comportamento real” e é dita ser característica de todas as culturas, ajudando assim a confundir a questão da singularidade e natureza problemática da cultura Européia. A distinção convencional é ilustrada da seguinte maneira pelos autores de um livro didático de antropologia recentemente publicado.

Por exemplo, uma crença idealizada, há muito estimada na América, é que todos os médicos são pessoas abnegadas e amigáveis ​​que escolheram a medicina como profissão porque se sentiram “chamados” para servir a humanidade e que têm pouco interesse em dinheiro ou no prestígio de sua posição. é claro, muitos médicos não estão à altura desse ideal. No entanto, o sucesso contínuo de programas de televisão que retratam o Doutor em Medicina Americano médio como um paradigma de virtude indica quão profundamente enraizada em nossa psique coletiva o ideal do médico nobre está.*

[ * — Carol Ember and Melvin Ember, Anthropology, Appleton-Century-Crofts, New York, 1973, p. 29.]

Este é um equívoco comum que tem levado a uma visão equivocada e compreensão superficial da natureza da sociedade Européia (Euro-Americana). Referir-se às imagens oferecidas acima como “ideais” é um uso indevido ou pelo menos um uso enganoso do termo “ideal.” A projeção e o sucesso da imagem do médico comprometido e altruísta não indicam que este seja um ideal “profundamente enraizado” na psique Americana.  É antes uma indicação do fato de que é assim que os Americanos querem aparecer para os outros, na maioria das vezes para os povos não-Europeus — seus “objetos.” Neste caso, é a maneira em que o médico quer aparecer para seus pacientes, ou “objetos”, porque essa aparência funciona em sua vantagem. Por outro lado, uma imagem que o projeta como um potencial explorador pode levar à possibilidade de ações penais por negligência e à institucionalização de medicina socializada — nenhuma das quais é lucrativa para ele.

Um “ideal” deve ser entendido como algo que funciona de forma normativa e algo que é emulado; aquilo que tem significado para aqueles que o compartilham. É a experiência Européia que incentiva a confusão de significado e compromisso com mera expressão verbal. (estava dentro da incipiente experiência Européia que a “retórica” passase a ser considerada como arte.) Na cultura Africana, as palavras têm poder. A mente Européia é uma mente política e, por essa razão, constantemente consciente do efeito político das palavras e imagens usadas para esses fins de manipulação. Por “política,” quero indicar um ego que experimenta consistentemente as pessoas como outras; como representantes de interesses definidos diferentemente e, portanto, conflitantes com esse “ego.” O indivíduo se preocupa, portanto, com a maneira pela qual sua expressão verbal e a imagem que projeta podem influenciar o comportamento daqueles a quem se relaciona, sejam eles pacientes (pretensos consumidores), sujeitos neocoloniais, um candidato opositor ao cargo, ou um autodeterminista/nacionalista Africano. Isso é o que está “profundamente enraizado” na mente Americana — a psicologia das “relações públicas”, “habilidade de vendas” [“salesmanship”] e estratégia política. Está no vernáculo Europeu-Americano que a palavra “imagem” seja usada com tanta frequência. Estar preocupado com a imagem de alguém em oposição a si mesmo é uma característica Européia.

Estar ciente da vantagem estratégica de parecer altruísta quando se está operando por interesse próprio não significa que o altruísmo seja um “ideal” significativo em termos de um sistema de valores. É, ao contrário, uma conseqüência da propaganda que os Europeus alimentaram os povos “não Europeus” desde que eles primeiro procuraram conquistá-los. Como exportaram (“venderam”) essas imagens altruístas com tanto sucesso, eles tiveram que se projetar como aderentes a esse “ideal;” da mesma forma, a projeção deles mesmos ou de seus motivos foi essencial para a imposição bem-sucedida dessa “ética” aos outros. O princípio básico a ser mantido em mente para entender essa dinâmica da cultura Européia é que o principal fator que contribuiu para o sucesso do nacionalismo Europeu foi sua projeção como internacionalismo desinteressado.

O uso do termo “ideal” na passagem citada acima é simplesmente um conceito inadequado para a análise etnológica da cultura Européia. Hoebel, em um livro didático anterior, oferece sua versão, que é similarmente inadequada: “A cultura ideal consiste em padrões e comportamentos expressos verbalmente por uma pessoa.” Os exemplos que esses antropólogos oferecem de outras culturas para explicar a distinção entre “ideal” e “real” de modo algum representam o fenômeno na cultura Ocidental em consideração. *

[ * — Eric Hoebel, Anthropology: The Study of Man, 3rd ed., McGraw-Hill, New York, 1966, p. 29.]

Hoebel descreve “postulados ou valores normativos” como “suposições profundas sobre se as coisas ou atos são bons e devem ser buscados, ou ruins e rejeitados.” *

[ * — Ibid, p. 23.]

É precisamente isso que a “ética retórica” ​​não é. A definição de Hoebel pode ser usada para chegar ao oposto do fenômeno que eu descrevo. Uma “ética retórica” ​​não é uma “suposição profunda.” É uma expressão verbal superficial que não se destina à assimilação pelos membros da cultura que a produziu. A “ética retórica,” um fenômeno Europeu, foi negligenciada na teoria etnológica convencional, que consistentemente ofereceu conceitos destituídos de significado político. Os antropólogos falam sobre a lacuna em todas as culturas entre pensamento e ação, entre idéias e ações. A lacuna a que me refiro, no entanto, é entre expressão verbal e crença ou compromisso; entre o que as pessoas dizem e o que elas fazem. Em nenhum outro lugar além da cultura Européia, as palavras significam tão pouco quanto os índices de crença. É essa característica que é motivo de preocupação aqui e essa característica para a qual os conceitos da antropologia tradicional são inadequados para explicar.

Como traço cultural, entretanto, ela tem sido descrita por outros, particularmente aqueles que foram feitos vítimas da astúcia Européia. Abaixo, um indígena Americano descreve o comportamento Europeu:

Eles nos escravizariam se pudessem; mas como eles não podem, eles nos matam. Não há fé a ser colocada em suas palavras.

  Eles dirão a um índio: “Meu amigo, meu irmão!” Eles vão levá-lo pela mão e, no mesmo momento, destruí-lo. . . . Lembre-se que neste dia eu te avisei para ter cuidado com amigos como esses. Eu conheço os Facas-Longas [Long-Knives]. Eles não são confiáveis. *

[ * — Paul Jacobs et al, To Serve The Devil, Vol. 1, Vintage, New York, 1971, p. 12.]

É uma característica inerente da cultura que esta prepare os membros da cultura para serem capazes de agir como amigos em relação àqueles que eles consideram inimigos; ser capaz de convencer os outros de que eles vieram ajudar quando, de fato, vieram a destruir os outros e a sua cultura. Que alguns possam “acreditar” que eles estão realmente fazendo o bem apenas os tornam mais perigosos, pois engoliram sua própria retórica — talvez uma auto-ilusão conveniente. O comportamento hipócrita é sancionado e recompensado na cultura Européia. A ética retórica ajuda a sancioná-lo. A cultura Européia não pode ser entendida em termos da dinâmica de outras culturas somente. Ela é uma cultura que gera hipocrisia — na qual a hipocrisia é um tema de apoio — um padrão de comportamento. Sua natureza hipócrita está ligada à abstração Platônica, à objetificação, à compartimentalização da pessoa e à negação do eu emocional. Abaixo, Havelock caracteristicamente entende o caso:

Outra coisa perceptível sobre eles [“Gregos pré-Platônicos“] neste período é sua capacidade de ação direta e ação sincera e de expressão direta e sincera de motivo e desejo. Eles quase totalmente carecem dessas pequenas hipocrisias sem as quais nossa civilização parece não funcionar. *

[ * — Eric Havelock, Preface to Plato, Grosset and Dunlap, New York, 1967, p. 158.]

A distinção e as definições que podem levar a uma melhor compreensão dos Europeus e da sua cultura só podem vir de uma perspectiva que não seja a do chauvinismo Europeu; pois é o método do chauvinismo Europeu ou do nacionalismo cultural ocultar o interesse Europeu. Como eu o uso, “valor” é apenas um valor significativo; é aquilo que motiva o comportamento e é a origem do compromisso humano. O valor determina o que é imitado e preservado, o que é selecionado e incentivado. Por outro lado, “valores declarados,” que são meramente professados, que só encontram expressão verbal, que não são indicativos de comportamento, pertencem ao que chamei de “ética retórica.” A ética retórica Europeia é precisamente isso — puramente retórica — e, como tal, tem suas próprias origens como uma criação para exportação; isto é, para a atividade política e intercultural do Europeu. Ela é projetada para criar uma imagem que impeça os outros de antecipar com sucesso o comportamento Europeu, e seu objetivo é encorajar comportamento político não estratégico (ou seja, ingênuo, ao invés de bem sucedido) por parte dos outros. (Isso é o mesmo que o comportamento “não-político”). Ela é projetada para vender, enganar e promover objetivos nacionalistas Europeus. Ela “empacota” o imperialismo cultural Europeu em um invólucro que o faz parecer mais atraente, menos prejudicial. Nenhum desses recursos representa o que culturalmente pode ser chamado de “ideal” em qualquer sentido. A ética retórica, portanto, não é disfuncional na cultura Européia. Não gera nem reflete conflito na ideologia ou no sistema de crenças Europeus; mas é, antes, necessária à manutenção e projeção do utamaroho e desempenha uma função vital na manutenção do nacionalismo cultural Europeu na busca de seus objetivos internacionais.

A ética retórica é possibilitada pelo fato de que a hipocrisia como um modo de comportamento é um tema valorizado na vida Européia; o mesmo comportamento hipócrita que sua presença sanciona. Novamente, “valor” refere-se àquilo que é encorajado e aprovado em uma cultura. A cultura Européia é construída de tal maneira que a sobrevivência bem-sucedida dentro dela desencoraja a honestidade e a objetividade e encoraja a desonestidade e o engano — a capacidade de aparentar algo diferente do que se é; esconder seu “eu,” seus motivos e intenções. As pessoas que são enganadas por outras e se relacionam com uma imagem projetada são consideradas tolas ou “caipiras do campo.” Assim, a hipocrisia não se torna um traço de personalidade negativo, nem um comportamento imoral ou anormal, mas é esperada e cultivada. É considerada um ingrediente crucial da “sofisticação,” um objetivo Europeu. O comportamento político intracultural europeu é baseado na hipocrisia — assim como nas relações comerciais, na mídia publicitária e na maioria das outras áreas da interação pública e social. É apenas uma manifestação desse tema quando os Americanos afirmam que os políticos são basicamente honestos. A alegação em si é hipócrita, e o público espera que seja assim. Todos sabemos que o objetivo da propaganda comercial é nos convencer a comprar produtos para que os fabricantes possam obter grandes lucros, mas os slogans tentam nos convencer de que o produto é benéfico para o nosso bem estar, como se o produtor tivesse nosso bem-estar no coração. Essa hipocrisia afeta a vida de todos os membros da cultura em suas relações mútuas e, no entanto, origina-se em parte da natureza de seus relacionamentos interculturais. É uma parte do mecanismo do expansionismo Europeu. Todos esses fatores devem entrar para a compreensão da ética retórica e não uma distinção excessivamente simplista entre cultura “ideal” e “real”; talvez uma distinção relevante em relação a outras culturas que criam e são criadas por “personalidades culturais” muito diferentes. Vamos examinar mais de perto essa “ética” e ver como ela tem funcionado historicamente.

 

A Função Retórica da “Ética Cristã”

A idéia inerente aqui é crucial, pois implica um desdobramento da asili. O que eu argumentei anteriormente e desejo reiterar e desenvolver ainda mais nesta discussão é que o que é invariavelmente referido como o “conflito” entre “valores” Cristãos e comportamento imperialista e agressivo Europeu, na verdade, nunca representou conflito, mas deve ser entendido em termos da intenção da ideologia Cristã. Como eu disse, todas as declarações religiosas provavelmente serão moldadas no tempo, de modo a serem consistentes com os objetivos nacionalistas das culturas em que foram criadas. Declarações religiosas fornecem apoio ideológico, espiritual e emocional para a manutenção de entidades culturais e ajudam a definir, simultaneamente como refletem, a definição da personalidade coletiva dos indivíduos dentro delas. A cultura Européia não é, neste aspecto, diferente de qualquer outra. O que varia de cultura para cultura é o seu conteúdo ideológico; sua asili. O caráter e a definição de seu “nacionalismo,” a declaração religiosa e o utamawazo cultural necessariamente compartilham as mesmas características. Isso é verdade independente se a cultura é basicamente “tradicional” e “sagrada,” caso em que os dois são pouco distintos, ou se ela é “secular,” onde a religião se torna separada e institucionalizada. Em ambos os casos, a declaração religiosa de uma cultura particular deve, por definição, ser consistente com os valores dessa cultura, já que tanto a religião quanto o valor são determinados pela asili. É a função de qualquer “religião oficial” dar apoio ideológico à cultura como um todo. Uma vez estabelecidas e formalizadas, todas as ideologias religiosas são, nesse sentido, ideologias “nacionalistas.” Apesar dos elementos na formulação Cristã que podem ser rastreados até a África (Kemet), a ideologia Cristã é essencialmente uma criação da asili Européia e só pode ser entendida como uma declaração que sustenta os valores dessa cultura.

O compromisso da cultura Europeia é único entre as ideologias “nacionalistas” e de fato se torna internacionalista na expressão. Seu principal objetivo é a expansão mundial da cultura Européia e o resultante controle de outros povos. A formulação Cristã, quando endurecida em ideologia, desenvolveu-se como consistente e não em conflito com este objetivo. Como o nacionalismo Europeu e o utamawazo Europeu dependiam de e eram direcionados para que “outros” (pessoas, lugares, culturas) fossem controlados — para ter poder sobre — a declaração Cristã era um mandato para o controle arcaico da Europa (Romana), e a propaganda foi endereçada aos objetos desse controle também. Não importa quão sutil e engenhosamente essa função tenha sido executada, permanece o fato de que o que geralmente é chamado de “ética Cristã” (“amor, irmandade e paz universais,” “os mansos herdarão a terra,” “dar a outra face,” “amar teus inimigos”), uma vez oficialmente reconhecida pelo Estado, não foi projetada para a ssimilação ou orientação moral dos Europeus. (O que é referido como a “ética Protestante” é outro caso a ser discutido em relação ao comportamento Europeu no Capítulo 7.) Há algo errado com uma análise cultural/histórica que sustenta que uma cultura tão bem sustentada e persistente quanto aquela da Europa poderia ter sido criada, ter sobrevivido, desenvolvido e intensificado a proporções gigantescas, sob a contínua deficiência de uma declaração religiosa que contradissesse basicamente e conflitasse com esse crescimento e a forma que ele tomou! É aí que reside a contradição, e essa contradição etnológica deveria ter dado origem a outras explicações da “ética Cristã” em seu contexto Europeu. O conceito de asili exige uma explicação ideologicamente consistente dos fenômenos culturais.

Recapitulando brevemente: A declaração Cristã dizia que a religião deveria ser “universal,” desacreditando assim outras religiões que eram obviamente e reconhecidamente ligadas à cultura. Ela afirmava, de fato, ser a religião propriamente “universalista;” dando aos conquistadores Europeus a justificativa moral de que precisavam para transformar suas ações politicamente agressivas em ações aparentemente altruístas. (Ver Capítulo 2) Mas o que é mais importante aqui é que a ideologia Cristã declarou virtuosas aquelas mesmas formas de comportamento que imobilizam uma cultura politicamente, tornam seus membros suscetíveis ao controle Europeu e menos capazes de resistir: a busca pela “paz,” o “amor” pelo próprio inimigo (que concretamente implica a traição de si mesmo), a “irmandade do homem” — uma abstração que se manifesta concretamente como a negação da própria cultura e, portanto, da sua ideologia e compromisso. Todos esses elementos se combinaram para formar a contraparte psico-cultural ideal para a submissão política. E conseguiram fazer o trabalho que foram projetados culturalmente para fazer. Isso não afetou o padrão histórico esmagador do comportamento Europeu, que é caracterizado por tendências antitéticas àquelas mencionadas acima. O crescimento do império não foi impedido pela passividade e amor; em vez disso, ele prosperou no comportamento intensamente agressivo e hostil que a asili da cultura encorajava. Os teóricos Europeus, invariavelmente, não conseguiram interpretar corretamente essa função da “ética Cristã” em seu contexto Europeu — um fracasso endêmico da teoria social Ocidental, seja ela representativa da direita ou da esquerda, — declaradamente nacionalista ou “crítica.”

Joel Kovel diz: “Dentro da visão de mundo Cristã original, não havia maneira de racionalizar ou incluir os esforços pela ganância e dominação que persistiam dentro da civilização.” *

[ * — Joel Kovel, White Racism, Vintage, New York, 1971, p. 146.]

Constantino aparentemente reconheceu o valor da ideologia Cristã para a expansão Ocidental Européia e não teve dificuldade em usá-la sem refazer a formulação Cristã “original.” (Se por “original” estamos nos referindo à sua manifestação Européia arcaica e não às suas origens Africanas anteriores.) Um “uso” que o próprio Kovel, inadvertidamente, descreve:

O Cristianismo espalhou-se pelo Ocidente e criou uma comunidade a partir do que eram fragmentos bárbaros. Isso foi feito através do poder de uma instituição concreta, a Igreja Católica. Foi a influência imediata da Igreja que sustentou o ideal subliminar de Cristo e, através desse ideal, deu à Europa um arcabouço de identificação para unirem-se em uma civilização unificada.*

[ * — Ibid, p. 145.]

Kovel diz que o Cristianismo se “afastou do mundo” e que “só poderia amaldiçoar à distância,” introduzindo assim “uma divisão no universo cultural.” Esse “afastamento” pode ser interpretado como sendo “escrito” para a definição de um primeiro esboço da natureza bilateral da ética Européia. Não é o “universo cultural” Europeu que está dividido; este permanece consistente e intacto precisamente por causa da distinção entre os padrões de comportamento intracultural e os padrões de comportamento em relação aos outros; entre suas palavras e seus atos; entre a “ética retórica” ​​e a ética que de fato orienta o comportamento Europeu. Como resultado de seu utamawazo e da natureza de seus objetivos interculturais, os Europeus desenvolveram todo um sistema semântico projetado para exportação — para fins de propaganda nacionalista — para a aparência — para “outros,” por exemplo, como a publicidade.

O fato de alguns indivíduos terem começado a incorporar a imagem que foi projetada deles não altera o significado cultural dessa imagem. Seu comportamento é anômalo. O fato é que a “ética Cristã” nunca informou ou refletiu o comportamento Europeu característico. O padrão de comportamento que ela sugere nunca correspondeu à auto-imagem cultural Européia. Esse é o ponto etnológico. Ela sempre representou uma imagem que os Europeus consideraram politicamente conveniente em termos de seus objetivos expansionistas e exploradores em relação a outras pessoas. E essa relação com a natureza da cultura não é nova; ao contrário, é um aspecto da afinidade cultural entre o império Ocidental arcaico em desenvolvimento e a formulação Cristã — uma razão para a cooptação inicial desta última.

Se isso não parece razoável em termos do comportamento e da psicodinâmica da maioria dos povos, deve-se ter sempre em mente que o utamaroho Europeu é único e deve ser entendido em termos de si mesmo e de suas próprias dinâmicas peculiares — a asili da cultura. Nesse contexto teórico, a “divisão” torna-se explicável etnologicamente. Ela é culturalmente projetada para servir à busca imperialista de uma cultura cuja ideologia coesa dominante é baseada em um impulso de poder, ou, em termos Nietzscheanos, “a vontade de poder.” Para garantir o sucesso, era necessário ter um elemento hipócrita; uma “professada” ética declarada, que mascarasse a verdadeira intenção do Europeu; descrever “arrogância” como “humildade.” A agressividade crua em relação a outras pessoas teria sido combatida com muito mais sucesso sem o uso da “ética retórica.” Com isso, os Europeus poderiam obter a cooperação daqueles dentro das culturas que eles procuravam conquistar. Ver o imperialismo Europeu como “universalismo” e “altruísmo” beneficente também ajuda a recrutar a ajuda daqueles indivíduos dentro da cultura Européia que precisam se ver como “salvadores do mundo;” eles podem encorajar a busca imperialista na forma do paternalismo Europeu. Mas esta não é a função primária da “ética retórica;” Ele é projetada principalmente para exportação.

Kovel diz que, como resultado da “divisão,” o “Ocidente se deparou com uma crescente lacuna entre seu ideal de superego e sua prática de ego.” Não apenas esses supostos ideais falham em representar o “superego” Europeu ou qualquer outra parte de sua psique, mas torna-se questionável se o mandamento de “amar” todas as pessoas, incluindo seus inimigos, poderia representar um objetivo culturalmente viável. .

[ * — Joel Kovel, White Racism, Vintage, New York, 1971, p. 146.]

Desde a sua história inicial, a “corrupção” da Igreja tem sido a preocupação dos “bons” Cristãos. Estes são os indivíduos nascidos na cultura Européia que nunca entenderam o Cristianismo em sua interpretação Européia. O fato é que a esmagadora maioria dos Europeus automaticamente — não necessariamente reflexivamente, mas “naturalmente” — “compreende” como usar essa ética por causa de sua participação mútua em um utamaroho comum; a ideologia e personalidade coletiva que eles compartilham. As instâncias isoladas daqueles que não se identificam com esse utamaroho (fonte de energia) adequadamente ou totalmente e aqueles que se confundem com a “ética retórica” ​​têm estimulado a ilusão de que ela representa “conflito” na ideologia Européia. Kierkegaard representa o epítome do indivíduo que parece estar procurando desesperadamente na cultura por algo que esta nunca foi destinada a conter. ele não entende a asili. A acusação de Kierkegaard é que o “Cristianismo do Novo Testamento” não existe mais, mas, na minha opinião, ele nunca “existiu,” certamente não como uma possibilidade cultural Européia. Ironicamente, é dentro de outras culturas que alguns dos valores “Cristãos” adotados existem, na medida em que são humanamente significativos e concretamente realizáveis. É fora do Ocidente que a paz, a compaixão, a espiritualidade, a falta de agressão e a tolerância intercultural são mais prováveis ​​de serem encontrados, uma vez que é aqui que as filosofias culturais são encontradas para apoiar tal comportamento. O “ataque” de Kierkegaard é representativo da percepção da hipocrisia Européia, sem o reconhecimento de seu significado étnico/histórico. Ele diz,

Somos o que é chamado de uma nação “Cristã” — mas de tal modo que nem um único de nós está no caráter do Cristianismo do Novo Testamento. . . a Cristandade é. . . a traição do Cristianismo. . . .

Ele acrescenta que “a Cristandade” tem “eliminado o Cristianismo através de uma falsa maneira de propagá-lo, fazendo Cristãos de todo mundo e dando a esta atividade a aparência de zelo pela divulgação da doutrina.” Ele está na posição em que qualquer um se encontraria se esperasse que a interação social Européia fosse determinada por uma ética altruísta, humilde ou simplesmente, verbalizada honestamente.

[ * — Kierkegaard’s Attack Upon Christendom (1854-1855), trans. Wlater Lowrie, Princeton University Press, Princeton, 1944, pp. 304-305.]

A concepção de Spengler da “ética Cristã” é muito mais precisa, e sua perspectiva muito diferente aproxima-o de uma avaliação mais realista do significado dos ensinamentos Cristãos no contexto da ideologia Européia:

Meu reino não é deste mundo. . . Um governante que deseja melhorar a religião na direção de propósitos políticos e práticos é um tolo. Um sociólogo-pregador que tenta trazer a verdade, a retidão, a paz e o perdão ao mundo, da realidade é também um tolo. Nenhuma fé alterou o mundo, e nenhum fato pode jamais refutar a fé. Não há ponte entre o Tempo direcional e a Eternidade intemporal, entre o curso da história e a existência de uma ordem mundial divina. Este é o significado final do momento em que Jesus e Pilatos se confrontaram. No primeiro mundo, o histórico, o Romano fez com que o Galileu fosse crucificado — esse era o seu destino. No outro mundo, Roma foi lançada para a perdição e a Cruz tornou-se o penhor da Redenção — essa era a “vontade de Deus.”

Religião é metafísica e nada mais. . . e essa metafísica não é a metafísica do conhecimento, argumento, prova (que é meramente filosofia ou erudição), mas metefísica vivida e experimentada — isto é, o impensável como uma certeza, o sobrenatural como um fato, a vida como existência em um mundo que é não-real, mas verdadeiro [non-actual, but true]. . . . Atribuir propósitos sociais a Jesus é uma blasfêmia. . . . Seu ensinamento foi proclamação, nada além da proclamação daquelas Coisas Últimas, com cujas imagens ele foi constantemente preenchido, o alvorecer da Nova Era, o advento dos enviados celestiais, o juízo final, um novo céu e uma nova terra. *

[ * — Oswald Spengler, The Decline of the West, Vol. II, Alfred A. Knopf, New York, 1928, pp. 216-217.]

Spengler vai contra o conceito teleológico Judaico-Cristão da história secular, mas, de outro modo, suas observações são informadas por uma consciência caracteristicamente Européia. Elas têm uma certa precisão. Na formulação Cristã, em sua interpretação Européia, não há “comunhão” autêntica entre o humano e o divino. Isso raramente é alcançado e, portanto, resulta na “divisão” de que fala Kovel. Isto não é verdade de todas as formulações religiosas, no entanto. No pensamento Africano, por exemplo, esse encontro é alcançado por meio da apreensão do mundo como espírito e da concepção filosófica da comunhão ancestral que ele permite, bem como de outros mecanismos culturais, como o drama ritual. A presença do tempo e do espaço sagrados é sentida e evidenciada na existência comum das pessoas.

Spengler, em oposição a Kierkegaard, interpreta o significado dos ensinamentos Cristãos de uma forma que é viável para o utamaroho Europeu. Em sua interpretação, a vida de Jesus não deveria ser imitada por aqueles que sobreviveriam nesta terra, especialmente como esta foi transformada pelos Europeus. E, em oposição a Kovel, ele insinua que o Cristianismo não “se afastou do mundo” depois do fato, mas foi inicialmente concebida como “alheia a este mundo” [“otherworldly], como distante e separada. A preocupação de Spengler é com aqueles cujos equívocos os levariam a tentar trazer essas “abstrações” para o “mundo da realidade;” Preocupa-o que aqueles que não compreendem a natureza “verdadeira” (ou seja, a função em termos da asili Européia) dos ensinamentos Cristãos comecem a convencer os Europeus de que devem se comportar de acordo com a “ética retórica,” e isso significaria mudar a cultura. Mas Lutero e Calvino conseguiram, com efeito, moldar uma nova declaração ética, que estava mais de acordo com a dinâmica interna da cultura. As doutrinas que eles desenvolveram apoiaram o comportamento competitivo, individualista, agressivo, racionalista, não espiritual e distanciado, necessário para a sobrevivência dentro da cultura. Não havia mais a questão de imitar o retrato de Jesus do Novo Testamento.

Ayn Rand, como Spengler, teme que o que ela chama de “humanitários” estejam “no poder”, na verdade, que sua influência “anticientífica” tenha sido sentida ao longo da história. Ela está preocupada que eles venham a derrotar o capitalismo. O “Capitalismo,” diz ela, “nunca teve uma base moral neste país. . . Existe uma contradição fundamental entre o capitalismo e a moralidade altruísta — o capitalismo exige a busca dos próprios interesses.” *

[ * — Ayn Rand on Speaking Freely, NBC, August 12, 1972.]

Este último ponto é absolutamente correto e tem profundo significado cultural e histórico. A natureza historicamente exploradora, agressiva, copiosa [cupacious] e egoísta da cultura Européia é a antítese das virtudes Cristãs declaradas de “fraternidade,” “mansidão,” “humildade,” generosidade e altruísmo. Mas em algum lugar ao longo do caminho Rand perdeu algo de vital importância. As próprias características do capitalismo e da cultura Européia que ela valoriza são perpetuadas, e não prejudicadas pelas alegações de “humanitários” desonestos. Os Rockefellers fazem tudo o que podem para criar uma imagem “humanitária” de si mesmos para consumo público. Todos os capitalistas mais bem sucedidos (portanto Europeus bem-sucedidos) são também os maiores humanitários da Europa (Euro-América). São precisamente essas características que Ayn Rand considera virtuosas que sobreviveram na cultura Européia. Isso deve ser uma indicação de que o capitalismo certamente tem uma forte base moral nos Estados Unidos e que não existe uma “moralidade altruísta” normativa e funcional na cultura derivada da Europa. Ela foi vítima da retórica de sua própria cultura; retórica não destinada para seu consumo.

Nietzsche é atormentado por uma preocupação semelhante em o “Anti-Cristo.” É difícil entender por que Nietzsche não vê que está lutando contra um inimigo que não existe. Ele está preocupado que a “ética Cristã” irá retardar o desenvolvimento e a sobrevivência do “super-homem.” *

[ * — Friedrich Nietzsche, “The Anti Christ,” in Works of Friedrich Nietzsche, Vol. XI, trans. Thomas Common, Alexander Tille (ed.), Macmilla, New York, 1924, p. 240.]

Ele descreve com precisão o efeito debilitante do Cristianismo, mas não diz que ele teve esse efeito sobre os povos “não-Europeus” ao lidarem com o Ocidente. Nietzsche diz que ele [o Cristianismo] tende a “enfraquecer,” e está certo. Mas ele “enfraquece” outras culturas, enquanto fortalece o poder Europeu.

O cristianismo é chamado a religião da simpatia. . .

   A simpatia está em antítese às paixões tônicas que elevam a energia do sentimento de vida: ela opera depressivamente. A pessoa perde força por simpatizar. *

[ * — Ibid, p. 242.]

E este é precisamente o efeito que o Cristianismo teve invariavelmente sobre aqueles que se oporiam ao controle Europeu; isto é, ensinando-os a simpatizar com seus inimigos. Nietzsche afirma que Jesus “morrendo pelos outros” é o epítome da imagem política negativa — uma observação incrivelmente astuta. Mas ele não consegue estabelecer a conexão entre o esmagador sucesso político da Europa e sua completa rejeição dessa imagem. Os medos de Nietzsche são infundados; a ética retórica não afeta o Europeu.

O que é interessante nos pensamentos de Spengler, Nietzsche e até de Rand é a falta de hipocrisia que estou considerando aqui como um tema na cultura Européia. Eles aparentemente rejeitam a ética retórica Européia; isto é, eles se recusam a fazer da “ética Cristã” uma parte de sua própria “retórica.” Freqüentemente, os teóricos da “direita” no Ocidente são mais honestos em negar os professos valores da “ética Cristã” do que os liberais Europeus em seu apoio verbal. Muitas vezes esta é a única característica distintiva entre eles.

 

A Ética Retórica em Operação

Muito poucas teorias Européias têm focado sobre o uso político e a função da ética retórica. Abaixo, Chapman Cohen descreve sucintamente o uso imperialista da declaração Cristã — um uso que aponta para a natureza hipócrita da retórica de “fraternidade-paz-amor”:

O branco conquistador professa a religião Cristã. . . em quase todos os casos, sua conquista é promovida sob o disfarce de dar aos povos de cor uma religião mais pura e uma civilização superior. *

[ * — Chapman Cohen, Christianity, Slavery and Labour, Pioneer Press, London, 1931, p. 117.]

Mas, mais freqüentemente, na teoria social Ocidental, a ética retórica foi erroneamente usada para caracterizar o comportamento e os valores Europeus. A declaração a seguir é de Robin Williams, cuja postura ostensiva é de análise sociológica “objetiva,” isto é, descompromissada, da sociedade Americana contemporânea.

A generosidade proverbial do povo Americano em relação a outras sociedades que enfrentam desastres em massa — por exemplo, terremotos, inundações, incêndios, fome — tem elementos de exagero e mito; mas indexa um tema real e persistente, amplamente baseado em idéias religiosas ou quase-religiosas de fraternidade, embora estas tenham sido frequentemente anuladas por interesses divergentes e valores concorrentes. A enorme variedade de atividades humanitárias relativamente desinteressadas nos Estados Unidos — o comum Fundo Unido [commonplace United Fund], as atividades do “clube de serviço” [“service club”], as agências públicas de assistência social, as numerosas filantropias privadas e assim por diante — contrastam com o tratamento dispensado aos “pobres” e aos “robustos mendigos”em muitas outras partes da sociedade Ocidental nos últimos dois séculos. *

[ * — Robin Williams, American Society: A Sociological interpretation, 3rd ed., Alfred A. Knopf, New York, 1970, p. 463.]

Williams atribui a existência desse tipo de comportamento a um compromisso com as abstrações de “fraternidade” e “humanitarismo.” Isto é incompreender completamente a natureza da cultura. Os pacotes de assistência [Care packages] e o sistema de previdência apoiam os Americanos Europeus na manutenção de sua imagem de superioridade. São manifestações do paternalismo em relação aos outros, não de “fraternidade” nem de desinteresse. Essa “fraternidade” nunca levou o governo Americano a deixar países estrangeiros, e nunca ditou que os Europeus dessem conta de seus recursos roubados. “Fraternidade” verdadeira repousa na identificação com os outros como a si mesmo, como um parente; os Europeus nunca poderiam responder aos não-Europeus dessa maneira. De fato, seria “antinatural” para qualquer cultura fazê-lo, mas é especialmente contraditório no contexto do utamaroho Europeu, onde a autodefinição depende da existência de “outros” considerados inferiores, incapazes e indignos. O filantrópico “dar” reforça a auto-imagem Européia como “superior”, não como “irmão”.

Williams continua com sua descrição dos valores da sociedade Americana:

Costumes humanitários
  Usaremos o termo “humanitarismo” para nos referirmos a outro importante grupo de valores na sociedade Americana, isto é, a ênfase em qualquer tipo de preocupação e utilidade desinteressada, incluindo gentileza pessoal, ajuda e conforto, ajuda espontânea em desastres em massa, bem como padrões pessoais mais importantes de filantropia organizada. Essas coisas representam valores importantes na América?

É fácil acumular evidências contrárias. Poderíamos citar a expulsão e o extermínio dos Índios, a escravidão, o padrão desumano da indústria e uma longa lista de trabalho infantil, linchamento, vigilância e insensibilidade social em muitas formas. Provavelmente poucos povos documentaram e analisaram copiosamente o que eles mesmos consideram ser os aspectos “ruins” de sua história — um fato revelador em si, pois era a mesma cultura que produzia o comportamento e então o declarava indesejável ou errado. Mesmo assim, as evidências dos valores humanitários atendem a todos os nossos testes por um valor maior. Por um lado, é surpreendente que o fracasso em seguir os padrões de preocupação e utilidade não tenha sido defendido como legítimo em si; eles foram interpretados como desvio de um critério que não é basicamente desafiado ou “justificado” em termos de outros valores supostamente mais vitais. Certos padrões de utilidade e generosidade mútuas já eram aparentes na América colonial, apesar da teologia severa e do individualismo rigorosamente disciplinado, e persistiram em uma extensão importante até o presente momento. *

[ * — Ibid, pp. 462-463.]

Enquanto o chauvinista Europeu declarado canta abertamente seus louvores ao modo Ocidental, Williams “testa” suas descrições eufemísticas contra os critérios que ele estabeleceu. Ele está certo; é certamente “revelador” que apenas os Europeus estudam, documentam e rotulam como “maus” aspectos da sua própria história — o seu próprio comportamento — que foram postos em causa internacionalmente. O que isso revela, no entanto, é que está na natureza da cultura que seus participantes podem “dizer” uma coisa e “sentir” outra; que palavras não indicam comprometimento; essa hipocrisia é um padrão comportamental; e que este tipo de denúncia verbal e análise superficial, de fato, permite a persistência daqueles mesmos aspectos que foram declarados como “ruins.” Williams é, no mínimo, ingênuo em sua crença de que a condenação verbal do comportamento explorador e imperialista implica que a cultura Americana enfatiza a “preocupação desinteressada pelos outros.” Mais uma vez, é frequentemente o chauvinista europeu declarado que oferece uma descrição mais precisa do comportamento Europeu. Wayne MacLeod faz a seguinte observação sobre a cultura Européia Ocidental:

Embora o “Cristianismo” pregue os valores de tranqüilidade e propósitos bondosos, a Europa aderiu a essas virtudes com dificuldade e preferiu uma história belicosa [war-like history]. O movimento “Nazista” do século XX, que encorajou o vigor e a atividade, é um exemplo de uma ideologia mais adequada ao temperamento norte-Europeu. *

[ * — Wayne MacLeod, The Importance of Race in Civilization, Noontide Press, Los Angeles, 1968, p. 96.]

A supremacia Branca é característica da cultura Européia — não excepcional ou aberrante. E o Nazismo é a manifestação das possibilidades extremas dessas tendências quando os mecanismos de controle da cultura falham; isto é, quando as tendências destrutivas são desencadeadas entre os Europeus. Robin Williams, por outro lado, luta para demonstrar a inconsistência “lógica” do “determinismo racial” com os ideais Ocidentais. *

[ * — Williams, p. 499.]

A estratégia é simples. Ao negar verbalmente o nacionalismo branco (a prática da supremacia branca), os Europeus (Europeus-Americanos) são, assim, capazes de evitar lidar com isso. Eles não podem enfrentá-lo, porque intuitivamente sabem o que nunca admitiriam; que é uma parte inerente de sua herança cultural. Eles estão comprometidos com sua cultura e, portanto, indiretamente, com o nacionalismo branco. Erradicar a ideologia supremacista branca da institucionalização da cultura implicaria mudar radicalmente a si mesmos e ao que significa ser “Europeu”: implicaria uma asili diferente — um ser bio-cultural diferente.

A criação, projeção, e utilização imperialista cultural Européia do tema “universalismo” como padrão normativo de comportamento e compromisso humanos são uma das principais preocupações deste estudo. Yehoshua Arieli aborda-a parcialmente em sua discussão sobre o nacionalismo Protestante, que citei no capítulo 4. *
[ *— Yehoshua Ariei, Individualism and Nationalism in American ideology, Penguin Books, Baltimore, 1966, p. 256.]

Compare a declaração de Arieli com a seguinte de Robin Williams sobre o mesmo assunto:

Esse sentimento de satisfação incorpora valores supostamente universais. Um patriotismo puramente tribal concebe sua cultura como tendo um destino único e não pensa em estender seus valores ao resto da humanidade. Mas o nacionalismo Americano, como as religiões que contribuíram tão fortemente para a cultura, envolve a idéia de que elementos do estilo de vida Americano deveriam ser amplamente adotados em outros lugares. Essa contrapartida secular do espírito missionário é tanto um indicador da força do sentimento nacionalista quanto uma fonte potente de incompreensão e ressentimento nos assuntos internacionais. Tanto na paz quanto na guerra, muitos cidadãos acreditam que os Estados Unidos devem ter uma missão como Cruzados pela justiça. Outros povos nem sempre consideraram o assunto sob esta luz. *

[ * — Williams, p. 491.]

É tentador descartar a afirmação de Williams como sendo obviamente imprecisa e superficial. Mas usando a abordagem da asili, essas declarações se tornam muito significativas como dados etnográficos, uma vez que exemplificam as manifestações do chauvinismo cultural Europeu Ocidental que têm sido mais difíceis de combater. Essas manifestações inibiram de maneira mais eficaz a interpretação e caracterização cultural/política exata daquilo que é Europeu. “Análises” como as de Williams atestam o fato de que, contrariamente à sua “auto-imagem” e aos “avanços” que os Platônicos estavam convencidos de que estavam fazendo, o Europeu não é mais crítico (no uso Platônico desse termo) do que qualquer outro ser cultural; na verdade, a cultura deles contém um mecanismo para o engano sistemático que não é encontrado em outras culturas.

 

“Teoria Ética” e a Ética Retórica

Faz parte da postura dos filósofos morais da cultura Europeia negar o compromisso cultural, mas seu trabalho contribuiu significativamente para a sobrevivência e intensificação da ética retórica — a hipocrisia e o engano que constituem uma parte vital e definitiva do conteúdo do imperialismo cultural Europeu — e, portanto, aos objetivos nacionalistas.

Para começar, o utamawazo, de influência Platônica, fornece a base teórica para uma ética conceitual; um sistema ético, cujos temas são considerados válidos, desde que sejam consistentes em termos da lógica desse sistema. O que é “ético” torna-se o que é “racional” e “lógico.” A declaração mais “ética” é a mais pura abstração. Como Havelock observa corretamente, a capacidade do indivíduo para agir eticamente baseia-se em sua capacidade de pensar “racionalmente;” ou seja, “abstratamente.” O resultado, novamente, é “conversa” [“talk”]. A idéia Européia é que as palavras separadas da ação, sentimento, compromisso, do envolvimento humano podem ser relevantes para (e informar adequadamente) a interação humana — desde que sejam parte de uma sintaxe consistente; um sistema semântico aprovado. Essa busca em si é um exercício de auto-engano. Culturas primárias são caracterizadas por uma “ética existencial” (Stanley Diamond) que se baseia sobre e se refere ao comportamento real. A cultura Européia dá origem a sistemas semânticos e, em vez de se preocupar com a inconsistência entre “palavra” e “ação” (que poderiam ser determinantes do comportamento ético), os filósofos morais estão preocupados apenas com o verbal e com o que eles chamam de inconsistência  “lógica.” Um resultado dessa característica da cultura é a tendência de considerar os filósofos as mais irrelevantes das pessoas e de efetivamente divorciar seu trabalho de qualquer capacidade ou função de decisão que, em qualquer forma, influencie o comportamento ético dos povos Europeus. O que essa tradição tem feito é apoiar a cultura em sua habilidade de usar palavras sem sentido [words without meaning], e apoiar os Europeus em sua busca para enganar os outros e a si mesmos também. O corpo de literatura conhecido como “teoria ética” tem sido em grande parte favorável ao crescimento da hipocrisia moral na cultura Européia.

É a tradição acadêmica “liberal” na cultura Européia/Européia Americana contemporânea que usa a ética retórica para apoiar os objetivos do chauvinismo Europeu. Com engenhosidade, esses teóricos usam os sistemas semânticos dos filósofos morais, a retórica de “fraternidade” da afirmação Cristã e abstrações vazias como “humanitarismo” e “ética universalista” como evidência dos compromissos ideológicos dos Europeus e, portanto, como índices da natureza da Cultura Européia. Eles são “críticos,” porque dizem que o comportamento imperialista do Europeu representou um tema conflitante ou uma tendência “negativa” no desenvolvimento Europeu. O resultado de suas teorias, no entanto, é que elas conseguem tornar o Europeu responsável por tudo — o “bem” assim como o “mal” — e no final o bem supera o mal e, é claro, triunfa com “razão.”

Norman F. Cantor fornece um excelente exemplo do sutil chauvinismo do acadêmico liberal Europeu em seu trabalho sobre a cultura Ocidental. Ele diz,

O novo etos do final da década de 1960 procurava restaurar em seu lugar central na cultura Ocidental os ideais religiosos, místicos, compassivos, imaginativos e altruístas que haviam sido manchados ou ignorados pelo industrialismo e pelo secularismo, pelo mecanismo e burocracia da vida moderna. *

[ * — Norman F. Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. II, Scott, Foreman, Glenview, III., 1970, p. 626.]

O novo ethos tinha raízes indígenas em algumas das correntes centrais da tradição Ocidental — no misticismo Cristão, na visão Iluminista de um mundo feliz e pacífico, no anseio do Romantismo pela união entre o eu e a natureza e pela união de todos os indivíduos no Espírito Absoluto, na fé do anarquismo na associação espontânea dos homens numa comunidade harmoniosa quando liberta da brutalidade e opressão do Estado, na ética afirmadora da vida de Nietzsche e na revelação de Freud da primazia dos impulsos eróticos, e na filosofia existencial de Camus, Sartre e Jaspers. *

[ *— Ibid, p. 624.]

O truque é “reivindicar” idéias que não influenciaram a definição da cultura: porque elas não se encaixam na asili. Deste modo, qualquer crítica da ideologia Européia informada por uma visão do humano que só poderia ter sido criada por uma rejeição do valor Europeu ou em uma cultura qualitativamente diferente da própria cultura Européia, torna-se um produto “Ocidental.” E esse argumento (se for “discutido”) é feito com base em valores que eram, para o Europeu, nunca mais que retórica! O “misticismo Cristão” torna-se “Ocidental,” e a “visão Iluminista de um mundo feliz” não é manchada pelo fato de que esse mundo deveria ser definido em termos de e controlado pelo “progresso” Europeu.

A caracterização de Cantor do “liberalismo Ocidental” é uma declaração perfeita do que chamei de “ética retórica.” Na declaração que se segue, tirada dos parágrafos finais de seu trabalho de três volumes sobre a história cultural Européia, Cantor reivindica, para a cultura, suas críticas mais severas. Movimentos que buscam a destruição do que o Ocidente significou são caracterizados como expressões do humanismo Ocidental e dos ideais Ocidentais. Este trecho é uma prova da característica do nacionalismo cultural Europeu que estamos aqui delineando. Esse exemplo particular é ainda mais significativo porque representa um texto publicado recentemente, usado para explicar e interpretar para o estudante universitário Europeu-Americano a natureza e o significado da história Européia-Ocidental:

É uma perniciosa leitura errada da história identificar a civilização Ocidental com o racismo, o imperialismo e o capitalismo do final do século XIX. Mesmo em seu auge, essas atitudes e instituições eram apenas um lado da visão de mundo e modo de vida Ocidentais. O destino da civilização Ocidental transcende incomensuravelmente os erros de uma época. O Ocidente teve sua confusão, horror e miséria, seus momentos em que doutrinas anti-humanas pareceram estar à beira de levar todos diante delas. Mas é a glória da civilização Ocidental que nunca parou e nunca negligenciou por muito tempo a busca de instituições que possam contribuir para a realização da liberdade humana. Logo suas melhores mentes recordaram os mais altos ideais das tradições clássica e Cristã; eles inspiraram seus contemporâneos com a visão de uma grande era de começar de novo, de estabelecer o reino de Deus na terra ou um equivalente secular em seu próprio tempo. *

[ * — Norman F. Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. II, Scott, Foreman, Glenview, III., 1970, p. 626.]

Cantor conclui sua panegírica com a certeza de que “os grandes levantes da década de 1960 foram coletivamente apenas manifestações da antiga tradição ocidental pelas quais a ‘civilização’ Ocidental periodicamente ‘se renova’. Desta forma, ele desacredita a necessidade de revolução; e, de fato, “reivindica” os revolucionários, os quais, diz ele, serão inevitavelmente e alegremente obscurecidos pelos “racionalistas e moderados,”

que reestruturaram as instituições do passado e redirecionaram as idéias do presente. O resultado nunca foi a justiça perfeita ou a verdade absoluta, mas a justiça suficiente e a verdade suficiente para satisfazer as ansiedades da era contemporânea, restabelecendo a paz social e a ordem política que o progresso da civilização exige. *

[ * — Norman F. Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. II, Scott, Foreman, Glenview, III., 1970, p. 626.]

E assim termina o estudo histórico de Cantor sobre a “gênese e destino” da cultura Ocidental. Com suas maiores mentes como os guardiões da “civilização” — não apenas da “civilização Européia.” Minha interpretação dessa história é bem diferente, pois é informada por uma perspectiva e metodologia Africano-centrada. Cantor está preocupado com receio de os estudantes do “novo ethos” se “estilhaçarem” e se separarem irrevogavelmente do que historicamente tem sido a cultura da Europa Ocidental. Nossa conclusão é que a tradição Européia deve ser “estilhaçada” para que um verdadeiro “novo ethos” substitua o antigo. Isso significa um novo utamaroho para cumprir uma asili diferente. Mas, então, centrada no interesse Africano, entendo que a cultura Européia é identificada com o anti-Africanismo, a busca imperialista, e com a negação do espírito humano; enquanto Cantor considera essa identificação “perniciosa” e afirma que a “libertação do espírito humano” tem sido uma “corrente central” na tradição Ocidental. Em última análise, os objetivos de Cantor são chauvinistas. Ele está preocupado em influenciar os estudantes de tal forma que eles irão agir para manter a “paz” e “ordem” necessárias para a continuação da concepção Européia de “progresso,” ou seja, a persistência do poder Europeu.

 

O Significado Etnológico da Ética Retórica

A ética retórica tem suas origens na asili da cultura e no objetivo do imperialismo e é, portanto, dirigida aos “objetos” políticos Europeus, em um esforço para disfarçar a intenção imperialista da Europa e para desarmar politicamente aqueles que os Europeus devem controlar. Mas ela também afetou um segmento da população Européia. Através de esforços contínuos para enganar os outros por meio da construção de um elaborado sistema retórico, uma pequena proporção da cultura sem dúvida conseguiu se enganar. Esta é precisamente a mesma dinâmica que ocorre frequentemente no meio Europeu do entretenimento. Uma imagem bizarra de um intérprete é projetada pela mídia e sua máquina de relações públicas para “transformá-la” e sustentá-la como uma “estrela.” Embora a imagem seja radicalmente diferente de sua verdadeira natureza, ela se torna uma vítima de sua própria propaganda e do poder da mídia e começa a acreditar que ela é o que ela vê na tela, etc. O exemplo é apropriado porque nos permite ver que mesmo esse tipo de auto-engano deve ser cuidadosamente distinguido de um ideal ou valor funcional. A confusão de sua imagem de relações públicas consigo mesma não implica que a imagem seja o ideal dela no sentido do que ela quer ser; geralmente implica bem o oposto.

Esse tipo de confusão cultural também pode ter outro efeito. Da forma como Amos Wilson reformulou o conceito de “falsa consciência” de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido), este torna-se útil aqui. O Europeu que leva a sério a ética retórica faz isso através de uma falsa consciência que o impede de perceber o interesse de seu próprio grupo como definido por sua cultura. O resultado é perigoso para pessoas de ascendência Africana e outros não-Europeus que, por engano, tomam o comportamento anômalo resultante por uma possível “regra”. Um Europeu agindo com base em uma falsa consciência debilita os “objetos” da opressão Européia ao diminuir sua capacidade de “enxergar direito” ou de analisar corretamente o comportamento Europeu baseado na compreensão da asili da cultura. Um Europeu que está enganado sobre quem ele é meramente consegue enganar não-Europeus. Um Europeu que entende a natureza de sua cultura, mas não compartilha o utamaroho de sua cultura (uma circunstância altamente improvável, uma vez que contradiz a asili), deve agir para mudar o utamaroho da cultura, para se livrar de seus “portadores”: Este é seu único recurso, se ele for honesto.

A natureza da ética retórica é ainda mais complicada pelo fato de que o que é projetado como ideais culturais são meras abstrações verbais sem conteúdo humano. Nenhuma cultura pode ser informada por coisas como “altruísmo universal” ou o abstrato”amor da humanidade.” As filosofias de muitas culturas primárias podem implicar uma relação mais compreensiva com todos os povos, mas mesmo aqui a identificação “universal” não pode ser um objetivo primário ou imediato. Os termos abstratos da ética retórica, mesmo que concebíveis, não geram necessariamente um comportamento moral. “Amar a humanidade” não é existencialmente traduzível em respeito a outras pessoas, e “paz internacional” é perfeitamente compatível com “domínio mundial”, como inevitavelmente tem sido interpretado no Ocidente.

O liberal confuso torna-se o chauvinista Europeu mais perigoso de todos. Seu uso de “dois chapéus” [“two hats”] faz mais para manter o sistema Europeu do que o trabalho daqueles que são reconhecidos como chauvinistas. Se um missionário acredita sinceramente que veio ajudar os Africanos, isso só pode ser considerado uma forma perigosa de ilusão. A atitude politicamente sábia de suas vítimas seria considerá-lo exatamente como qualquer outro aspirante a conquistador. Infelizmente para eles, no passado, os povos do Primeiro Mundo que compreenderam as implicações do missionarismo Europeu, seja da variedade “secular” ou“religiosa”, gastaram grande energia na tentativa de convencer o missionário do real efeito cultural/político do seu trabalho. Esta é uma causa sem esperança. Tais esforços apenas os envolvem no interminável abismo retórico da cultura Européia, em vez de em autodefesa ativa. O ponto aqui é que, embora a ética retórica possa às vezes representar instâncias de auto-engano na própria cultura Européia, isso não altera o fato de sua função e eficácia em relação ao imperialismo Ocidental. A única maneira de ajudar os povos do Primeiro Mundo é representar com precisão a natureza da cultura Européia e os motivos do comportamento Europeu. A decisão sobre quais mudanças devem ser feitas em nossas culturas é nossa e deve ser iniciada por nós.

Frances Welsing disse:

As pessoas de cor não entenderam de onde vinham as pessoas brancas, desde o primeiro dia. Hoje, os negros continuam presumindo que o que sentem em relação às outras pessoas, as pessoas brancas também sentem. Pessoas não brancas em todo o mundo estão confusas com a facilidade com que as pessoas brancas se movem em hipocrisia e engano. Nós apenas não somos capazes de entender isso. Se você está operando em um sistema lógico e encontra alguém que está vindo de um sistema lógico completamente diferente, você pode não ser capaz de descobri-lo, especialmente se eles são realmente bons em sua metodologia de engano. *

[ * — Frances Cress Welsing, “A Conversation with Dr. Welsing,” in Essence Magazine, October, 1973, p. 51.]

A declaração de Welsing é bastante certeira. Ela ajuda a mostrar que a desonestidade, a hipocrisia e a “mentira moral” são inerentes e funcionais à coesão da cultura derivada da Europa. A normalidade dessas características comportamentais sanciona e define a natureza retórica da “ética Cristã,” que, portanto, não entra em conflito com o comportamento dominante Europeu/EuroAmericano. É impossível entender o comportamento do Europeu até que isto seja reconhecido, da mesma maneira que é impossível entender o comportamento Europeu com base em dinâmicas éticas de outras culturas e outras pessoas. É claro que essa característica da cultura não pode ser reduzida à tradicional distinção antropológica entre valores “ideais” e reais. Essas distinções apenas impedem a compreensão da natureza da cultura Européia. Abaixo estão listadas as características da ética retórica que a distinguem de qualquer coisa que possa ser chamada de ideal cultural:

1. É uma afirmação que não é de forma alguma normativa para o Europeu; isto é, não é um guia para o comportamento.
2. É dirigida para, ou seja, destinada a afetar as pessoas fora das sociedades Européias — aquelas que são as vítimas políticas pretendidas.
3. Sua finalidade é facilitar o imperialismo Europeu Ocidental
● imobilizando movimentos nacionalistas de resistência de outros povos e
● fazendo com que o domínio Europeu pareça ser o resultado de uma motivação desinteressada e altruísta.

Não há nada no sistema de crenças Europeu que apoie a ação em nome dos outros. É absurdo descrever o “altruísmo” como um “valor maior” ou “corrente central” na ideologia Européia, como fizeram Williams e Cantor. Antes, a reivindicação de ideais de “altruísmo” e “fraternidade universal do homem” deve ser reconhecida em termos de seu valor propagandístico crucial. Não há um ser mais politicamente astuto e auto-interessado do que o Europeu.

É bem possível que a cultura Européia seja a única cultura que deve ter uma ética retórica, além da ética que realmente influencia o comportamento. Apenas o utamaroho Europeu parece exigir uma visão de si mesmo em oposição ao “outro;” isto é, onde esta visão se torna o aspecto fundamental e definicional do utamaroho. Essa consciência do “outro” não se origina em uma concepção abstrata de “humanidade,” mas sim no medo Europeu da diferença e na necessidade de se sentir superior. De fato, a abstração, no mínimo, pode ser entendida como tendo sido concebida para revestir a nudez do impulso Europeu por poder. É ditado pela asili da cultura Européia que o Europeu deve ter “dois rostos” e uma “língua bifurcada.” Ele deve mentir.

Na cultura Européia a “mentira moral” é epistemologicamente reforçada pela metodologia de “objetificação” e ontologicamente por uma concepção do humano que busca sempre invalidar respostas emocionais. Isso possibilita, sem conflito ideológico, a criação de uma ética retórica para propósitos puramente políticos. O que foi referido em toda a história Européia Ocidental como “ética Cristã” tem pouco significado para o Europeu. Não representa conflito no compromisso Europeu, mas deve ser explicada em termos da esmagadora consistência e coesão da cultura: a asili. A ética retórica é, portanto, devido à natureza peculiar da cultura Européia, na qual o engano e a hipocrisia tornam-se normais, funcional para o esforço conativo Europeu pela supremacia mundial.

O conceito de asili traz a ética retórica nitidamente em foco. Como núcleo ideológico da cultura, ela nos fornece um quadro de referência — um conceito autêntico no qual interpretar a retórica convencional usada pelos Europeus para descrever suas atitudes em relação aos outros. Uma vez que a asili nos diz que cada traço significativo, cada modo dominante da cultura, deve se ajustar à “lógica” de seu modelo germinativo, entendemos que a ética retórica não poderia ser um ideal funcional, um comportamento determinante, pois isso causaria um mau funcionamento da máquina. Isso motivaria comportamentos inconsistentes e confusão ideológica por parte dos membros da cultura. Tal inconsistência faria com que a cultura (máquina) se tornasse disfuncional em relação ao seu objetivo (finalidade). A ética retórica só faz sentido se for de fato meramente retórica; ela “se ajusta” à asili [“fits” the asili]. Ao mesmo tempo, a asili da cultura “exige” uma ética retórica por causa de sua necessidade de hipocrisia para tornar sua agressão mais efetiva. Ela é necessária para “Relações Públicas” bem sucedidas. O conceito de asili, quando aplicado à cultura Européia, nos diz que se a ética retórica fosse de fato se tornar um determinante operativo do comportamento, a cultura em seu impulso imperialista e mecanicista seria destruída. Por fim, sua fonte nucleica se tornaria incoerente. A cultura deixaria de existir em sua forma prototípica. Morreria ou se tornaria outra coisa. Mas o inverso foi o caso. A tradição Européia tem sido esmagadoramente bem sucedida em se perpetuar. A destruição de sua asili deve ser efetuada de fora.

A ética retórica desempenha um papel crucial na manutenção do utamaroho Europeu e no apoio do imperialismo cultural Europeu Ocidental. É o fator primordial em um proselitismo bem sucedido da cultura através da criação de uma falsa imagem do Europeu. E, no entanto, devido à sua metodologia sutilmente manipuladora e à sua técnica intrinsecamente enganosa, ela, em sua maior parte, passou despercebida como uma expressão do nacionalismo cultural Europeu. Com uma compreensão adequada do funcionamento da ética retórica na cultura Européia, fica mais fácil entender os padrões do comportamento intracultural (capítulo 7) e intercultural (capítulo 8) Europeu.

 

 

 

 

 

 


 

 

marimba ani - capitulo 7 head

 

A Questão das Normas

Quais são os “valores” ou normas que orientam o comportamento dos Europeus dentro de sua cultura; isto é, o comportamento deles em relação a outros Europeus? “Ética,” aqui, indica as crenças implícitas por (1) a maneira pela qual eles tratam os outros membros de sua cultura, (2) os objetivos pelos quais eles se esforçam e (3) os métodos pelos quais eles tentam alcançá-los. Essas concepções culturais do que é “ético” são transmitidas aos Europeus (Europeus Americanos) pela tradição que compartilham com outras pessoas em sua cultura, e sua aceitação dessas concepções implica um sistema de “moralidade” ao qual os Europeus aderem. Podemos, então, ver a cultura Européia como uma determinante do comportamento padronizado. Em seu estudo American Society, a caracterização que Robin Williams faz de seu próprio tema coincide com o meu objetivo neste capítulo. Ele diz que está tentando descrever “a cultura como uma estrutura normativa.” *

[ * — Robin Williams, American Society: A Sociological Interpretation, 3rd ed., Alfred A. Knopf, New York, 1970, p.26.]

“Valores,” diz ele, “dizem respeito a padrões de conveniência” (que relacionam a estética e a auto-imagem Européias com a ética Européia); “Eles são expressos em termos de bom ou ruim, bonitos ou feios, agradáveis ou desagradáveis, apropriados ou inapropriados.” Normas “são regras de conduta” que “especificam o que deve e o que não deve ser feito.” Os “aspectos normativos da cultura” se combinam para formar um “conjunto de diretrizes pelas quais as pessoas regulam seu próprio comportamento e o de seus colegas.”

[ * — Ibid, p. 27.]

De modo que “valores” e “normas,” como são usados aqui, só podem ser apoiados ou “sancionados” positivamente na cultura de tal maneira que o comportamento que se conforme com eles seja “recompensado” — encontre “sucesso” e “aprovação” — enquanto que o comportamento que os contradiz é “punido” — resulta em “fracasso” e é “reprimido” pelos “colegas” ou simplesmente não é recompensado de forma alguma, ou seja, não é reconhecido como comportamento “valorizado.”

O que Williams chama de “normas institucionais” são precisamente esses aspectos tratados aqui. “Para todo um grupo ou sociedade, provavelmente o melhor índice para uma norma institucional é a ocorrência de severas penalidades por violação.” As normas institucionais são
1.amplamente conhecidas, aceitas e aplicadas;
2. baseadas em fontes reverenciadas;
3. amplamente aplicadas por fortes sanções aplicadas continuamente;
4. internalizadas em personalidades individuais;
5. objetos de conformidade consistente e predominante. *

[ * — Ibid, p.37.]

Um último ponto que eu enfatizaria ao focalizar essa discussão é que Williams está correto quando diz que uma característica do aspecto normativo da cultura: “É inferido a partir da observação do comportamento”. *

[ * — Ibid, p. 28.]

Os termos que mencionei acima são pertinentes e básicos para qualquer discussão etnológica, e não há nada questionável sobre a maneira pela qual Williams aqui os define e os descreve. No entanto, os valores da sociedade Americana, como ele os avalia, não correspondem em grau considerável ao comportamento de seus membros. E, a esse respeito, o trabalho de Williams se encaixa no padrão das descrições Eurocêntricas da sociedade Européia, que se relaciona ao que chamei de “ética retórica” ​​da cultura, e não de “estrutura normativa.” Este capítulo trata da determinação dos valores que, de fato, determinam o comportamento Europeu. Não estou interessado em duplicar a infinidade de descrições sociológicas de várias instituições Européias (Euro-Americanas), mas em enfatizar as crenças, valores e concepções compartilhados que fornecem os fundamentos ideológicos dessas instituições. Não existe outra cultura no mundo que dedique tanta energia à sua própria “análise;” no entanto, é difícil encontrar um trabalho que contribua para a compreensão da natureza subjacente da cultura.

Procuramos demonstrar a relação entre o racionalismo, “objetificação,” e “abstração” Europeus, e  tais concepções Européias como as de “eu” [“self”] ou “ego,” “individualidade” e “liberdade”, que por sua vez ajudam a regular a maneira pela qual os Europeus são tratados e se comportam dentro de sua cultura. Essa abordagem enfatiza o etos do capitalismo, por exemplo, não como um sistema isolado ou determinante, mas como uma declaração consistente ontológica e “eticamente” da “moralidade” dentro da asili/logos do desenvolvimento Europeu. Minha ênfase está, portanto, mais nas implicações ideológicas do comportamento Europeu do que na descrição etnográfica desse comportamento. Como em qualquer etnologia, estamos procurando um padrão e um comportamento característico; como o conceito de cultura implica generalização, nós generalizamos. Não faz sentido etnológico aceitar comportamentos idiossincráticos ou incongruentes como sendo a expressão da “cultura Européia.” Em vez disso, esperamos que essa discussão indique um “tipo de pessoa” que a cultura produziu e provavelmente produzirá; como ele se comporta e como ele acredita que deveria viver. Buscamos a “personalidade coletiva:” o utamaroho. Meu objetivo, então, é o isolamento das idéias que motivam e orientam o comportamento Europeu e o entendimento da relação dessas idéias ou temas com a imagem total.

Podemos discutir as áreas do comportamento intracultural Europeu e do comportamento Europeu em relação a “outros” separadamente. Essa abordagem reflete a crença de que há uma distinção significativa entre esses dois aspectos do comportamento Europeu e que, embora estejam dialeticamente relacionados, as concepções Européias sobre eles geram dois sistemas “éticos” distintos. Isso, novamente, é central, porque a distinção entre “eu” e “outro” e aquela entre o “eu cultural” (o grupo) e os que estão fora da cultura não é em nenhum outro lugar tão significativa quanto é para a expressão da sociedade Européia. utamaroho. A suposição da existência de pessoas que não participam da cultura é essencial para o utamaroho Europeu e desempenha um papel definitivo na determinação das regras de conduta dentro e fora da cultura. Por esse motivo, o Capítulo 8 segue com uma discussão sobre as “regras” e concepções que governam o comportamento dos Europeus em relação às “pessoas de fora” ou ao “outro cultural.”

 

“Individualidade,” “Liberdade,” e “Eu”
[“Individuality,” “Freedom,” and “Self”]

Uma vez que Euro-Americanos e Europeus não são isomórficos, é na cultura Americana contemporânea que o tema dominante do desenvolvimento da Europa Ocidental atinge maior intensificação. O conceito de “individualidade” e “liberdade” e suas interpretações na sociedade Americana contemporânea são um ponto de partida apropriado, porque são tão proeminentes na própria concepção Européia do valor e da superioridade de sua cultura. Em sua mente, eles são rastreáveis ​​às suas origens Indo-Européias. Além disso, esses conceitos são de interesse devido à sua relação com o utamawazo Europeu. Além disso, estamos fundamentalmente lidando com o nacionalismo Europeu e seu efeito sobre os povos “não Europeus” no contexto do imperialismo cultural. A aceitação inquestionável e a tentativa de assimilação do conceito Europeu de “individualidade” e o conceito relacionado de “liberdade individual” continuamente desorientam e enfraquecem as lutas do Primeiro Mundo pela autodeterminação. Sua aceitação não crítica tem atrasado a vitória. Onde esses movimentos foram fortes, sempre houve uma rejeição desse aspecto da ideologia da Europa Ocidental, juntamente com outros aspectos relacionados, e concepções alternativas de “liberdade” e do relacionamento da pessoa com o grupo substituíram o caráter das concepções Européias. Portanto, uma exploração crítica desses conceitos relacionados é útil na comparação de ideologias Européias, Africanas e outras ideologias culturais e também nos aproximará de uma compreensão etnológica do caráter único do comportamento intracultural Europeu. Como esse comportamento se relaciona com a asili? Como ele faz sentido ideológico?

A idéia Euro-Americana de liberdade está intrinsecamente ligada à concepção Ocidental-Européia de “eu” [“self”]. Como Durkheim disse, o valor da personalidade individual é um “culto” da cultura Européia.*

[*— Emile Durkheim, Suicide, The free Press, Giencoe, III., 1951, Ch. 1, Book III.]

Williams diz que a concepção Ocidental de liberdade individual

define um valor elevado no desenvolvimento único de cada personalidade individual e é correspondentemente adverso à invasão da integridade individual; ser pessoa é ser independente, responsável e respeitoso e, assim, ser digno de preocupação e respeito por mérito próprio. Ser uma pessoa, nesse sentido, é ser um agente autônomo e responsável, não apenas uma reflexão de pressões externas, e ter um centro de gravidade interno, um conjunto de padrões e uma convicção de valor pessoal.

O “valor da personalidade individual,” impressionisticamente concebido, representa um aglomerado extremamente complexo de estados ou condições desejáveis mais específicos, como singularidade, autodireção, autonomia de escolha, auto-regulação, independência emocional, espontaneidade, privacidade e respeito por outras pessoas, defesa de si mesmo e muitos outros.” *

[ * — Williams, pp. 495, 497.]

Sua discussão não é muito útil, pois ele não explora o conceito a que se refere como “o valor do indivíduo,” mas ele está certo ao dizer que o conceito vem dos “níveis mais profundos de suas pressuposições inconscientes” e que “o complexo de valores” associado a ele” está incorporado na estrutura afetivo-cognitiva central das personalidades da cultura.” * Com isso, passemos a uma consideração mais profunda das implicações cognitivas e comportamentais relacionadas a esse conceito.

[ * — Williams, pp. 495,497.]

Na tradição Européia, é costume colocar, como Williams coloca, as origens filosóficas do conceito Americano de liberdade individual no pensamento Europeu do século XVII, mas o trabalho de John Locke e outros apenas forneceu uma cristalização verbal e uma apresentação formal de concepções já implícitas nas estruturas cognitivas da cultura Européia; e ainda mais cedo, na asili/semente. Williams fala sobre o eu “autônomo” [“autonomous” self] e, novamente, da “autonomia moral;” mas já vimos isso antes — na discussão de Platão e Eric Havelock sobre concepções epistemológicas Platônicas. (Ver Capítulo 1). O modo Platônico, e sua metodologia baseada na suposição do “eu-pensante” que existe separadamente e distintamente dos objetos que encontra, permitiu que os Europeus construíssem uma ciência racionalista . Também forneceu um hábito cognitivo que abrigaria o conceito e valor Europeu contemporâneo do “individualismo.” De fato, como Havelock argumenta, nos dias de Platão devia haver apenas um número insignificante de pessoas “capazes” (uma indicação da perspectiva de Havelock) de conceber dessa maneira, mas as fileiras engrossaram e cresceram até isso se tornar característica dos “portadores da cultura” e das pessoas “comuns” da cultura. Agora, os Europeus quase “nascem” com um conceito de si mesmos como abrigando uma psique distinta, necessariamente isolada de todos os “outros” e sendo responsáveis ​​apenas por si mesmos. Essa concepção é inculcada em idade muito precoce. O que se seguiu dessa concepção Platônica foi o conceito de ética racionalista que, juntamente com a secularização, forneceu a base para uma concepção individualista (ou equívoca) da felicidade humana. Se todas essas premissas epistemológicas relacionadas eram válidas, então o próprio indivíduo tinha que determinar o que era do seu interesse, ou seja, o que o fazia feliz. O interesse próprio, dessa maneira, torna-se primordial, e “liberdade” é então a capacidade de perseguir esse interesse.

Havelock enfatiza a importância da capacidade de separar o eu e o outro: a falta de identificação com o outro era, na concepção de Platão, o ato racional primário. Essa idéia é reforçada em toda a cultura e assim é que a idéia de “identificação com,” amor por, e simpatia ou compreensão empática pelos outros vai contra o cerne da tradição Européia; está em contradição epistemológica, ideológica, política e espiritual. Uma moral baseada no “altruísmo” é inconcebível no contexto europeu. No Ocidente, o eu é primário, e a sobrevivência depende do cultivo do egocentrismo. É preciso “ser permitido” ser adequadamente egoísta; e é isso que significa ser “livre.”

Em uma série de ensaios, Dorothy Lee explora os conceitos de liberdade e individualidade no Ocidente e levanta a questão do significado desses conceitos, em justaposição com concepções de outras culturas. Como em outras discussões de Lee, elas nos ajudam a ir além do aspecto do valor Europeu que é dado como certo e a ver realmente o que significa na situação de vida real para um Americano dizer que ele tem “uma convicção de valor pessoal,” como Robin Williams faz, ou que na sociedade Americana “liberdade “é um” grande valor.” *

[ * — Ibid, pp. 495, 483.]

A primeira observação importante a ser feita é que esse conceito, como destaca Lee, é peculiar à sociedade Européia. É um conceito raramente presente em outras sociedades. Williams compara “liberdade” com “uma ampla gama de autonomia moral na tomada de decisões” e a contrasta com “simples conformidade de grupo.” Mas uma perspectiva Africano-centrada nos ajuda a reconhecer que (1) o tipo de “liberdade” que Williams descreve pode ser sem sentido ou indesejável para pessoas cujo conceito de valor pessoal e valor humano é radicalmente diferente; e/ou que (2) “liberdade , “como um conceito abstrato, pode não ter valor como objetivo humano ou cultural. Em outras palavras, na América, “liberdade” é uma palavra familiar com a qual as crianças são ensinadas (“Eu posso; é um país livre!”), Mas pode ser que, dentro do contexto de um agrupamento comunitário harmonioso que de fato, protege e nutre o crescimento da pessoa, essa “liberdade” seja apenas a descrição de algo negativo.

Como discutido anteriormente (ver Capítulo 4), essa idéia de “liberdade” que emerge na psique cultural Européia foi transmitida através dos vários estados do desenvolvimento da consciência coletiva Européia. As origens dessa mitoforma — amor pela independência e liberdade [freedom and liberty] — são tradicionalmente traçadas às florestas da Alemanha, onde os Saxões reinavam, supostamente nunca tendo se permitido ser conquistados. O “individualismo feroz” e o “amor à liberdade” dos primeiros Alemães devem ter sido herdados por seus descendentes Europeus, desenvolvidos posteriormente pelos Ingleses que desenvolveram o governo parlamentar com base nesse ethos de “liberdade” e o passaram aos colonos Americanos, que estabeleceram a cidadela suprema da “liberdade” com uma constituição “democrática” que salvaguarda o direito à “liberdade individual;” uma ordem social que valoriza a “individualidade” quase tanto quanto o ganho material. De fato, eles desenvolveram com a maior intensidade um sistema econômico no qual o objetivo de ganho ilimitado está vinculado a esse conceito de independência e liberdade individuais, com o mínimo de interferência do governo (“grupo”): o principal objetivo do governo é garantir a proteção da propriedade privada.

Em um esforço para entender “a idéia de liberdade que é peculiar à sociedade Americana,” Dorothy Lee observou as áreas em que “os Americanos ainda expressavam um senso de liberdade em seu uso linguístico.”*

[ *— Dorothy Lee, Freedom and Culture, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N.J., 1959, p. 53.]

Ela descobriu que “livre” geralmente indicava falta de restrição ou obrigação; isto é, “liberdade de emaranhamento” em relação às relações interpessoais. Ela descobriu que, estranhamente, a idéia de “liberdade” [“freedom”], como em objetos “gratuitos”— tickets, por exemplo, significava que eles eram desejáveis, mas não tinham valor. Economiza-se dinheiro quando algo é “gratuito” nesse sentido, mas, como não custa dinheiro, não é, portanto, valioso [suscetível de avaliação]. Depois, há a idéia de liberdade como em “tempo livre,” [“free time”] onde livre significa “descomprometido.” Mais uma vez, Lee descobriu que esse “tempo livre” não era valioso por si, isto é, só se tornava tal quando era “preenchido” e de acordo com o modo como foi preenchido. De alguma forma, é errado ter muito “tempo livre.” “É preciso dar uma explicação ou justificativa para essa liberdade, de modo a dotar-lhe com uma validade que certamente não é auto-evidente.” A pessoa que “não tem nada a fazer” é suspeita e não tem valor; “por outro lado, ouço pessoas falando com orgulho de tudo o que precisam fazer, quando estão se referindo ao tempo comprometido ou ao que fazem durante seu ‘tempo livre.'” (A ética protestante, é claro, regula o comportamento Europeu dessa maneira para que o “trabalho” seja ativo e positivo, e estar livre do trabalho é de alguma forma imoral.) Lee conclui que “livre,” como em tempo livre, é, portanto, uma condição negativa; “livre” refere-se ao vazio [emptiness] e deve ser “preenchido”:

Nosso tempo livre é tempo de “lazer,” potencialmente passivo e vazio — e sujeito ao tédio, a menos que planejemos com cuidado e o enchamos de atividades. De fato, temos agora várias profissões cuja função é fornecer meios e ajudar as pessoas a preencher o tempo vazio. E um lazer crescente é visto com apreensão por muitos de nossos líderes. *

[ * — Ibid, pp. 54-55.]

Então, o que se torna ainda mais claro como resultado dessa discussão é que não é simplesmente a idéia de “liberdade” (por si) que é valorizada na sociedade Européia contemporânea, mas um tipo muito específico de liberdade associado quase totalmente ao conceito Europeu único de validade e necessidade do indivíduo autônomo. “Liberdade,” como um atributo de espaço ou tempo, não tem nenhum valor enquanto permanecer nesse estado. “O espaço é vazio e deve ser ocupado com a matéria; o tempo é vazio e deve ser preenchido com atividade.” Enquanto que em outras culturas, “espaço e tempo livres têm existência e integridade.” Como prova disso, Lee cita exemplos de outras culturas nas quais “A experiência do silêncio; do espaço entre e dentro é significativo.” Ela fala de tais percepções Japonesas que “persistem apesar da adoção da cultura e da ciência Ocidentais. “Em culturas não Européias,” Lee continua: “O tempo livre, ao ser reconhecido como existência válida, pode e contém valor.” Enquanto que “em nossa própria cultura ele é percebido como o não alocado, o não programado, o nada; e não pode conter valor, pois não contém ser.” Além do fato de não conterem valor, os “espaços vazios” são de fato “desconfortáveis” para o Europeu, e ele “experimenta o silêncio” como embaraçoso ou assustador.

Essa liberdade “negativa,” Lee vê como relacionada ao conceito Europeu de si e como ajudando a definir liberdade ou liberdade positiva como valor. A situação perde importância “com ênfase crescente no indivíduo, no eu [self] como foco.” O indivíduo não está interessado em “o que pode ser feito,” mas em “o que eu posso fazer.” Portanto, a idéia positiva de “liberdade” é “expressa como capacidade na pessoa.” * E aqui é possível ver como os conceitos de “eu” [“self”] e de “liberdade” [“freedom”] se relacionam com o esforço conativo que é a alma da vida Européia e com as ferramentas e definições epistemológicas que determinam a cognição Européia. Todos esses aspectos são consistentes e são ditados pelos aspectos da cultura da Ocidental Européia: eles ajudam a construir o utamawazo Europeu e a expressar o utamaroho.

[ * — Ibid, pp. 55-57.]

O conceito de liberdade que Lee descreve aqui em suas implicações “positivas,” isto é, como valor, tem a ver com a “capacidade” (ausência de forças restritivas) para fazer. Essa “liberdade” é o pré-requisito existencial para o poder individual, e esta é a sua importância para o entendimento da mente e do comportamento cultural Europeus. “Poder,” como um conceito Europeu, é a capacidade de controlar e manipular; controle do eu [self] — para controlar e manipular objetos externos ao eu. É preciso ser um “agente livre” — livre no interesse de si mesmo. Isso também implica “liberdade” de considerações éticas ou morais. Este conceito de poder é sinônimo do utamaroho Europeu; é a força motivadora mais básica da cultura, tocando todos os aspectos da crença e do comportamento. Nas sociedades Européias, isto é, entre os povos Europeus, o indivíduo é a sede de seu poder, assim como ele é a sede da “liberdade” que torna isso possível. Ele é livre para “girar e negociar” [“wheel and deal”]; isto é, manobrar, operar, adquirir, alcançar (etc.) para si próprio. Interculturalmente, toda a cultura se une habilmente no esforço do grupo para garantir seu poder sobre outras culturas.

É esse mesmo poder que é alcançado através da ilusão de objetificação. Como discutido no capítulo 1, era apenas através da separação entre o eu e o objeto de conhecimento que, conforme definido pelo modo Platônico, alguém poderia “conhecer.” “Conhecimento”, então, é o próprio poder de controle. As descrições de Havelock do Grego “Homérico” ou “pré-Platônico” eram todas em termos da falta ou ausência de poder e controle. “Identificação com” indica “passividade” e “manipulação por”— uma falta de vontade porque o eu não está separado do outro. O homem Homérico não era um “agente livre;” ele não tinha poder (conhecimento). É essa necessidade extremamente importante de distinguir o eu do outro (cognitiva, emocional e politicamente) e sua relação com a busca pelo poder do qual o utamaroho Europeu depende, que direciona o nacionalismo cultural Europeu (cuja principal manifestação comportamental é Imperialismo Europeu.) A dinâmica dessa ideologia está ligada à separação do eu, à definição relacionada de ego como um isolado, e ao desejo resultante de controlar aquilo que resta (estranho) quando o ego é abstraído. Nesse quadro de referência, ser “diferente de” é ser “contrário a;” e assim todo “outro” é um inimigo em potencial e deve ser controlado (tornado impotente). (Em termos de formulações ontológicas Africanas, por outro lado, a “pessoa” tem seu próprio “poder” ou “força” em virtude de ser uma parte do todo cosmológico.)

Dorothy Lee coloca desta forma: “A definição de eu em nossas próprias culturas repousa em nossas leis de contradição. O eu não pode ser eu e não eu, eu e outro; o eu exclui o outro.” *

[ *— Ibid, p. 131.]

Norman Brown faz uma observação semelhante quando diz que Freud foi “enganado por seu próprio viés metafísico em direção ao dualismo” * e que “se pode ver o pensamento de Freud inibido por uma concepção de eu e outro como alternativas mutuamente exclusivas.”*1

[ * — Norman O. Brown, Life Against Death, Wesleyan University Press, Middletown, Conn., 1959, p. 53.]
[*— Ibid, p. 50.]

Nesse sentido, o pensamento de Freud está simplesmente manifestando características do utamawazo Europeu, um utamawazo sitiado por dicotomias irreconciliáveis como “sujeito/objeto,” “eu/outro,” que se tornam os termos das distinções de valor Européias como “conhecimento/opinião,” “razão/emoção,” etc.

Paul Goodman descreveu essa tendência em relação à teoria psicanalítica Européia como “dicotomias neuróticas . . . algumas das quais são preconceitos da própria psicoterapia.”*

[ * — Paul Goodman, “Polarities and Wholeness: A Gestalt Critique of ‘Mind,’ ‘Body,’ and ‘External World,'” em Sources, Theodore Roszak (ed.). Colophon, New York, 1972, p. 139.]

Goodman discute a natureza de algumas dessas “cisões” que assolam o pensamento Europeu:

“Corpo” e Mente”: essa divisão ainda é popularmente atual, embora entre os melhores médicos a unidade psicossomática seja aceita como certa. Mostraremos que é o exercício de uma deliberação habitual e, finalmente, inconsciente diante de emergências crônicas, especialmente a ameaça ao funcionamento orgânico, que tornou essa divisão incapacitante inevitável e quase indêmica, resultando na falta de alegria e falta de graça da cultura.

          “Eu” e “Mundo Externo”: essa divisão é um artigo de fé uniformemente em toda a ciência Ocidental moderna. Acompanha a divisão anterior, mas talvez com mais ênfase sobre ameaças de natureza política e interpessoal. Infelizmente, aqueles que na história da filosofia recente demonstraram o absurdo dessa divisão foram em sua maior parte infectados por um tipo de mentalismo ou materialismo.

“Emocional” (subjetivo) e “Real” (objetivo): essa divisão é novamente um artigo científico geral de fé, envolvido com o precedente. É o resultado da evitação de contato e envolvimento e do isolamento deliberado das funções sensoriais e motoras umas das outras. (A história recente da sociologia estatística é um estudo sobre essas evasões elevado a uma fina arte.) Vamos tentar mostrar que o real é intrinsecamente um envolvimento ou “engajamento.” *

[ * — Ibid, p. 140.]

A razão de ser para essas “cisões” pode ser encontrada no objetivo básico do comportamento Europeu. A idéia de separação é necessária para a sensação de controle, isto é, de poder Europeu. Este deve ser experimentado como “controle de” e “controle sobre.” Uma parte controla a outra; “Eu controlo você.” Onde entidades são fundidas ou concebidas como unidade, não pode haver nenhuma questão de “controle sobre” ou de “poder” no sentido Europeu.

Essa concepção do eu [self] e a ontologia que a gera não esgotam as possibilidades de significado humano ou de modelos conceituais. Lee diz que é possível ter um sistema que não seja baseado em uma lei de contradição. Entre os Wintu, ela diz: “O indivíduo é particularizado transitoriamente, mas não é colocado em oposição.” *

[ * — Lee, p. 132.]

Lee antecede seus comentários sobre a concepção Wintu de eu [self], dizendo que essa concepção provavelmente não existe mais. Mas é possível encontrar exemplos de culturas que permanecem sistemas dinâmicos de sobrevivência, e é necessário, para uma crítica viável da cultura Européia, que não fiquemos presos a uma comparação contínua das formas Européias com aquelas que ela destruiu (ou tornou obsoletas); muitas vezes essas comparações incentivam a impressão da inevitabilidade da Europeização do mundo — não importa quão negativamente alguém possa alegar ver esse processo.

Vernon Dixon nos diz que o objetivo Africano é “o uso de forças na natureza para restaurar uma relação mais harmoniosa entre o homem e o universo.” * Os seres humanos e o mundo fenomenal são interdependentes. “O mundo fenomenal se torna personalizado”.*1

[ * — Vernon Dixon, “World Views and Research Methodology,” em African Phylosophy: Assumptions and Paradigms for Research on Black Persons, Lewis King, Vernon Dixon, and Wade Nobles (eds.), Fanon Center Publications, Los Angeles, 1976, p. 63.]
[ *1 — Ibid, p. 62.]

Na comparação de Dixon das visões de mundo Africana e Européia, ele discute os respectivos conceitos de eu [self] que emergem dessas duas filosofias. Na visão Européia, ele diz, o eu está em um estado de batalha perpétua com “um sistema externo e impessoal.” O eu luta até mesmo com a natureza, já que “a natureza não tem o seu interesse dele (do ego).” Dixon explica que essa concepção resulta em uma separação do eu Europeu de si próprio baseada na suposição ou percepção de duas realidades distintas: o “ser pensante” e o ser que experimenta (“homem fenomenal”). “O indivíduo se torna o centro do espaço social. Não existe uma concepção do grupo como um todo, exceto como uma coleção de indivíduos. Nós somos porque eu sou; e uma vez que eu sou, logo nós somos.” * Ou, mais importantemente,” “Eu sou, logo existo” [“I am, therefore it is”].

[ * — Ibid, p. 58.]

De acordo com a descrição de Carlton Molette do drama ritual Africano-Americano, o seu “sucesso” cultural repousa na capacidade dos participantes de compartilharem o eu espiritual [spiritual selves] — por assim dizer, — assim como no ritual Africano.*

[ * — Carlton W. Molette III, “Afro-American Ritual Drama,” em Black World, Vol. XXII, No. 6, April, 1973.]

O Haiku descrito por Suzuki depende de uma compreensão e identificação que transcendem a definição e limitação do eu na Europa Ocidental; uma limitação que raramente é superada. Existem muitos exemplos dessas experiências artísticas das culturas majoritárias. Como nossa discussão sobre a estética Européia revelou, a arte Européia sofre com esse conceito do eu como isolado e em relação antagônica ao outro.

Lee continua com sua explicação sobre o conceito Europeu de eu [self]:

Em nossa própria cultura, somos claros quanto aos limites do eu. Em nossa visão não-reflexiva comumente aceita, o eu é uma unidade distinta, algo que podemos nomear e definir. Sabemos o que é o eu e o que não é o eu; e a distinção entre os dois é sempre a mesma . . . . Nosso próprio uso lingüístico ao longo dos anos revela uma concepção de um eu cada vez mais assertivo, ativo e até agressivo; bem como de um eu cada vez mais delimitado. *

[ * — Lee, p. 132.]

Essa justaposição se estende até às caracterizações de “apegos” românticos interpessoais em que se espera que a identificação seja primordial. Lee diz:

Não apenas nos consideramos atores aqui, mas também expressamos essa “atividade” como dirigida a uma ordem distinta. Quando digo: eu gosto dele, lanço minha afirmação no molde afetado sujeito-a-objeto [subject-to-object-affected mold]; eu deduzo que fiz algo a ele. Na verdade, ele pode ser totalmente ignorante do meu gosto e não afetado; somente eu sou certamente e diretamente afetado por ele [gosto].*

[ * — Lee, p. 133.]

Somos repetidamente trazidos de volta para a “revolução” que Platão trabalhou tão diligentemente para promover. No entanto, como Eric Havelock argumenta, em sua época, sua luta era “uma difícil subida” [“up hill”] e muito em oposição ao modo epistemológico tradicional, os sucessores de Platão foram extremamente bem-sucedidos em moldar o conceito Ocidental de eu que pressupunha seu isolamento como pré-requisito para objetificação. Nesta análise, seu sucesso é explicável pela relação íntima de suas idéias com os princípios ideológicos já presentes na asili germinante da cultura. Segundo Lee,

Ao longo dos anos, a língua Inglesa seguiu uma tendência analítica e isoladora e é possível que, em referência linguística, tenha havido uma crescente separação entre o eu e a situação abrangente. *

[ * — Lee, p. 133.]

O que também é revelado na linguagem do Europeu é que a “liberdade” do eu para controlar implica “liberdade” para possuir o que não é o eu. Lee continua,

Nossa linguagem implica não apenas que o eu seja estritamente delimitado, mas que também esteja no controle. Meu [My] é o pronome que chamamos possessivo; cuja característica distintiva, nos dizem, é a de posse ou propriedade; e posse em nossa cultura significa controle: meu, para fazer o que eu quiser. E Meu é uma palavra usada com frequência. *

[ * — Lee, p. 133.]

Na arena internacional, como vimos, o ego cultural Europeu se expressa na necessidade de possuir tudo, e a luta reversa contra a dominação Ocidental é aquela de outros povos e culturas majoritárias apenas para “possuir” e “definir” a si mesmos. O uso Europeu Europeu/Americano da primeira pessoa possessiva é de fato um ponto significativo em uma análise da cultura. Quando se observa crianças na sociedade européia, as palavras “meu” e “minha” [“my” and “mine“] parecem ser ditas mais cedo e com mais frequência em suas interações umas com as outras. O “nosso“[“our” and “ours“], que é significativo nas sociedades comunais, também significa posse. Mas Lee está correto, a diferença está na relação com a idéia e a experiência do controle. O “nosso” comum afasta o lócus de controle do “indivíduo” (a “pessoa” deve consultar outras pessoas que compartilham posse). Ao mesmo tempo, força a responsabilidade da pessoa a organizar a comunidade, a fim de obter controle (influência) que só pode ser exercido através da participação comunitária. Esse tipo de controle não é suficiente para satisfazer as necessidades do utamaroho Europeu, que é moldado por uma asili que exige poder para sua integridade.

Lee nos lembra a divisão do eu Europeu que torna possível a sensação de uma “razão” controladora e ativa, em vez da percepção de uma “emoção” controlada e passiva. Seus comentários demonstram ainda mais a relação entre o conceito de humano gerado pelo utamawazo Europeu e o conceito de eu mantido pelos participantes comuns da cultura: um é autoconsciente e especulativo; o outro é assumido. Mas ambos fazem parte do mesmo todo. Lee diz:

Quando se trata de aspectos não físicos, notamos um reflexo do dualismo da mente, da matéria e da hierarquia que é um corolário disso. As “paixões” são consideradas inferiores: eu caio apaixonado [fall in love], eu sucumbo a uma paixão ou a um ódio [fall into a passion or a rage ]. Eu mergulho no meu inconsciente, que está implicitamente embaixo: mas analiso o meu consciente, onde não preciso escavar, pois está no meu nível. Eu perco e recupero minha consciência ou minha razão; Eu nunca caio na consciência ou na razão. Nem eu controlo minha vontade; Eu exercito-a. O eu quase se identifica com a consciência — domínio e controle da palavra. Então aqui também encontramos a implicação de que o eu está no controle do outro. *

[ * — Ibid, p. 134.]

Lee faz algumas observações adicionais sobre a relação do eu com aquilo que ele experimenta (a separação de Dixon entre “homem e homem fenomenal”). * Aqui, novamente, vemos a tirania da lógica e da epistemologia Aristotélicas sobre a mente Européia e o efeito consistentemente limitador de seu absolutismo nas possibilidades conceituais.

[ * — Ibid, p. 63.]

A análise lingüística nos mostra ainda uma relação diferente entre o eu e a realidade em geral a partir daquilo que é básico para nossa própria cultura. Os Wintu nunca afirmam a verdade como absoluta, como fazemos quando dizemos: isso é [it is]. *

[ * — Ibid, pp. 137-138.]

De acordo com Lee, os Wintu dizem: “Eu-acho-que-isso-é-pão” [“I-think-it-to-be-bread”] ou algo com implicações semelhantes, em vez de dizer “isso é pão.”

A afirmação é feita sobre o outro, o pão, mas com a implicação de que sua validade é limitada pela experiência especificada do orador . . . . Para nós, aquilo que sentimos ou sabemos de acordo com as regras da lógica criadas pelo homem é; e aquilo que está além da minha apreensão, além do meu senso ou cognição, é ficção, isto é, não é. O eu é a medida de todas as coisas . . . . A arte, a metafísica e a experiência religiosa mal são toleradas à margem da nossa cultura . . . Misticismo é definido negativamente como perda de si [self]; e ninguém em êxtase é levado a sério, até que ele volte a si. Somente quando o eu está logicamente e cognitivamente no controle, a experiência é válida, e, exceto nas artes e na religião, somente aquilo que está fundamentalmente aberto a essa experiência é verdadeiro.*

[ * — Ibid, pp. 137-138.]

O que é tolerado é a tentativa de moldar a arte, metafísica e religião na forma do “logicamente” controlado, roubando assim esses aspectos da cultura de seu valor.

O universo para a minoria Européia está centrado no eu [self]. Isso é radicalmente diferente dos sistemas ontológicos da maioria mundial. É de se admirar, então, que o correspondente conceito Europeu de liberdade seja alojado no eu individual e isolado também? Isso implica, para os Europeus, que o indivíduo tem um valor particular na cultura. Mas quando a cultura é examinada, fica claro que na busca pelo eu tão importante, muito é sacrificado. Os Europeus estão acostumados a ver outras culturas a partir das alturas da comparação individual à sua, nas quais as culturas Africanas clássicas e outras culturas majoritárias representam as profundezas da restrição e da falta de respeito pela “individualidade.” No entanto, as prioridades da ideologia Européia resultam em uma espécie de supressão do espírito humano desconhecida em outros lugares.

Entre os Hopi, Lee descobriu que “todo indivíduo, jovem e velho, é incumbido com responsabilidade pelo bem-estar da unidade social.”*

[ * — Ibid, p. 20.]

Isso apóia Diamond, que diz que na sociedade tradicional o indivíduo médio participa em maior extensão do que o indivíduo comum na sociedade Européia. O resultado disso é que a pessoa tem um significado que lhe falta na cultura Européia. Sua importância é qualitativamente diferente. Não existe simplesmente um compromisso verbal de “valorizar o indivíduo.” Ela significa mais para o grupo; seu valor é conteúdo dado [given content]. *

[ * — Ver Stanley Diamond, in Search of the Primitive, Transactions Books, New Brunswick, N.J., 1974, pp. 68, 172.]

Mais uma vez, o que acontece é que a asili da cultura exige a criação de realidades conceituais e fenomenais (experienciais) que funcionarão para manter sua integridade e consistência. Como o fundamento ou a semente germinativa da cultura põe em movimento uma força insaciável de poder, devem ser criadas concepções e definições que facilitem a vontade de poder [will-to-power]. O poder passa a ser definido/experimentado como controle sobre os outros. Isso, por sua vez, exige a divisão entre o eu e o outro, como vimos. O que resulta é o conceito de indivíduo (“não divisível”); a menor unidade do grupo social. Esse átomo do universo humano é inventado pelos Europeus como sede da racionalidade, sede da ação moral, locus do poder (já que o poder deve ser uma experiência intensamente narcisista). É de admirar que a cooperação entre essas entidades seja problemática? Claramente, o conceito de “indivíduo” é exclusivamente Europeu, assim como a ideologia resultante do individualismo e o sistema econômico do capitalismo que o acompanha. Um “indivíduo” nunca pode realmente experimentar a realidade fenomenal como uma extensão do eu, apenas como uma negação do eu. O que é socialmente problemático é uma impossibilidade comunitária. Não há contrapartida do “indivíduo” Europeu na civilização Africana. É simplesmente impraticável; não serve à asili da cultura Africana e, portanto, não existe (exceto como destrutivo/”mau”). O conceito de “pessoa” no pensamento Africano se estende para abranger todo o universo. Mas então o objetivo não é controle ou poder pessoal. O objetivo social é a experiência de “nós” [“we”]. A limitação Africana é a dificuldade em definir os “eles” políticos. A vantagem política Européia é que toda experiência é definida politicamente, com base na identificação do “outro” ameaçador. Essa intensa politização começa com a xenofobia “Indo-Européia” ou Européia arcaica, talvez funcionando para compensar seu status de minoria no mundo.

A cultura Européia cria um ser que prospera na competição e, portanto, em realizações individuais e distintas. Porque não existe uma consideração natural pelo valor pessoal originada e apoiada pela cultura — porque a existência de uma pessoa como membro do grupo não significa em si mesma muito — o indivíduo se esforça para ser “melhor que,” para se destacar dos outros em seu desejo de reconhecimento. Isso serve para reforçar sua consciência separada e diminuir ainda mais sua capacidade de se identificar com os outros. Ele, muito menos, pode definir seu bem ou seus objetivos em termos de harmonia universal. Deveria ficar ainda mais claro agora que não há mecanismo de apoio ou precedente para uma ética “altruísta” ou espírito de “fraternidade universal.” A única coisa que os une a um todo cultural unificado — são os objetivos comuns da supressão, exploração e controle do resto do mundo; o meio ambiente, a terra e seu povo; aquilo que é diferente do eu cultural. É uma união de pessoas afins, que cooperaram na criação de um gigante tecnológico — ou monstro.

Na descrição de Lee dos Hopi, vemos a possibilidade de uma definição alternativa de comportamento normativo:

Não é apenas o ato físico, ou comportamento manifesto, que é eficaz de acordo com a visão Hopi. Pensamento, vontade e intenção são no mínimo tão eficazes quanto; de modo que não basta o indivíduo agir pacificamente; ele também deve se sentir não agressivo, ter pensamentos harmoniosos e ser imbuído de uma singularidade de propósito. É seu dever ser feliz, pelo bem do grupo, e a mente em conflito e cheia de ansiedade traz perturbações, mal-estar à unidade social e, em um momento de oração e cerimônia, ao universo.*

[ * — Lee, pp. 20-21.]

A sociedade Européia é, por outro lado, caracteristicamente composta por indivíduos ansiosos, agressivos e sempre potencialmente conflitantes. As unidades dentro dela são mantidas juntas pelos mecanismos da “racionalidade” definida por Weber (organização eficiente); mecanismos que controlam as competições e melhoram os conflitos apenas pela delimitação do indivíduo. A concepção Européia de ser tende a eliminar a necessidade de considerar os pensamentos e os estados espirituais das pessoas, pois nessa dimensão elas são consideradas “impotentes.” Faz parte da mitologia que o Europeu seja motivado por fortes convicções “internas” e um alto grau de respeito próprio (Williams); enquanto as pessoas nas culturas tradicionais são mais como “autômatos não pensantes,” cujos espíritos são governados por suas culturas. Mas muitas vezes é nas culturas majoritárias que encontramos padrões impressionantemente fortes de comportamento e comprometimento pessoal com o comportamento ético. A identificação com o bem-estar do grupo não deve ser confundida com falta de convicção pessoal ou incapacidade de tomar uma decisão ética. Essas são todas as caracterizações implícitas na afirmação anterior de Williams do “valor da individualidade” Euro-Americana. São os mesmos termos da caracterização de Havelock do Grego “pré-Platônico.”

Na visão de mundo Africana, a dicotomia Européia de oposição entre o “indivíduo” e o grupo entra em colapso e, em vez disso, a pessoa e a comunidade são definidas em termos um do outro. Eles são seres interdependentes, que se fundem e que juntos formam a realidade significativa. A pessoa não é nada (espiritualmente morta) fora do contexto da comunidade por causa da necessidade emocional, espiritual e física de interação com outros seres humanos: Isso é necessário para a realização da humanidade [humanness]. A comunidade é criada pela comunhão espiritual ou união de pessoas. Seu bom funcionamento e perpetuação depende de pessoas saudáveis, íntegras, comprometidas e felizes. É por isso que os rituais de cura têm um aspecto comunitário e por que o mal moral é representado por uma pessoa que tenta funcionar autonomamente (o “indivíduo”), causando danos aos outros e criando desconfiança (o feiticeiro). O poder desse pensamento anticomunitário deve ser neutralizado para que a comunidade possa manter seus membros (pessoas) saudáveis. Assim, a visão de mundo Africana leva a um conceito muito diferente de felicidade pessoal. Assim como o objetivo do cerimonial Hopi “é o bem-estar do todo universal.” *

[ * — Ibid, p. 22.]

Torna-se cada vez mais imperativo entendermos todas as implicações da existência de uma cultura minoritária em nosso meio; uma cultura que não tem nenhum reflexo formal ou institucional da ordem universal, especialmente porque essa cultura é por natureza expansionista. Esta é uma cultura baseada na crença de que a única realidade é aquela que os seres humanos criam através da manipulação da matéria. É baseada em uma série de atos destrutivos que desordenam e esgotam, mas não harmonizam ou reabastecem. Pode ter levado séculos para chegar ao ponto de colapso óbvio que os trabalhos da cultura Européia agora exibem, mas as sementes de destruição estavam sempre presentes na asili que gerou uma ontologia inicial que tentou eliminar o espiritual da consciência humana. Uma vez que o Europeu acredite que o indivíduo autônomo possa ser a base de sua própria felicidade, ou que a “psique individual,” como Havelock coloca, seja a sede da convicção moral e que o racionalismo possa ser uma fonte de moralidade, assim então sua cultura continua em direção à desintegração moral e seu espírito continua a murchar. O processo começou há muito tempo, mas o pior ainda está por vir. É precisamente o “indivíduo autônomo” na sociedade Ocidental Européia que é sua fraqueza. Não há mais diretrizes para ele seguir, e ele não tem tradição em sua consciência histórica a partir da qual criá-las.

O que acontece no Ocidente contemporâneo é que o indivíduo se sente oprimido pelas instituições que o cercam e impotente para afetar o todo (o grupo, a entidade social). * À medida que envelhece, ele começa a sentir cada vez mais que ele é intercambiável e perde um senso de seu próprio valor.

[ * — Para uma visão contrastante do indivíduo, consulte Lee, pp. 23-25.]

Esse é o destino da grande maioria que não consegue reconhecimento além da multidão por extrema competitividade, agressão e egoísmo. Joel Kovel diz:

O que pensamos ser um aumento em nosso poder e liberdade individuais concedidos pelo progresso moderno, é na realidade um processo muito mais ambíguo e complexo. Em grande parte, as pessoas foram libertadas entregando sua autonomia à cultura, pela qual são recompensadas com recompensas materiais e com a liberdade do trabalho manual. São benefícios substanciais, mas, para a massa de homens, são obtidos a um custo enorme. Pois, junto com a diminuição da autonomia própria, ocorre o crescimento complementar da cultura e de suas máquinas mágicas. À medida que o eu [self] se torna desdiferenciado, a sociedade assume o processo da história, tornando-se mais articulada e mais controlada . . . . Estamos falando, é claro, desse fenômeno moderno único, o totalitarismo, que já vimos neste século em formas particularmente horríveis, e talvez prematuras, mas que parece vir a existência simplesmente pelo desdobramento natural do logos da civilização Ocidental. *

[ * — Joel Kovel, White Racism, Vintage, new York, 1971, pp. 160-161.]

Esta última frase sugere o conceito de asili, que se concentra nas tendências ideológicas inerentes. paradoxalmente, como Kovel identifica com precisão o padrão de controle institucional e estatal sempre crescente no desenvolvimento Europeu, ele parece não reconhecer a idéia de ” autonomia própria” [“self-autonomy”], cuja perda ele lamenta como culpado. Ele parece ter confundido “autonomia própria” com “integridade pessoal.” Elas não são sinônimas, pois “autonomia própria” é o inverso de comunidade. Na ordem estatal opressiva e repressiva que a asili Européia gera, o eu realmente se torna mais separado espiritualmente, resultando assim em uma coleção de eus alienados. É a união espiritual que cria “comunidade,” e é a comunidade, não a autonomia, que tem o poder de derrotar a ordem totalitária.

Para Lee, “o respeito pela integridade individual, pelo que chamamos de dignidade humana, tem sido um princípio na cultura Americana.” * Mas o que isso significa? E Williams, em sua descrição sociológica da sociedade Americana, não levanta a questão do que realmente acontece ao indivíduo nessa sociedade, mas parece meramente aceitar o “dogma.” Podemos, no entanto, fornecer uma base a partir da qual essas perguntas possam ser feitas e uma base para uma compreensão mais profunda do significado cultural desse suposto valor Europeu, bem como da estrutura cognitiva subjacente a ele.

[ * — Lee, p. 5.]

A discussão de Stanley Diamond em The Search for the Primitive ajuda, oferecendo outra visão do que acontece com o indivíduo na sociedade Européia. Redfield, diz ele, descreveu o “individualismo ideológico” como um reflexo da “individualização,” que “denota a separação cada vez mais mecânica das pessoas umas das outras, como resultado da substituição dos laços orgânicos primitivos por conexões civis e coletivas.” Diamond aborda uma das enfermidades mais reveladoras da sociedade Euro-Americana contemporânea; o que ele chama de “solidão patológica” do indivíduo. Essa solidão é sintomática do fracasso espiritual da cultura, resultado de uma ontologia que concebe o eu como autônomo. Essa ontologia leva a um “isolamento pessoal” severo. Diamond diz que a ordem técnica Ocidental tende a produzir “padrões” e “tipos” modais “ao invés de variedades naturais de pessoas,” apesar (ou talvez por causa) da “ideologia do individualismo.” “O indivíduo está sempre em risco de se dissolver na função ou no status.” *

[ * — Diamond, p. 160.]

Ele continua,

Em nome do individualismo, a civilização fabrica estereótipos. . . essa estereotipagem tipicamente leva a uma estupidez culturalmente formada, uma estupidez do próprio trabalho, que cresce para abranger a pessoa, alimentando-se como uma defesa contra a experiência e como o resultado de ser privado.*

[ * — Ibid, p. 166.]

No entanto, a crença de que a sociedade Européia produz e é protetora de alguma liberdade especial que é a força vital do indivíduo é muito profunda na psique Americana. Na graduação, nos cursos introdutórios de antropologia, as descrições do instrutor sobre as culturas majoritárias são invariavelmente recebidas com a exclamação: “Mas eles não têm absolutamente nenhuma liberdade individual. Deve ser horrível.” E, no entanto, Jomo Kenyatta pode dizer: “O Africano está condicionado pelas instituições culturais e sociais de séculos, a uma liberdade da qual a Europa tem pouca concepção . . . “*

[ * — Citado em Diamond, p. 166.]

Ao contrário da ideologia, a consciência de grupo e o significado pessoal não são contraditórios. Como Diamond observa

Qualquer pessoa que já tenha testemunhado uma dança cerimonial Africana certamente concordará que o senso de poder e valor pessoal do indivíduo é incomensuravelmente aumentado pela natureza comunitária do evento.*

[ * — Ibid, p. 167.]

Ele faz a distinção crítica entre a idéia de “comunidade” e a de “coletividade.” E esta é importante para a compreensão do fracasso da cultura Européia em termos do que ela não oferece a seus membros. “Comunidade,” diz ele, não pode mais ser encontrada na sociedade Ocidental moderna, que é, em vez disso, baseada em “coletivos” que são “funcionais para fins especializados, e eles geram uma sensação de serem impostos de fora. Eles são objetivamente percebidos, objetificando e separando estruturas.” A multidão, segundo Diamond, é o inverso do “grupo orgânico;” é uma “coletividade de indivíduos avulsos” [“collectivity of detached individuals]. * “A imagem da multidão faz parte da nossa imagem da cidade.” A própria palavra “comunidade” implica a idéia de uma base espiritual para se juntar a outras pessoas; como em “comunhão.”

[ * — Ibid, p. 167.]

É interessante observar aqui as duas conotações do termo Europeu “selva” [“jungle”], relacionadas apenas pela lógica do chauvinismo Europeu. Uma delas é a de uma área de terra densa de vegetação que não foi habitada ou cultivada. A outra é a de um grupo de “indivíduos avulsos,” cada um disposto a cometer qualquer quantidade de violência a outro para garantir sua própria sobrevivência. Essa imagem carrega consigo o medo generalizado que vem com a perda completa da ordem comunitária e, portanto, moral; quando se está continuamente consciente da possibilidade de ser atacado de qualquer lugar a qualquer momento. A imagem é a da cidade Euro-Americana. A verdadeira “selva,” nesta segunda conotação, são as “Nova Iorques.” : As estruturas de concreto que são verdadeiramente opostas à primeira definição de “selva.” É aí que prevalece essa extrema deterioração, em oposição às áreas menos afetadas pela cultura Européia. Os Europeus finalmente fizeram de sua própria invenção conceitual — a completa falta de ordem moral — uma realidade. E este é o resultado final da “ideologia do individualismo.”

Resta-nos ver que tipo de ética intracultural apóia e, por sua vez, é gerada por esse conceito isolador do eu.

 

A “Ética Protestante” e o Comportamento Europeu
A maioria dos historiadores sociais concordaria que o Protestantismo era a religião do comerciante que emergiu da sociedade feudalista medieval. Weber descreve o que chama de portadores da cultura Ocidental do século XVI ao relacionar a “ética Protestante” ao “espírito do Capitalismo,” em sua tentativa de demonstrar

a influência de certas idéias religiosas no desenvolvimento de um espírito econômico ou no ethos de um sistema econômico. Nesse caso, estamos lidando com a conexão do espírito da vida econômica moderna com a ética racional do Protestantismo ascético.*

[ * — Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trans. Talcott Parsons, Charles Scribner’s Sons, New York, 1958, p. 27.]

Mas Lewis Mumford faz exceção à concorrência esmagadora com as conclusões de Weber. Em The Condition of Man, ele diz:

A tese de Max Weber, de que o Protestantismo teve um papel primordial na concepção e desenvolvimento do Capitalismo, tornou-se corrente durante a última geração. Em vista dos fatos patenteáveis da história, essa crença é tão estranha quanto indefensável: pois supõe que o Capitalismo moderno não se formou até o século XVI; ao passo que existia como uma mutação pelo menos três séculos antes e no século XIV permeou a Itália: um país onde o Protestantismo nunca foi capaz de se apossar.

O Capitalismo foi, de fato, a grande heresia da Idade Média: o principal desafio às reivindicações ideais do Cristianismo . . . . Não há duvidas  . . . . que o capitalismo teológico apareceu muito antes de qualquer doutrina protestante na religião ou na economia.*

[ * — Lewis Mumford, The condition of Man, Harcourt Brace, new York, 1944.]

Mumford se fixa na questão de saber se o Protestantismo era ou não anterior ao capitalismo e na relação inicial das duas ideologias, que, na sua opinião, erma antagônicas. * Mumford provavelmente está certo, as sementes do capitalismo não esperaram o solo do Protestantismo para serem plantadas.

[ * — Ibid, p. 183.]

Mas claramente a força da observação de Weber está correta. O próprio Protestantismo obviamente tinha que ter suas “origens” na Igreja, mas esse fato histórico não torna as diferenças entre (o papel de) suas doutrinas e as da Igreja Apostólica menos reais. Etnologicamente, o fato incontestável é que, não importa o quanto antes do século XVI as sementes do capitalismo e do Protestantismo tenham sido semeadas, nem que forma elas possam ter assumido nesses estágios iniciais, em última análise, seu desenvolvimento convergiu para reforçar um ao outro e formar um sistema cultural e ideologicamente congruente que deveria fortalecer as tendências do desenvolvimento Ocidental Europeu. Ambos coexistem na asili Européia. O capitalismo não poderia ter sobrevivido sem uma declaração ética de apoio dentro da cultura; uma declaração que sancionava o comportamento intracultural que ele ditava. O Protestantismo, e não a então-chamada “ética Cristã” (retórica), forneceu essa sanção. O próprio Mumford vê correlações definitivas.

Economia, previsão, parcimônia, ordem, pontualidade, perseverança, sacrifício: a partir dessas virtudes Protestantes, um novo tipo de economia foi criado e, dentro deste, um novo tipo de personalidade passou a funcionar. Em uma extremidade do capitalismo clássico, está Jacob Fugger II: na outra, John D. Rockefeller I. *
[ * — Ibid, p. 199.]

O Protestante procurou refrear o espírito capitalista e, no final, aprofundou seus canais: desafiou o domínio político do déspota e introduziu nos negócios o ego cruel que até então dominava apenas a maquinaria do Estado.*
[ * — Ibid, p. 201.]

A avaliação de Joel Kovel sobre o significado da teoria de Weber parece ser mais direta:

Na verdade, ele estava procurando um exemplo da organicidade da cultura — como, nesse caso, o “espírito,” isto é, a psicologia da atividade capitalista, foi decisivamente influenciado pelo novo estilo de atividade religiosa concebido por Calvino e por Lutero antes dele. A religião tem sido, até os últimos tempos, a fonte de nossa visão cultural do mundo. Uma visão de mundo deve ser apresentada como um conjunto de controles normativos, que, por sua vez, devem ser equilibrados com as estruturas superego dos indivíduos dentro da cultura. Assim, a mudança decisiva no desenvolvimento do espírito foi a concessão pelo Protestantismo de uma consciência interior severa para direcionar racionalmente a atividade produtiva.

E Kovel credita Weber por ter apresentado a “descrição definitiva” da “nova classe cuja atividade racionalizada transformou o globo”.*

[ * — Kovel, pp. 150-151.]

Nossa tarefa aqui não é recapitular as observações de Weber nem a infinidade de teorias relacionadas que surgiram como resultado desse trabalho, mas apontar para uma nova dinâmica que o Protestantismo e a Reforma trouxeram à cultura Européia. Eu denominei os valores tradicionalmente associados à ética Cristã primitiva como “retóricos” em função, ​​porque eles não se refletem caracteristicamente no comportamento Europeu. A ética retórica é principalmente para fins de exportação. Internamente, serve ao propósito de recuperar a consciência para aqueles que precisam, mas é direcionada para o exterior (em grande parte); em direção ao “outro cultural.” Para ser entendida adequadamente, deve estar sob o título de relações “públicas” ou “relações internacionais” e pertencer à arena da política internacional. As funções da Igreja primitiva a esse respeito deixaram a cultura sem um conjunto de controles normativos, pois, ao contrário do que Kovel diz, a religião não era a fonte da cosmovisão Européia, mas uma declaração sistemática da ideologia Européia. Antes da declaração Protestante, o que tendia a direcionar o comportamento Europeu era (1) o desejo comum de governar o mundo e (2) o compromisso compartilhado de construir um colosso tecnológico. Não havia ética intracultural formal fornecida por uma declaração religiosa institucionalizada. Havia apenas as diretrizes normativas informais do que mais tarde se tornaria o “cientificismo” e a ordem imposta pela interpretação Européia do racional. (É isso que se encontra na República de Platão.)

O que o Protestantismo fez pela declaração Cristã foi torná-la relevante para a dinâmica interna da cultura Européia. Pela primeira vez no desenvolvimento do Ocidente, houve uma correlação entre uma declaração religiosa formal e o comportamento valorizado do Europeu. A ética protestante era, nesse sentido, uma declaração moral ou normativa (uma afirmação do comportamento ideal), mas era apenas com grande dificuldade uma afirmação espiritual. Ela não era essencialmente informada pela espiritualidade nem se dirigia a ela. Era, portanto, consistente com o “espírito,” o utamaroho ou força vital do Ocidente. Em outras culturas, a religião formal pode ser a fonte da visão de mundo, mas, na cultura Européia, o que é chamado de religião formal sempre serviu aos interesses político-econômicos ditados por uma ideologia informada por uma base não espiritual.

 

O Papel Cultural da Igreja Primitiva

A discussão no Capítulo 2 trata apenas da Igreja Apostólica, a qual, para o que tem sido a maior parte da história Ocidental Européia, foi sua declaração religiosa formal predominante. Mas a Igreja em seu modelo reformado — na forma de Protestantismo após o século XVI — se relacionava com a matriz da cultura de uma maneira significativamente diferente. Uma reformulação parcial aqui de algumas de nossas conclusões anteriores ajudará a elucidar essa diferença.

O objetivo da declaração Cristã primitiva não era ser uma afirmação normativa do comportamento pessoal ou “individual” Europeu. O Europeu não imitava Jesus “O Cristo”; esse comportamento teria sido, como foi para ele, suicida no contexto da cultura Européia. A declaração Cristã, em vez disso, serviu para sancionar a expansão imperialista Européia, dando status moral aos conceitos Europeus de “universalismo” e evolucionismo-progressivismo, a Igreja desempenhou assim uma função vital na criação do império Ocidental Europeu. Por causa desse objetivo, sua “ética” não era direcionada para o Europeu, o que estaria em contradição direta com o objetivo imperialista e com o utamaroho, mas sim para o “outro cultural,” e de fato, complementou o objetivo imperialista. A maioria das imagens, cosmologia e mitologia da Bíblia tem origens Africanas antigas e é facilmente reconhecível como o produto de outras culturas .*

[ * — John G, Jackson, “Egypt and Christianity,” em Journal of African Civilizations, 1982, Vol 4, No. 21, pp. 65-80; John G. Jackson, Chistianity Before Christ, American Atheist Press, Austin, 1985; Gerald Massey, Ancient Egypt: Light of the World, Samuel Weiser, New York, 1973; orig. pub. 1907.]

A manutenção desses aspectos facilitou muito o objetivo imperialista, uma vez que tornou a declaração Cristã primitiva emocionalmente atraente e familiar àqueles a quem os Europeus desejavam conquistar, e aos povos do Primeiro Mundo foram oferecidas imagens criadas a partir de um contexto espiritual com o qual eles pudessem se identificar. O Catolicismo absorvia apenas o suficiente das características da cultura que ele invadia, a fim de garantir a participação leal de seus convertidos. É a Igreja Católica que representa a missão Cristã primitiva — para complementar a missão política do Ocidente — a de construção de império. É nos países e comunidades “Católicos” que as celebrações e rituais dos povos Africanos atingem as alturas do bacanal (por exemplo, durante a semana anterior à quarta-feira de cinzas). É a Igreja em sua forma inicial que tem sido mais “tolerante” das culturas majoritárias do mundo, porque um objetivo principal era o controle político dos povos do Primeiro Mundo e o controle político dentro da Europa; e não a orientação moral dos Europeus.

Um vazio existia; não havia nenhuma declaração religiosa normativa intraculturalmente. Não havia uma declaração religiosa com respeito aos padrões de comportamento de um Europeu em relação a outro. não é que esses valores não existissem. Os valores que, de fato, regulam o comportamento interno Europeu (isto é, comportamento dentro da cultura Européia) não vieram e não foram apoiados pelo que era reconhecido como “religião” na cultura, isto é, antes da Reforma. O que direcionava o comportamento dos Europeus para com seus “irmãos” e “irmãs” (outros Europeus) era uma declaração secular e uma concordância de valores e diretrizes materiais. (As tentativas de reformulação dentro da Igreja antes da Reforma foram, em grande parte, malsucedidas ou com conseqüências menores, em termos de sua relação com a ideologia dominante da cultura.)

Por causa da função imperialista cultural da Igreja, sua “direção-ao-outro” [“other-directedness”] nesse sentido, ela sempre foi marcadamente paternalista. Sua função era incentivar a dependência, e não fornecer força moral, vontade forte ou independência nos indivíduos a quem era dirigida. Obviamente, para os propósitos de controle cultural e político dos povos do Primeiro Mundo, iniciativa individual e autoconfiança não são características desejáveis ​​a serem encorajadas. Novamente, a Igreja Cristã primitiva era ideal para a expansão Européia, mas não para fortalecer o Europeu em termos de valores e ideais Europeus. Ela não poderia ajudar na regulação do comportamento dos membros da sociedade Ocidental de acordo com um sistema político-econômico individualista e auto-suficiente, agressivo e forte. Uma conseqüência das preocupações imperialistas da Igreja foi que, dentro da cultura Européia, ela fomentou a dependência e uma espécie de fraqueza moral (veja o filme The Rosary Murders 1989), porque ela não oferecia nenhuma declaração ética concreta aplicável à cultura. Tudo o que restava era um resíduo da atitude paternalista com a qual os “outros culturais” eram abordados. Em termos simples, ela foi excelente para os propósitos da subjugação, mas não para a criação do indivíduo agressivo; não para autodeterminação, nem para o capitalista emergente. Foi o objetivo do imperialismo Ocidental Europeu que foi responsável pela indulgência e paternalismo da Igreja Católica.

Outra característica relacionada à Igreja primitiva que contrasta com o papel do Protestantismo foi sua função unificadora. Desde a sua primeira cooptação pelo Governo Romano, a Igreja funcionou para unificar o Império Ocidental Europeu — novamente, para facilitar seu objetivo imperialista-expansionista. (Quando começou a cair nesse sentido, também começou a perder importância.) Essa função, juntamente com outros imperativos do utamawazo Europeu, deu origem à necessidade de ultra consistência e à busca pela sistematização da doutrina. O trabalho de Agostinho e outros contribuiu para a dogmatização e rigidez da Igreja e mais tarde a Inquisição tentou fanaticamente eliminar a dissensão restante. Esse aspecto da natureza da Igreja foi, então, atribuído ao seu intenso propósito político. Desde o tempo da Igreja primitiva e subsequente à Reforma e ao crescimento de formulações religiosas “não-Católicas” no Ocidente, a unificação política da Europa Ocidental nunca foi fornecida pela religião formal (isto é, a declaração formalmente religiosa da cultura nunca foi o veículo da unificação desde então). Resta agora ver como, de fato, a função da religião formal mudou com o advento do Protestantismo.

 

Reforma: o Novo Papel da Igreja

A essência da mudança provocada pela Reforma, dentro do contexto dessa discussão, é que o Protestantismo representou não uma declaração criada para a missionação dos povos do Primeiro Mundo, mas uma virada interior [inward turning] da religião Ocidental Européia. Pela primeira vez no desenvolvimento Europeu, a religião formal se dirigiu não principalmente à expansão imperial, mas à regulação do comportamento entre os povos da cultura Européia. Isso não quer dizer que o Protestantismo não apoiou o empreendimento colonialista e missionário. Certamente fez e faz. O ponto aqui é que sua função principal na época da Reforma, em termos de desenvolvimento Europeu, era fornecer uma declaração normativa para o comportamento do indivíduo dentro da cultura. Além disso, ao fazê-lo, enfatizava o eu individual como eixo e força reguladora da ética apresentada.

Esta era uma ética, portanto, totalmente consistente com os valores do Ocidente e apoiava o empreendimento capitalista que deveria desempenhar um papel tão vital na unificação política da cultura Ocidental Européia e no desenvolvimento posterior da consciência nacional. É um erro grosseiro para Ayn Rand e outros de sua persuasão lamentar as chamadas contradições entre o “altruísmo Cristão” e a ética do capitalismo, pois, de acordo com a organicidade da cultura Européia — a asili — a ética capitalista recebeu as sanções necessárias para o seu sucesso com esta nova declaração religiosa, bem como do utamawazo e ideologia Europeus.

O que era necessário para o crescimento do império capitalista Ocidental Europeu moderno era um tipo de pessoa em quem se pudesse confiar para se comportar de acordo com um código específico. O Protestantismo dirigiu-se à ordem civil, e não à ordem mundial, e à pessoa interior. É nesse contexto que as idéias de Lutero e, mais tarde, de Calvino se apoiavam. A ênfase de Lutero lançou as bases para o impulso político de Calvino. Mumford faz os seguintes comentários sobre as idéias de Lutero:

Segurança e liberdade não deveriam ser encontradas apenas no mundo interior: não no mosteiro, onde a autoridade também ameaçava, mas dentro da cidadela do eu particular, fora do alcance dos pais tirânicos e das línguas dissimuladas [tongued lightning]. *

[ * — Mumford, p; 185.]

Aqui, novamente, ele aponta para a extrema interioridade e autoconfiança que as idéias de Lutero expressavam:

As doutrinas de fé de Lutero se prestavam à exploração por poderes muito mais sombrios do que aqueles a que essa doutrina se opunha: o próprio fato de o mundo privado do crente ter se tornado sagrado para ele, impediu-o de reconhecer o critério da sanidade — a congruência da convicção privada com a experiência histórica e o senso comum de outros homens.*

[ * — Ibid p. 188.]

Esta é a descrição de Kovel desse eu recentemente enfatizado:

Um mundo materializado sem valor intrínseco é acionado por um eu libertado deste mundo por uma virada interior. O superego finalmente se move para dentro para racionalizar decisivamente o ganho e a produção, e assim se torna o senhor da história.*

[ * — Kovel, p. 150.]

Segundo Mumford, Calvino aplicou essa doutrina do eu à manutenção de um tipo especial de ordem civil. Ele “fortaleceu a doutrina Agostiniana da predestinação” e “lançou as bases para a liberdade civil e o autogoverno: a Cidade do Homem.”

. . . a ordem civil se dedicou ao estabelecimento sistemático da ordem moral . . . .
Um pecado era um crime contra o Estado: um crime era um pecado contra a Igreja
. *

[ * — Mumford, p. 189.]

Mumford toca no ponto crítico que estou afirmando — que o Protestantismo representou uma nova direção de atenção do corpo religioso-formal para a dinâmica interna da sociedade Ocidental Européia. Mas ele parece não entender o real significado dessa nova direção, possivelmente porque está enganado sobre a natureza do Cristianismo primitivo.

O Calvinismo foi uma tentativa real de render a Deus as coisas que são de César: um retorno ao republicanismo clássico em que a virtude cívica era altamente considerada na escala humana: um retorno aos princípios Cristãos, reinos dos quais ela fora progressivamente banida: uma união de doutrina eterna e ação diária.*

[ * — Ibid, p. 192.]

Aqui acho que Mumford está errado. Ele fala de “retorno” e “reunião” embora não tenha havido uma separação inerente entre esses dois reinos na própria natureza da ideologia Cristã, tal como foi iniciada. É Spengler quem parece interpretar corretamente a “intenção” do Cristianismo primitivo, isto é, na interpretação Européia. Na sua adoção pelo Ocidente, nunca se destinou a se aplicar à existência concreta da vida cotidiana dos Europeus. O Protestantismo não foi um retorno, mas uma verdadeira reforma para novos propósitos.

A intenção do Protestantismo era moldar um tipo particular de pessoa. Essa pessoa era adequada ao crescimento do capitalismo e ao desenvolvimento da sociedade Ocidental moderna. Ele era um individualista extremo (que, é claro, tinha precedentes nas tradições mais antigas do utamawazo [pensamento culturalmente estruturado] Europeu, apenas a ênfase era nova). Ele era extremamente auto-suficiente. Ele foi o protótipo do empresário “bom” e bem-sucedido. Mumford diz que “a personalidade Protestante era empresarial [businesslike] mesmo quando não havia negócios em mãos.” Calvino sancionou abertamente a ética dos negócios; uma sanção que era absolutamente necessária. Para um estado capitalista moderno se desenvolver e prosperar, era essencial uma crença na moralidade e na sacralidade da propriedade pessoal e no cumprimento de contratos. (Apenas agora estamos começando a testemunhar as implicações para o sistema capitalista e o império Ocidental quando tal ética não é aceita; não no advento do socialismo Russo, mas na chegada do “sequestrador de avião” [“sky-jacker”] e outras formas de então-chamado “terrorismo.” “Terror” para o Ocidente porque o Ocidente perde o controle.)

[ * — Ibid, p. 198.]

Em contraste direto com a postura Católica, a atitude Protestante em relação aos adeptos da fé era de severidade e a apresentação de padrões e metas de comportamento exigentes que se esperava que o indivíduo mantivesse independentemente; sem a ajuda de uma igreja que perdoava tudo e possivelmente servia de muleta para os moralmente fracos. A ética Protestante implicava uma filosofia diametralmente oposta à do confessionário Católico. Em apoio a este ponto, Mumford diz:

Enquanto o pecador não se separasse de Deus por heresia, a Igreja Católica era indulgente com ele. mas o governo de Calvino não pratica tal indulgência: seu objetivo era reduzir a tentação e erradicar o pecado.

No século dezessete, o Protestantismo havia criado um ego ideal: aquele que chegou até nós na imagem do Puritano. Os traços dominantes desse caráter revelam austeridade e uma imensa concentração da vontade . . .

O Protestante se isolou da expansão sensual e da dilatação erótica da ordem barroca: e as avenidas dos sentidos estavam agora cuidadosamente guardadas, às vezes completamente fechadas. Não apenas as imagens e figuras desapareceram de sua arquitetura, mas também os padrões figurados, que os fabricantes de seda da época haviam aprendido a fabricar em seus suntuosos brocados, desapareceram do adorno pessoal. Trajes austeros e cores sombrias tornaram-se as marcas distinguíveis da Reforma. *

[ * — Ibid, pp. 189, 197.]

O Catolicismo tem sido historicamente bem-sucedido em seus vigorosos esforços missionários entre os povos majoritários, enquanto que as missões Protestantes nunca foram comparáveis ​​nesse empreendimento. (O posterior “sucesso” da igreja não-católica entre os povos do Primeiro Mundo — Aladura Africana, Pentecostal Porto-Riquenha, Batista Espiritual Afro-Caribenha [Shango Baptist], Igreja Batista Afro-Americana — é ironicamente conseguido pelo preço da negação total do Protestantismo de reforma.) Novamente, os propósitos e objetivos dessas duas declarações religiosas eram diferentes. O Catolicismo, representando a igreja Cristã primitiva em seu papel imperialista, nunca teria conseguido obter conversos do Primeiro Mundo se os tivesse abordado com a dureza da ética Puritana. E o que é mais importante, essa abordagem teria derrotado o objetivo do imperialismo Europeu; teria sido a tentativa de promover uma ideologia de auto-suficiência, independência e força defensiva entre os povos Africanos (como faz a Nação do Islã).

A declaração Protestante, por outro lado, dirigida interiormente ao seu próprio povo, procurou precisamente construir tal indivíduo. Ascetismo e esterilidade, a negação da humanidade e o calor de outras culturas, foram interpretados como características positivas. Portanto, enquanto o Catolicismo encontrou uma ferramenta valiosa na manutenção e incorporação de formas culturais majoritárias, o Protestantismo diligentemente se livrou de toda sensualidade, vitalidade emocional e artística e ritual expansivo. O Protestantismo rejeitou categoricamente tudo o que considerava não Europeu e, no processo, ajudou muito a endurecer na cultura Européia o estéril e o “abstrato,” as tendências não humanas já reconhecíveis em seu desenvolvimento ditadas pela asili.

Mumford diz:

Não apenas as imagens da Igreja Católica foram rejeitadas: todas as imagens tornaram-se suspeitas como ídolos supersticiosos, muito facilmente adoradas por si mesmas . . . dançar, ir a teatros, assistir a espetáculos públicos, participar de carnavais e, acima de tudo, jogar dados ou cartas, ficam fora do âmbito de sua prática diária [do Protestante]; quando não estava envolvido ativamente nos negócios, ele voltava-se para o sermão, o folheto, o jornal: o mundo do preto e branco. *

[ * — Ibid, p. 198.]

No protestantismo, as imagens estéticas se tornaram mais Européias.

Constantino, Agostinho, Tomás de Aquino e aqueles que eles influenciaram contribuíram para o monumento da sistematização política e doutrinária que é o Catolicismo. Eles deixaram o legado de uma declaração político-religiosa monolítica e, acima de tudo, unificada; o veículo perfeito para a expansão Ocidental inicial. Mumford lamenta o fato de o Protestantismo não ter feito a mesma contribuição para o desenvolvimento Europeu. Mais uma vez, esse fato deve ser entendido em termos de sua função na cultura Européia e de seu papel e “timing” histórico no desenvolvimento Europeu. O Protestantismo não pretendia unificar o império Europeu. Esse objetivo estava sendo cumprido por aspectos seculares da ideologia e cultura Européias. Seu objetivo era auxiliar na regulação do comportamento dos indivíduos dentro da cultura, a fim de que esse comportamento fosse previsível e correspondesse às instituições controladoras e aos objetivos do Ocidente. O Protestantismo, diz Mumford, tem uma “tendência inerente à fissão,” porque a “revelação” e não a “razão” é considerada o meio apropriado para interpretar a Bíblia. Havia, portanto, em seus primeiros dias um crescimento contínuo de grupos antagônicos e a criação de seitas sempre novas, baseadas em diferentes interpretações da Bíblia. Mas Mumford parece não entender que essas “seitas” representavam apenas descentralização política. Eram apenas variações de um tema, todas elas, por mais bizarra que fosse sua interpretação (do extremo ascetismo ao manejo de cobras [snake handling]), serviam ao propósito de fornecer estritas declarações morais para a orientação do comportamento na cultura Européia e a necessária construção de um forte superego no indivíduo.

Assim, o individualismo se transformou em mero atomismo. E a flor final do ensino Protestante era uma negação voluntária da necessidade de unidade: cada homem vivia em uma religião privada, governada por um código privado, sujeita a nenhuma lei além de sua consciência, obediente a nenhum impulso, exceto o de sua própria vontade privada. Essa era de fato a utopia da burguesia irresponsável: esta erigiu fundamentos morais ilusórios para o máximo capricho. *

[ * — Ibid, p. 196.]

As observações de Mumford aqui apontam talvez para um efeito muito mais tardio do individualismo Protestante em combinação com o utamawazo Europeu, mas dentro da asili do desenvolvimento Europeu, e em termos das necessidades do século XVI, não são caprichos nem irresponsabilidades o que o Protestantismo fomentou, mas sim um comportamento consistente e previsível, orientado para os objetivos da “conquista” individual e baseado em um mecanismo de controle interno ao indivíduo, em vez de ser predominantemente externo como havia sido na igreja primitiva.

Mumford está procurando algo no Protestantismo que está historicamente “deslocado” no contexto do desenvolvimento Europeu, e isso é provavelmente devido ao seu próprio compromisso com um “universalismo” espúrio que não é politicamente desejável nem culturalmente viável. Não faz sentido avaliar o Protestantismo, o Catolicismo, o capitalismo ou qualquer outro desenvolvimento ideológico-institucional da cultura Ocidental Européia do ponto de vista de um objetivo humano abstratamente concebido de “universalismo” — um fio consistente a ser encontrado nas obras de Mumford. Essas instituições Europeias só podem ser entendidas em termos dos objetivos específicos e do compromisso da ideologia Européia. Nenhuma forma cultural Européia foi criada a partir da necessidade ou desejo de unificar o “homem.” A igreja primitiva nunca teve isso como objetivo, a menos que a expansão do mundo Europeu seja interpretada como sendo do interesse de todos os povos, claramente uma interpretação Eurocêntrica. Cabe ao historiador cultural examinar o Protestantismo em termos das necessidades do período específico de desenvolvimento em que ele floresceu; isto é, se ele espera entender sua significação.

O Catolicismo, em seu autoritarismo e preocupação com a expansão, controle e unificação imperiais, não deu atenção à construção do superego Europeu individual. Não conseguiu fazer as duas coisas e, portanto, deixou um vazio em termos de uma declaração ética Européia interna e de um guia normativo para o comportamento. O Protestantismo, por outro lado, focou o indivíduo na cultura Européia e realmente forneceu um modelo que o indivíduo poderia internalizar e que ele foi levado a acreditar que poderia levar ao “sucesso” dentro do sistema de valores Europeu e das novas instituições que tomavam forma. Isso contrariava sua confiança no passado em uma teologia abstrata sistematizada que ele não deveria compreender e na realização de rituais externos. É o Protestantismo, e não o Cristianismo primitivo (e certamente não toda religião), que é o “ópio das massas,” na medida em que é projetado para dar às classes trabalhadoras a experiência de uma espécie de pseudo-sucesso dentro do sistema Europeu através da adesão a regras estritas de conduta pessoal; um “sucesso” calculado para compensar o sucesso improvável do capitalista real, que obviamente só é acessível a poucos escolhidos. O Protestantismo não pôde cumprir simultaneamente a função de unificar o Ocidente; além disso, não foi chamado a fazê-lo. O Cientificismo, e depois, o industrialismo e o progressivismo fariam o trabalho. Historicamente, o Catolicismo eliminou furiosamente a heresia em suas fileiras. Nesta perspectiva, a Inquisição faz “sentido etnológico;” Se usarmos o conceito de asili, uma vez que as necessidades da Europa eram na época a solidificação de uma organização mundial ideologicamente monolítica. Mas o Protestantismo poderia sobreviver a uma “tendência inerente à fissão” e ainda desempenhar sua função na cultura Européia. Ele dirigiu sua atenção para a psique individual. Se esta fosse adequadamente controlada, não haveria necessidade do controle paternalista da hierarquia Católica unificada.

 

Protestantismo e o Ego Europeu

Existem outras características do Protestantismo que ajudam a explicar seu lugar na formação desses estágios mais maduros do desenvolvimento Europeu. Como Mumford aponta, o Protestantismo fez muito para promover a alfabetização no Ocidente. A alfabetização tornou-se mais difundida em grande parte por causa da ênfase colocada na salvação individual com o auxílio da familiaridade e interpretação da Bíblia. *

[ *— Ibid, p. 198.]

O Protestantismo, em sua ênfase nos “santuários internos” particulares do ser individual, reforçou e foi consistente com o desenvolvimento do conceito Europeu de individualismo e com o valor da liberdade e autonomia individuais. Essa ênfase e valor foram incentivados pelas concepções Européias já existentes da psique humana — um legado da Europa arcaica. Embora seja verdade que esse conceito de “liberdade” tenha levado a tendências de decadência moral no Ocidente do século XX, Mumford exagera e se engana sobre suas implicações mais imediatas.

Buscando liberdade pessoal para evitar os vícios de uma autoridade eclesiástica arbitrária, o Protestante finalmente se tornou um defensor da liberdade, a fim de estabelecer uma autoridade igualmente arbitrária própria. Se ele não possuía o poder externo de um déspota, ele tendia ao despotismo negativo: inconformidade — em última análise, niilismo*

[ * — Ibid, p. 197.]

A imoralidade do Ocidente (o sacrifício do espírito humano em nome do poder) não é a mesma coisa que o niilismo (inerentemente mal sucedido, uma vez que não busca construir): Novamente Mumford vê as implicações culturais do Protestantismo de maneira tão extrema por causa de sua ideologia “universalista.”

Deve-se entender que o Protestantismo aumentou ainda mais a dinâmica do desenvolvimento da Europa Ocidental em seu compromisso com um modelo mecânico e sua aliança com a “máquina.” Mumford, como Friedrich Juenger (ver capítulo 1), aponta para a coincidência da “capital” da relojoaria (Genebra) com o ponto focal inicial do Calvinismo. ele diz,

A máquina tornou-se, assim, um símbolo de duas cabeças: representava tanto a autoridade despótica quanto o poder que desafiava essa autoridade: representava-os e os unia. A burguesia tornou-se o novo Eleito; e o proletariado, mesmo até o mero bebê, eram obviamente os predestinados à condenação. Assim, a concentração Calvinista sobre a vontade, entregando ao mundo geração após geração de atletas morais com músculos espirituais amontoados e orgulhosos, limita, no entanto, toda a personalidade humana; e a Cidade do Homem foi mais uma vez minada pelos próprios motores do poder que os próprios Calvinistas de maneira tão engenhosa e inventiva ajudaram a instalar em suas catacumbas.*

[ * — Ibid, p. 194.]

A tentativa de entender a significação cultural do Protestantismo aponta para uma característica importante da cultura Européia que pode ser facilmente mal interpretada. A ética Protestante não pode ser entendida apenas em termos da natureza e função das religiões formais em contextos culturais primários. Como declarações religiosas nas culturas primárias, ela forneceu e reforçou os modelos de comportamento culturalmente aceitos e, nesse sentido, era uma declaração de “moralidade,” mas diferente das declarações religiosas mais espiritualistas. Foi de fato com a ajuda dos Protestantes e do capitalismo que os golpes fatais para a consciência espiritual Ocidental Européia foram dados. A espiritualidade nunca havia informado a direção ao desenvolvimento Europeu nem ao caráter da cultura Européia; (não está contida na asili), mas agora ela foi completamente exorcizada.

Por uma questão de clareza, devemos reiterar o que se entende por “espiritualidade,” em vez de assumir sua definição. Pretendemos implicar uma visão particular de uma realidade universal na qual uma dada ordem está subjacente à inter-relação orgânica de todos os seres dentro do cosmos resultante. Essa ordem, que é percebida e é, ao mesmo tempo, uma questão de fé, é de natureza metafísica-essencialista. É nesse nível primordial e supremo que o significado é derivado, o que ajuda a explicar a realidade material (física). Talvez a característica mais significativa desse conceito de espiritualidade seja sua natureza transcendente. Embora alguém aja pragmaticamente dentro de uma realidade profana, nunca se pensa que essa “realidade” seja a essência do significado. Nas concepções espirituais, há sempre um esforço pela experiência de uma realidade mais profunda que une todo ser. Aprender é o movimento da diferença superficial para a uniformidade essencial (Na’im Akbar). Essa “uniformidade” [“sameness”] é espírito; além e ontologicamente anterior à matéria. É a base do valor humano. A espiritualidade de uma pessoa envolve a tentativa de viver e estruturar sua vida em nível nacional, comunitário e pessoal, de acordo com princípios espirituais universais. Permite a apreensão do espírito (energia) na matéria (forma).

Vejamos um exemplo de comportamento intracultural Europeu contemporâneo, que talvez demonstre concretamente o que se entende por falta de uma base espiritual na cultura. Em março e abril de 1987, um polêmico processo judicial surgiu nas manchetes e noticiários envolvendo a custódia de uma criança, que ficou conhecida como “Baby M.” O caso chamou atenção para uma nova prática chamada “mãe de aluguel,” na qual uma mulher aluga o seu útero a um casal que não pode ter um filho. Por um preço, nesse caso US $ 10.000, ela se deixa engravidar artificialmente com o esperma do homem, carrega o feto por nove meses e dá à luz um bebê, que então “pertence” ao homem e à sua esposa. No caso do “Bebê M”, a pessoa referida como a “mãe de aluguel,” que na verdade deu à luz, mudou de idéia e queria ficar com o bebê, alegando que era seu por direito.

Uma situação como essa é inconcebível da perspectiva de uma visão espiritualista do mundo. Todos os envolvidos estão reagindo de maneira materialista a um evento profundamente espiritual. E eles têm que resolvê-lo legalmente! A mãe natural é chamada de “substituta” [mãe de aluguel] porque “vendeu” os direitos ao seu corpo; ela “negociou” [“contracted”] as funções do seu ventre. Algo que ela espiritualmente não pode fazer; isso só poderia ser concebido no contexto da visão de mundo Européia, que objetifica toda a realidade. O corpo (útero) da mãe natural é considerado como se fosse uma incubadora mecânica em uma enfermaria de hospital. No entanto, o corpo (útero) está inextricavelmente e interdependentemente unido a um espírito, corpo e ser emocional humanos. Não deve haver outro fenômeno que afete o ser emocional de uma mulher com mais intensidade do que o ato de carregar um filho e dar à luz. Somente os Europeus tentariam anular o processo de nascimento de seu significado espiritual — e tratariam outro ser humano apenas como um “útero” e um processo biológico. Neste exemplo, a ocorrência mais sagrada, em termos da visão de mundo Africana, torna-se um acordo comercial no qual não apenas o ventre de uma mulher, mas o bebê a quem ela dá à luz é uma mercadoria: a profanação suprema. Também falta profundidade e maturidade espirituais ao casal sem filhos, que, em vez de adotar um filho, deve dessacralizar um fenômeno sagrado “exercendo” seu egoísmo extremo e narcisista.

Séculos antes no desenvolvimento Europeu, o Protestantismo estava lançando as bases para uma tal abordagem intensamente não espiritual da realidade. O Protestantismo era prático, mecânico e materialista. Era, nesse sentido, “secular” (ou “profano” no sentido da distinção de Mircea Eliade). *

[ *— Mircea Eliade, the Sacred and the profane, Harcourt Brace, New York, 1959, pp. 22-24.]

Como Mumford indicou, sua [do Protestantismo] preocupação era a Européia “Cidade do Homem” concreta. O Protestantismo dizia respeito ao negócio da vida agressiva e sobrevivência material. A conduta e o comportamento pessoais morais eram um pré-requisito para a ordem civil, mas a essência do espírito humano não era a fonte dessa moralidade, mas estava sendo destruída por ela. O Protestantismo, com ênfase no ego concebido Ocidental, ajudou a destruir o eu [self]. Kovel diz,

Por meio do expediente da abstração, expresso com mais força na teologia Calvinista, surgiu um símbolo divino para justificar o sofrimento individual, voltando-o para uso econômico nas compulsões do trabalho sem prazer e ganho sem alegria.*

[ * — Kovel, p. 137]

Claramente, isso descreve uma ética ou moralidade não espiritual; um fenômeno totalmente Europeu e que deve ser entendido como tal. O homem burguês moderno, diz Kovel, “que começou seu desenvolvimento sustentado pela fé Protestante, consegue colocar Deus de lado, mesmo quando O adora. *

[ *— Ibid, p. 151.]

As implicações da “analidade” na descrição psicanalítica da estrutura da personalidade são diametralmente opostas ao que quero dizer com “espiritualidade.” É o resultado da negação do espírito humano. Kovel identifica a ética Protestante e seu desenvolvimento com a personalidade anal Ocidental. Essa interpretação é a base de sua teoria do imperialismo Europeu e do “racismo branco.” Ele leva essa explicação ao extremo em sua caracterização de Lutero. (Norman Brown fez o mesmo ponto.) *

[ * — Brown, Life Against Death, p.202.]

Sua personalidade foi em grande parte elaborada sobre fantasias anais. Dois de seus traços de personalidade, teimosia e desafio [defiance], foram decisivos para ajudá-lo em sua rebelião contra a autoridade papal . . . o ponto de virada na história Ocidental moderna, [foi quando] a idéia de Lutero sobre o poder da fé individual, surpreendeu-o com um lampejo de inspiração enquanto estava sentado na privada, e que esse gênio não relutou em enfatizar a importância disso ao aplicar simbolismo fecal para todas as partes más do universo, e especialmente para o diabo, o antagonista negro de Deus.*

[ * — Foi o próprio Lutero que achou essa informação significativa o suficiente para ser registrada; ver Kovel, p. 131.]

A personalidade de Lutero é generalizada e se torna aquela do Europeu agressivo bem-sucedido (e malsucedido, mas ardente defensor do sistema). “Configurações de caráter semelhantes [ajudaram] incansavelmente outros Ocidentais em seus esforços teimosos e desafiadores para impor uma nova cultura mundial a outras civilizações.” Abaixo Kovel isola as características que descrevem o comportamento do Europeu, sancionado e dirigido pela ética Protestante:

. . . controle, teimosia, desafio, ordem, limpeza, pontualidade e economia — esses traços complicados que caracterizaram o Ocidente mais do que qualquer outra civilização — se transformam em fantasias anais e a resolução de sua incompatibilidade lógica é alcançada através de uma raiz simbólica inconsciente nas fantasias infantis sobre excreção. *

[ * — Foi o próprio Lutero que achou essa informação significativa o suficiente para ser registrada; ver Kovel, p. 131.]

Kovel não é o único que sugeriu uma relação entre o desenvolvimento anal Europeu e a agressão Européia. O filme, Cradle of Humanity, realizado por uma equipe de psicólogos Europeus para a UNESCO, documenta um estudo que eles conduziram sobre o relacionamento entre mães e bebês na África Ocidental. Eles concluíram que a proximidade desse relacionamento incentiva o desenvolvimento físico e mental precoce na primeira infância. No decorrer do filme, são feitas comparações com práticas e atitudes Européias de criação de crianças. Um ponto de comparação dizia respeito ao treinamento do banheiro [toilet training], uma transição muito problemática no desenvolvimento do Europeu na qual a criança experimenta rejeição e separação dos pais e do eu; resulta em um tipo de traumatização em que o medo e a confusão se tornam hostilidade e ordem imposta (prazer associado ao controle?). A criança Européia é obrigada a sentar-se sozinha em um objeto estranho e frio e não pode “voltar ao grupo” em certo sentido até que esteja “limpa.” Como a mãe/pai não tem certeza da hora exata da necessidade de excretar, essa criança muito jovem costuma ficar sentada por longos períodos sozinha ou com um livro ou sai apenas para ser “colocada em isolamento” novamente (às vezes como punição) .

Como o filme revela, a prática tradicional Africana é inicialmente diferente. A mãe e o filho, que quase nunca estão literalmente separados fisicamente, desenvolvem uma maneira especial de se comunicar que tem profundo significado espiritual (até psicológico). A criança usa essa linguagem especial para indicar à mãe quando ela quer se aliviar. A mãe então tira a criança das costas, onde é carregada, e sentada no chão com as pernas esticadas à sua frente, posiciona a criança de modo que ela (a criança) esteja sentada sobre as pernas (da mãe) de frente para a mãe. As pernas da mãe estão espaçadas para que a criança excrete no chão. Se, por algum motivo, a criança não se aliviar, a mãe emite um som “shuching” [“shushing sound”]] que de alguma forma incentiva a criança a fazê-lo. O resultado disso é um tipo de experiência extremamente diferente daquele a que as crianças criadas nas sociedades Européias passam. Um é um processo natural, dependendo da conexão espiritual entre os mais próximos dos seres humanos. O outro é um procedimento assustadoramente artificial que interpõe objetos materiais estéreis em um processo orgânico e consegue alienar os seres humanos uns dos outros, pois impõe ordem à vida humana, negando a espiritualidade humana.

Esse padrão de negação na infância Européia é consistente, pois os bebês são separados de suas mães em idades muito precoces (no nascimento nos hospitais) e são levados a dormir em camas e quartos separados ou a se relacionar com estranhos por longos períodos durante o dia. Isso, novamente, contrasta fortemente com a prática tradicional Africana, na qual a mãe carrega o bebê por toda parte nas costas, até dormindo com ela à noite. Ela amamenta a criança sob demanda e evita relações sexuais com o marido até que a criança seja desmamada. Na cultura Européia, o bebê deve competir com o marido pela atenção e carinho da mãe. O filme implica que a criança Européia desenvolve a necessidade de procurar atenção agressivamente, uma vez que essa atenção não é facilmente acessível. A agressão se torna o padrão normal de comportamento, já que esse é o caminho para alcançar o que é necessário. Que tipo de adulto se desenvolve a partir de um bebê solitário? Talvez o que Freud considerou agressão humana universal, decorrente do trauma e dos conflitos da fase anal e da individuação infantil, sejam meramente projeções de sua parte de uma síndrome Européia que começa a se intensificar com o pensamento e o comportamento reformistas Protestantes.

O que começou a ser chamado de “ética Protestante” também se assemelhava ideologicamente de várias maneiras impressionantes às características culturais do Judaísmo primitivo. Como disse anteriormente, a declaração Judaica foi criada para a criação e sobrevivência de um grupo cultural forte, auto-suficiente e isolado. Seus objetivos principais não eram os da expansão mundial. Possuía uma ideologia interna; fortemente nacionalista no sentido autodeterminista. No judaísmo é encontrada uma base racional, política e material (com exceção da Qabbala), em oposição a uma base espiritual sobrenatural. No Protestantismo, há a mesma ênfase no auto-aperfeiçoamento e na auto-suficiência que historicamente caracteriza a população Judaica. E reflete um período correspondente em que a Europa se dirigia a suas estruturas internas e ao tipo de pessoa que seria apropriada e apoiaria a missão cultural percebida.

Sem sacrificar o momento de seu expansionismo, a cultura Ocidental usou a nova formulação religiosa para construir uma cultura que garantisse a sobrevivência e um indivíduo que fosse leal a seus objetivos. Mumford, novamente, encontra esse contraste entre Protestantismo e Catolicismo, mas não mostra nenhuma compreensão do significado político-cultural do Cristianismo “universalista.” Ele fala do esforço do Ocidente do século XVI “para alcançar a auto-suficiência cultural: uma recuperação perversa da Igreja Universal . . . Lutero . . . associou o internacionalismo à corrupção e o isolacionismo à pureza. *

[* — Mumford, p. 187.]

E dessa perspectiva, Mumford reconhece uma relação entre Protestantismo e Judaísmo:

Sob a paixão Protestante [sic] pela salvação individual, o homem comum se elevou por heróicos esforços mentais: ele leu e dominou a história, as leis, a ética e a poesia de uma das maiores culturas que o mundo já conheceu: a dos Judeus. *

[ * — Ibid, p. 198.]

Antes, ele diz, “o Calvinismo foi o Cristianismo revigorado pela moralidade dos profetas Judeus e pelas tradições políticas e educacionais da sinagoga Judaica.” *

[ * —Ibid, p. 192.]

Nos estágios formulativos da cultura Ocidental, foi precisamente o isolacionismo e a ênfase autodeterminista do Judaísmo que o tornaram inadequado para o ego Europeu expandido e para o objetivo imperialista mundial Europeu recém-concebido. A declaração Cristã do antigo Ocidente incorporou muitas das características culturais e ideológicas do Judaísmo, acrescentando o universalismo e mandato de proselitismo necessários para sancionar a construção de um império mundial. Mumford diz de um período muito posterior na história da Europa Ocidental que “a religião de poder de Hitler, com ele próprio para Deus, foi um esforço para derrubar o que restava do universal e do humano: um esforço para transformar o mundo como um todo na pátria Alemã.” *

[ * — Mumford, p. 187.]

O que ele não reconhece é que todas as declarações e idologias “universalistas” ao longo da história da Europa têm sido variações do tema comum de transformar o mundo em um império Europeu. O Cristianismo foi a primeira declaração desse tipo em termos formalmente religiosos, enquanto o Judaísmo era politicamente inadequado, porque naquele estágio do desenvolvimento Europeu era muito cedo para uma declaração religiosa voltada para o interior, isolacionista e autodeterminista. A primeira ordem do dia era conquistar o mundo; expandir “o eu.” No século XVI, o Europeu havia conquistado sua posição no mundo; agora ele estava pronto para direcionar sua atenção para a dinâmica interna de sua cultura e para o controle ético dos indivíduos dentro dela. Se essa “ética” não tivesse surgido, o incansável utamaroho Europeu teria se direcionado para si mesmo da mesma forma, destruindo o império Europeu por dentro. Era hora do Protestantismo e do retorno a uma ênfase mais Judaica no eu e na entidade cultural; isto é, agora que a “consciência Européia” fora assegurada e o eu cultural fora definido em termos expandidos.

Mumford chama o Protestantismo de “evangelho de auto-suficiência e autodeterminação.” * É interessante que esses sejam precisamente os objetivos dos movimentos revolucionários e anti-imperialistas contemporâneos dos Africanos e de outros povos majoritários. De fato, o nacionalismo de tais povos é definido em termos de autodefinição e ideologias de independência. A força da China não se encontrava primariamente na adoção de uma estratégia política “internacional,” ou mesmo de seu socialismo — certamente uma ferramenta viável para a implementação de uma ideologia não exploratória — mas em seu “nacionalismo,” a ênfase ideológica na auto-dependência. O objetivo imperialista Ocidental obviamente precisa de subordinados (isto é, “objetos” políticos) e é bem-sucedido apenas na medida em que existem “coloniais” que carecem de confiança em sua capacidade de sobreviver sozinhos. É por isso que a atitude Européia em relação aos povos majoritários é sempre caracterizada pelo paternalismo. Finalmente, a África não precisa de “folhetos” do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional; A África precisa que os Europeus deixem seus recursos naturais em paz. o objetivo sempre foi proibir a independência: psicológica, política e ideológica. Os Africanos e outros povos de maioria mundial, convencidos de que precisam do capital do Ocidente para sobreviver, serão por definição eternamente dependentes e, portanto, “colonos.”

[ * — Ibid., p. 188.]

A ética Protestante também procurou criar força, agressividade (defesa) e autoconfiança interiores, mas sua apresentação do “eu” era uma força inibitória e negativa ao invés de criativa para os Europeus. A formulação Protestante determina tanto uma definição isolada do eu individual quanto, ao mesmo tempo, um controle excessivo da inclinação natural desse eu. Ela cria, assim, uma personalidade frustrada que, caracteristicamente, sofre de falta de realização emocional.

A ênfase no eu e na etnicidade encontrada no autodeterminismo do Primeiro Mundo é baseada na consciência de uma fonte espiritual compartilhada e de um conceito não individualista de liberdade; Ou seja, uma “liberdade” e objetivo de bem-estar comunalmente baseados. As energias agressivas e defensivas evocadas são direcionadas para fora ao opressor Europeu e seu controle — aquilo que procura destruir o “eu cultural.” Essa ênfase no eu não é, portanto, baseada na separação do eu do outro, como determina o utamawazo Europeu, mas na descoberta da importância do eu através da identificação com o todo cultural — uma descoberta que não é possível na ausência de tal identificação. É uma consciência espiritualmente baseada do eu que implica e depende da comunhão com aquilo que é mais do que o eu. A expansão do eu é, portanto, um fenômeno espiritual, não materialmente baseado como no caso Europeu minoritário. Dessa maneira, incorpora a sabedoria das ideologias tradicionais do Primeiro Mundo. Compare a seguinte declaração de William Strickland sobre o autodeterminismo Africano com a ideologia do Protestantismo:

Os negros devem construir uma nova política, com uma nova visão social — uma política de verdadeira revolução, que é sempre e finalmente, uma política de auto-suficiência. Nossa tarefa futura é auto-evidente, é auto-desenvolvimento, construindo de novo como nosso irmão caído Amilcar Cabral, enquanto lutamos. Desenvolvendo em meio à depressão, desenvolvendo sob cerco. Desenvolvendo sem recursos, exceto recursos humanos.*

[ * — William Strickland, “Watergate: Its Meaning for Black America,” in Black World, Vol. XXIII, No. 2, 1973, p. 9.]

Esta é a única possibilidade revolucionária para um povo colonizado. A autoconfiança e a autonegação da ética Protestante, por outro lado, ajudam a manter a ordem existente; e o eu é ensinado a depender do capital material e dos recursos materiais.

A ênfase de Lutero sobre a virtude moral como a realização adequada da tarefa ou “chamado,” não importa quão servil, prenuncia um papel regulador crítico que o Protestantismo viria a desempenhar. O utamaroho Europeu é de extrema arrogância e ambição de poder. Essa expressão é construtiva (em termos do objetivo Europeu), desde que seja direcionada para o exterior. O Protestantismo permitiu a identificação do indivíduo com o objetivo imperialista Europeu/Euro-americano, ao mesmo tempo em que encorajava uma atitude de aceitação e humildade entre os menos poderosos da cultura em relação ao seu status inferior. A ética Protestante tem tido mais sucesso nesse aspecto, pois ainda é uma das forças mais impenetráveis ​​do império Europeu que seus membros “inferiores” podem identificar como “superiores” do mundo e, portanto, contribuir lealmente à causa Européia. À medida que a cultura se dividia entre capitalista e assalariado, o Protestantismo ajudou a garantir que os explorados dentro da cultura não apenas se contentassem com a sua parte, mas sentissem que estavam fornecendo uma função vital em uma “ordem de coisas” maior. O “bom” Protestante apoiava o sistema; ao fazê-lo, ele estava “atendendo seu chamado:” ópio das massas.

 

Temas em Interação Interpessoal: Sobrevivência, Competição, Controle

Estamos tentando definir a “ética” que guia o comportamento intracultural, interpessoal Europeu (Euro-Americano). O Protestantismo foi uma declaração formal parcial dessa ética em um estágio particular do desenvolvimento Europeu. O capitalismo, que ele complementou, é uma fonte dominante da ética intracultural no Ocidente moderno. Contudo, essas duas diretrizes de comportamento nasceram e são apoiadas por tendências em uma declaração ideológica, visível na experiência Européia anterior e complementada por outras instituições Européias (acadêmicas, sociais e políticas). Etnologicamente, portanto, não surpreende que sejam totalmente consistentes e compatíveis com o racionalismo e o materialismo que se tornaram cada vez mais difundidos no curso do desenvolvimento Europeu. Isso ocorre porque os germes da ética Protestante e do capitalismo estão contidos na asili da cultura. Eles surgiram como parte de seu “desdobramento natural.”

O comportamento interpessoal entre os povos Europeus (Europeus-Americanos) é competitivo, agressivo, explorador e baseado em um “sobrevivencialismo” definido Europeu [European-defined “survivalism”]; tornado necessário pela natureza da própria cultura. Esse comportamento é, portanto, caracterizado por hostilidade e defensividade. A “personalidade” Européia é acima de tudo um produto de uma concepção de eu que isola o indivíduo. Ele está sozinho e vulnerável, cercado por outras pessoas sozinhas, vulneráveis ​​e, portanto, defensivas. Uma vez passado o nível do substrato ideológico primário da cultura, que tende a unir indivíduos Europeus, não há identificação entre ele e outros indivíduos dentro da cultura. além disso, não há comunalidade. Ele se define como “oposto” deles, e seu interesse como “oposto a” ou “em conflito com” o deles. “Significado,” no nível de valores secundários ou derivados, é determinado pelas necessidades de sobrevivência entre seres hostis. A cultura na qual o indivíduo nasce fornece a ele um conceito individualista e isolador do eu, enquanto falha em fornecer a ele uma base espiritual de inspiração e apoio emocional. Com esses dados, ele não tem escolha a não ser continuar com a tarefa de sobreviver da melhor maneira possível. Ele está, de fato, em uma “selva.” Uma postura inicialmente defensiva logo se torna um comportamento agressivamente ofensivo. O indivíduo percebe que a melhor maneira de garantir sua própria sobrevivência é desarmar os outros; “vencê-los,” “passar à frente,” “avançar,” usurpar os objetos de valor antes que eles o façam, controlá-los. Ele deve fazer todas essas coisas antes que elas sejam feitas para ele (isso se torna a Regra de Ouro).

Para piorar a situação, a cultura prospera com a violência e esta está se tornando mais intensa. A mídia popular é um laboratório para o estudo da necessidade Européia Americana de violência. Eli Sagan coloca a origem do tema da violência na Grécia Homérica; certamente, podemos rastreá-la ainda mais na fonte da cultura Européia. Sagan diz: “Culturalmente somos filhos da Grécia;” Como ele poderia chegar a essa conclusão? Pode-se dizer que a Europa é a filha cultural da Grécia, mas é absurdamente Eurocêntrico dizer que o resto da população do mundo o seja.

De qualquer forma, Sagan analisa especificamente a cultura Grega antiga e descobre que “a fé na eficácia da violência era uma crença central no sistema de valores Grego,” e que “a violência não era apenas um dos muitos fatores importantes, nem era uma expressão incidental da cultura. ” * Em vez disso, em sua análise, “a forma característica de imoralidade e agressão — uma ambivalência primária — na cultura Grega era um compromisso com a violência sádica, um amor pela matança . . .”*1

[ * — Eli Sagan, The Lust to Annihilate: A Psychoanalytical Study of Violence in Ancient Greek Culture, Psychohistory Press, New York, 1979, p. 4.]
[ *1 — Sagan, p. 3.]

Sagan usa a teoria psicanalítica e o exame da literatura Homérica, principalmente a Ilíada, para basear seu argumento. Sagan chega a uma conclusão diferente daquela que, segundo Freud, está implícita no complexo de Édipo. Sagan se refere ao “complexo” como o “útero da antiguidade,” * então usa essa explicação do desenvolvimento da psique para explicar a ambivalência Grega em relação à violência e a necessidade de representá-la excessivamente. O complexo de Édipo é centrado no homem. A sociedade Grega também. (Portanto, é claro, a teoria Freudiana também o é, nesse sentido.) Sagan, portanto, sente-se justificado ao examinar esse processo cultural da perspectiva masculina.

[ * — Ibid, p. 23.]

O complexo de Édipo envolve sentimentos sexuais em relação à mãe e sentimentos competitivos em relação ao pai. Agressivamente, o filho homem, segundo Freud, deseja substituir (matar) o pai. Ao mesmo tempo, ele o teme. Na visão de Freud, uma vez que a sexualidade da criança se concentra em seus órgãos genitais, ele deseja castrar seu pai e teme ser castrado por ele. De fato, o complexo de Édipo se resolve em medo da castração. É nesse ponto que Sagan discorda de Freud. Ele argumenta que esse medo imobilizaria permanentemente o garoto, nunca permitindo que ele se tornasse homem. Em vez disso, a resposta “saudável” é que o menino seja capaz de “imaginar-se” possuindo “sua mãe e tornando-se ou” incorporando” seu pai, ou seja, assumindo seu papel. “Incorporar seu pai” significa que a autoridade moral de seu pai se move dentro do menino; advertindo, punindo e fazendo demandas. De fato, esse “pai interior” se torna a consciência ou o “supergeo.”* Segundo Sagan, essa imaginação permite que a criança amadureça. Se a criança nunca conseguir imaginar a realização de seus desejos, eles retornarão continuamente, nunca permitindo que ela se torne adulta, impedindo-a de desenvolver uma consciência moral interna, ou seja, o “superego.”

[ * — Ibid, p. 35.]

Segundo Freud, a atitude “feminina” se desenvolve em um menino quando ele reage passivamente ao complexo de Édipo, querendo tomar o lugar da mãe e se tornar o objeto de amor do pai. O complexo de castração tem esse efeito.*

[ * — Ibid, p. 36.]

Sagan argumenta que quanto maior a capacidade de um garoto para imaginar a realização de seus desejos Edipianos, mais “masculina” será sua posição; “menos será sua postura passiva em relação ao pai e a todos os homens em posição de autoridade.” *

[ * — Ibid, p. 36.]

Ele argumenta, portanto, que existe uma conexão entre a homossexualidade masculina Grega e o medo de agressão Edipiana.*

[ * — Ibid, p. 37.]

Os mitos permitem que as pessoas imaginem o que não podem fazer, continua Sagan. Édipo mata seu pai e casa com sua mãe; Zeus derruba seu pai, Uranos. Na visão de Sagan, esses mitos têm uma função saudável e psicocultural. Mas a mensagem consistente de Homero é que a rebelião contra a autoridade leva ao desastre. Sagan diz que os Gregos consideravam ofensas contra o pai como o maior pecado; arrogância. Isso é claramente um reforço da visão de mundo patriarcal. Para Sagan, o comportamento violento de Aquiles, quando falha em sua rebelião contra Agamemnon, é como a birra de um menino, que ameaça levar a cultura “de volta” a um estado de barbárie.*

[ * — Ibid, pp. 41-42.]

Finalmente, Sagan tenta usar tudo isso como uma base sobre a qual construir uma explicação sobre a “prevalência do sadismo gráfico” na Ilíada. Ele faz a mesma pergunta sobre a sociedade Européia Americana contemporânea;

Por que casais bem vestidos da classe média vão ao cinema para assistir a cenas gráficas de balas de metralhadora perfurando o corpo de alguma vítima infeliz ou um grupo de garotinhos jogando gasolina no corpo de um abandonado antes de incendiá-lo? Por que nossa cultura voltou ao globo ocular destacado e às entranhas internas [inward guts]? É razoável supor que a escalada do sadismo gráfico nas artes populares de nossa sociedade indique que estamos passando por uma situação cultural semelhante à enfrentada pela sociedade Homérica.*

[ * — Ibid, p. 59.]

Ele conclui que a violência excessiva na vida e na cultura popular dessas duas sociedades relacionadas é causada por “um conflito dentro do sistema de valores da cultura.” Para Sagan, a “consciência” da Grécia antiga, como a da Euro-América contemporânea, “antecipa” o comportamento de seu povo. A sociedade se recusa a implementar os objetivos morais que estabeleceu para si mesma.” os sussurros do superego exigem uma nova ordem de sublimação da agressão . . . . O ego se torna mais violento, a fim de se proteger contra as demandas da consciência. ” * “Quando aqueles em uma cultura não fazem o que a consciência exige, a tensão aumenta ,” e as pessoas respondem à tensão fugindo do conflito. Édipo fugiu do problema para o coração do problema.” O conflito se origina de problemas relacionados à agressão legítima, diz Sagan. A saída do problema resulta em uma cultura popular preocupada com a violência. *

[ * — Ibid, p. 59.]

A brutalidade vicária e fantasiosa dos filmes serve para tornar irreal toda violência. A violência real em nossa sociedade, dirigida a pessoas reais, passa despercebida.”*

[ * — Ibid, p. 60.]

O sadismo da Ilíada, na visão de Sagan, indica que a cultura não estava à vontade com sua consciência.

A explicação de Sagan é interessante, até útil, mas é baseada em uma suposição incorreta. A cultura Européia/Européia Americana não tem “consciência” no sentido em que os povos majoritários usariam esse termo. Ela possui códigos ou normas “morais” sobre o comportamento em relação àqueles a quem reconhece como “humanos,” mas isso não é uma “consciência,” é um “superego” que funciona para proteger a máquina; isto é, para proteger a cultura de si mesma. A consciência se origina em idéias sobre o que é certo e errado, que por sua vez estão relacionadas ao núcleo ideológico da cultura. A ideologia das sociedades de origem Européia é a de que tudo funcione a serviço do poder.

Sagan está correto: existe um conflito básico, mas o conflito resulta da visão de mundo individualista e materialista extrema da cultura. Esses termos são tão fortes que agem em oposição às necessidades, mesmo de uma ordem social Européia — de uma consciência Européia. Esse é o único conflito dentro da asili Européia: consciência individual versus consciência Européia. É difícil para os Europeus tratar outros Europeus de forma não agressiva. Essa é a fonte da tensão “moral,” comportamental. O superego, para usar o termo de Freud, da cultura então instrui seus membros a dirigir agressões violentas inaceitáveis ​​contra seres “não culturais” fora da cultura; “comunistas,” “doidos,” “negros,” [“communists,” “gooks,” “niggers”] etc. Nesse nível, o conflito está resolvido. Tal violência, como os filmes, não é experimentada como violência, nem a violência dirigida aos Africanos na América. Sagan é uma vítima da ética retórica. Sua explicação atribui a essa “ética” uma função que ela não possui. isso embaça sua visão, para que ele possa dizer dos Estados Unidos: “temos um ideal de amor, uma visão moral.” * Mas nós, que temos sido vitimados, sabemos que isso é uma mentira.

[ * — Ibid, p. 216.]

A ética Ocidental é o epítome do egoísmo. Ao contrário da expressão verbal da ética retórica, não é considerado imoral no Ocidente agir em seu próprio interesse às custas do bem-estar dos outros; antes, o egoísmo, a competitividade, a exploração de outros são necessários para a sobrevivência, ditados pela ideologia da cultura, indicando, portanto, padrões de comportamento “morais” (aceitáveis, incentivados). Essas características representam um comportamento moral no contexto da cultura Européia (Euro-Americana), na medida em que são sancionadas por todos os aspectos da cultura, e o indivíduo dentro dela é condicionado a manifestá-las. Os bem-sucedidos “portadores da cultura” da Europa (como Weber coloca) possuem essas características. O verdadeiro “homem Ocidental” é a pessoa mais competitiva e agressiva. Enquanto a pessoa com menos sucesso na cultura, que de maneira alguma determina o que o Ocidente se torna, é caracterizada por humildade e amor, ou seja, identificação e conseqüente respeito pelas pessoas ao seu redor, resultando em não agressividade (paz interna). Essa pessoa é espezinhada pela cultura Européia. Ela é considerada “sem valor.” Além disso, ela é “antiética” na medida em que tenta desafiar o comportamento normativo sancionado pela cultura como um todo.

Uma pessoa como essa deve “possuir” uma concepção radicalmente diferente de si [self] do que aquela que a ideologia Européia oferece e a qual os membros da cultura são inculcados. Será de admirar, portanto, que essa pessoa seja rara nas sociedades de origem Européia? Pois, como Kovel diz, “a cultura é organizada em conjuntos de símbolos que são congruentes com a estrutura das personalidades dentro dela.”* A personalidade descrita pela antiga declaração Cristã ou ética retórica é de fato incongruente com a cultura Européia. Essa pessoa contradiz a asili e age a partir de um utamaroho diferente. Pode tal pessoa existir?

[ * — Kovel, p. 129.]

Um eu que deve ser distinto para poder conhecer, torna-se emocionalmente um eu que percebe valor em termos de si mesmo em isolamento. Este não é o contexto natural para a criação de valor humano — que normalmente é criado a partir de um compromisso emocional compartilhado. Os valores do indivíduo Europeu são, portanto, necessariamente materiais. Eles não são verdadeiros valores “humanos.” Esse eu é sozinho, receoso, defensivo e agressivo. Aquisição, acumulação fanática e exploração mútua são meramente os resultados lógicos e racionais de tal percepção da realidade. Por causa da concepção do eu — os valores de uma “individualidade” e “liberdade” definidas na Europa — que a cultura gera, a personalidade luta por uma segurança não fornecida por sua cultura, em uma arena da qual essa nunca pode vir. O acúmulo material se torna a ferramenta de garantia contra as hostilidades e ataques de outras pessoas. O indivíduo fica obcecado com as possibilidades negativas ameaçadoras do futuro — com acidentes e com a morte. Ele vive em uma cultura doente com tanatofobia, e que lhe oferece seguros “contra” todo tipo de possibilidade física ou material imaginável, mas sabendo que nenhum ganho financeiro pode redimir sua alma. Ele é verdadeiramente um homem Faustiano — mas ele não escolheu ser. A “escolha” já está implícita na asili da cultura: o núcleo ideológico e biocultural.

A cultura Européia, portanto, falha na função primária de uma construção cultural, isto é, em fornecer ao ser humano a segurança emocional trazida pela comunhão espiritual. Esse sentimento de segurança, que o Europeu falha em alcançar, nas culturas majoritárias, é criado a partir da espiritualidade das inter-relações humanas e de um conceito de valor humano compartilhado; uma arena que transcende o material. A cultura Européia é uma cultura com uma base ideológica não espiritual. Essa característica essencial e definidora permitiu que ela se tornasse a cultura mais bem-sucedida materialmente, a mais agressivamente política, a mais cientificamente racional e a mais psicopatológica que o mundo já conheceu.

Ela é ao mesmo tempo a única cultura que fornece pouca ou nenhuma fonte de bem-estar espiritual ou emocional para seus membros. Carrega pouca tradição de percepção do espírito humano e praticamente nenhum conhecimento da alma humana. É atrofiada em direção a realidades não humanas. A cultura Européia apresenta ao indivíduo que ela produz apenas as alternativas de materialismo, cientificismo e racionalismo, enquanto que o que ele precisa é da paz interior que vem com a comunhão (fusão) com os outros, o senso de unicidade e a identificação emocional com outras pessoas. O que ele precisa é de “amor.” Como Kovel diz, “o estado atual de nossa cultura é inadequado para atender a plena necessidade humana de suas pessoas.”*

[ * — Ibid, p. 167.]

Usando os conceitos sugeridos por Alexis Kagame e interpretados por Janheinz jahn, a cultura Européia, como um Kuntu (modalidade estruturada) opressivo, destrói a Muntunidade (estado de ser humano) de seus participantes, porque se baseia na valorização do Kintu (objetos materiais).*

[ * — Alexis Kagame, La Philosophie Bantu-Rwandaise de l’Etie, Arson, Bruxelles, 1956.]

As características que discutimos são basicamente aquelas que determinaram o comportamento interpessoal Europeu. As instituições e formas da cultura podem ser entendidas como conjuntos estruturados de regras que se baseiam nessas normas e atuam para regular o comportamento dos indivíduos, de modo a manter um sistema de apoio ao seu comportamento intercultural. Em outras palavras, o que explica a sobrevivência da cultura como um todo coeso é seu objetivo ideológico de controle e subjugação de todos os outros povos e o compromisso relacionado à superioridade tecnológica e material. Um amigo meu ressalta que os Europeus realmente destruiriam a si mesmos se não tivessem “outros” para destruir. Da mesma forma, a função integradora da cultura não poderia sobreviver por tanto tempo às tendências desintegrativas de uma ética individualista, se não fosse pelo objetivo imperialista voltado para o exterior e pela busca pela supremacia mundial. Essa busca é definitiva para o utamaroho Europeu e a satisfação emocional (esta mesma uma negação do espírito) com a qual membros da cultura Europeia se identificam.

Por causa do vazio espiritual da cultura Européia e de seu individualismo ideológico, o capitalismo conseguiu se firmar e florescer; por sua vez, ele apoiou esses temas. E devido ao sucesso do capitalismo no Ocidente, os conceitos de liberdade e posse individual foram reforçados, enquanto qualquer tentativa de descobrir a espiritualidade humana foi desencorajada. A essência do espírito humano é inseparável do comunalismo. O ethos do capitalismo pressupõe e prospera no individualismo “moral” e na autonomia — a negação da espiritualidade humana.

Os temas que apontei se repetem em outras descrições da cultura Européia, não apenas nas análises mais críticas, mas também são reconhecíveis nas descrições não críticas e chauvinistas. A justaposição das análises de Joel Kovel e Robin Williams ajuda a demonstrar como traços semelhantes da sociedade Ocidental aparecem tanto de uma perspectiva crítica quanto não-crítica.

Da perspectiva de um entendimento crítico do conceito Europeu de eu, é possível entender melhor a ideologia do individualismo e o valor assumido relacionado à liberdade humana, conforme interpretado na cultura Européia. O ideal de “democracia,” um provérbio [by-word] do nacionalismo Americano, é visto como a tradução do conceito Europeu de eu [self] em uma declaração de valor particularmente Européia, em vez de um objetivo humano universalmente válido. A descrição de Robin Williams do tema ou valor da democracia é apresentada em termos que tentam obscurecer a questão de sua singularidade na cultura; mas mesmo nesses termos, é claro que os valores expressos não têm significado universal. De fato, a “democracia” Ocidental é necessária para amenizar o medo e a desconfiança que os indivíduos têm um do outro.

Assim, os principais temas da cristalização gradual do principal credo democrático incluíram a igualdade de certos direitos formais e a igualdade formal de oportunidades, uma fé no estado de direito impessoal, racionalismo otimista e individualismo ético. . . o tema da democracia era, concretamente, um acordo sobre o processo de distribuição de poder e resolução de conflitos. A democracia liberal, modelo Americano, surgiu em reação a uma época em que as grandes ameaças à segurança e à liberdade eram vistas em um governo central forte e autocrático. O novo sistema foi concebido de forma a limitar e controlar o poder governamental centralizado e estabelecer um padrão ordenado para concordar em discordar [for agreeing in disagree]. Tal visão pluralista do poder social era clara e explícita em questões de procedimento, embora deixasse os fins comuns da sociedade em grande parte indefinidos.*

[ * — Williams, p. 493.]

A marca Européia de democracia — uma contrapartida do conceito Europeu de liberdade — está relacionada ao desejo de controlar e exercer poder sobre os outros, o que motiva muito do comportamento Europeu. A democracia é vista como o sistema que garante a “liberdade” do indivíduo para fazer o que ele deve em nome de seu próprio interesse, que por sua vez ele interpreta como o controle de outros. Esse impulso de poder explica o fanatismo que caracteriza o comportamento Europeu, bem como as instituições que o orientam e regulam. não há compromissos nas estruturas da cultura Européia; eles não são temperados por outras considerações que não as “profanas,” materialistas nas quais se baseiam. Uma vez que o espírito humano foi desvalorizado como uma determinante e inspiração da cultura, o caráter da própria cultura começou a se mover cada vez mais na direção da negação desse espírito. Uma “racionalidade” (no sentido Weberiano) tornou-se sinônimo de valor Europeu, as formas de cultura Européia tornaram-se racionais em excesso. A cultura é dada a extremos e incentiva atividades intensamente unidirecionais por parte de seus participantes. O esquilíbrio está perdido. O senso de poder, então, torna-se não apenas desejável ou prazeroso às vezes, ou o objetivo de poucos, mas é uma diretiva incontrolável e predominante de comportamento. Thedore Roszak descreve o comportamento Europeu desta maneira:

O pecado original em que a ciência nasceu: arrogância — finalmente se torna uma pandemia. “Temos agora,” anuncia o chefe de um destacado grupo de reflexão [think tank], “ou sabemos como adquirir a capacidade técnica para fazer quase tudo que quisermos . . . se não agora ou em cinco ou dez anos, certamente em 25 ou 50 em 100. “

E sereis como deuses . . .”

Nosso presidente ainda faz juramentos sobre as bíblias; nossos astronautas nos lêem as escrituras do espaço sideral. Mas a marca da besta está nos apetites e aspirações que governam nossa conduta coletiva: desequilíbrio demoníaco — distração sem fim por infinidades profanas de desejo: produzir e devorar sem limites, construir grande, matar grande, controlar grande. Tudo vale — mas onde tudo vale, nada conta. Nenhum padrão natural dá disciplina. A estratégia de Mefisto com Fausto: tornar a ausência de restrição mais importante do que a presença de propósito; fazer da liberação a isca do niilismo. Até que, finalmente, mesmo o homem na rua aceite o impensável calmamente, talvez tente uma ou duas voltas Faustianas. Buchenwald não era administrado por funcionários do banco — por bons funcionários do banco, funcionários responsáveis ​​com unhas limpas? E My Lai [no Vietnã] massacrada pelas estrelas do basquete do ano passado no ensino médio: garotos legais, “nem tanto assim . . . realmente?“*

[ * — Theodore Roszak, ed., Introduction to Source, Harper and Row, Colophon, New York, 1972, p. xvii.]

Este é o resultado da dessacralização do universo através do utamawazo Europeu e da arrogância que o acompanha.

A caracterização de Williams dessa obsessão é digna de nota. Ele o relaciona corretamente às concepções cosmológicas e ontológicas Européias, mas depois disfarça todo o sentido ou caráter dessa característica essencial, traduzindo-a nos termos eufemísticos positivos do jargão Europeu. Fanatismo se torna “obstinação” [“single-mindedness”]. Sua descrição tem as marcas da expressão chauvinista Européia. Williams diz,

Em suas formas mais explícitas e altamente elaboradas, esse tema envolve uma nítida separação entre o homem e a natureza, por um lado, e entre o humano e o divino, por outro. Nesta visão, no entanto, o homem é filho de Deus, ou carrega uma centelha ou mandato divino. Colocado contra o mundo, ele está acima de todas as “criaturas menores.” Ele tem um privilégio especial para ocupar a terra e “dominar” a natureza inanimada e outros seres vivos. Separado da onipotência e onisciência atribuídas à fonte ativa da criação, ele se esforça para alcançar poderes infinitos — imortalidade, bondade perfeita, controle total. O comprometimento pessoal real com essa visão de mundo Faustiana ou Prometeana definiria uma orientação prática para a vida. E a expressão tangível de tal vontade de fazer e dominar deve estar concentrada na proposição de atividades semelhantes a tarefas. Essa atividade necessariamente tenderia a ter uma qualidade “unilateral” altamente seletiva. *

[ * — Williams, p. 493.]

O significado etnológico do capitalismo é, obviamente, que ele é um sistema de ética que regula o comportamento dos indivíduos em direções definidas e de acordo com uma imagem consistente do ser humano e de sua própria relação com os outros. É a declaração e a criação de valores e ideais específicos de comportamento. Mumford apresenta sua visão da “moralidade” do capitalismo, e sua discussão aponta para o modo como o capitalismo reforça a tendência Européia inerente ao excesso, à extremidade e ao fanatismo. É um sistema de acumulação ilimitada que dá a ilusão e, em muitos sentidos, a realidade do poder sempre crescente. Mumford enfatiza a “novidade” da ética capitalista (como Weber), mas eu enfatizaria o sentido em que ele encorajou e forneceu outro veículo para a expressão da insaciável “vontade de poder” Européia que já era reconhecível, tanto como potencial quanto como realidade, no início do utamaroho Europeu. Em outras palavras, a asili (semente cultural), uma vez plantada, exigia um utamaroho (força-energia) para sua realização, que veio a ser expressa na ideologia do capitalismo.

O capitalismo deu uma nova e intensa forma às características que já diferenciam a cultura Européia de outras culturas do mundo. Kovel descreve a oposição ideológica entre o capitalismo Europeu e o sistema tradicional não-Europeu de presentear [gift-giving]. A conquista final do sistema capitalista foi a conclusão de um processo que começou quando a abstração do dinheiro foi usada para substituir objetos de valor. O próprio valor no capitalismo torna-se definido em termos da acumulação de dinheiro; isto é, a representação do poder sobre os companheiros. Nesse sistema, a “vontade de poder” é sancionada institucionalmente.

As culturas majoritárias — ou seja, as culturas do Primeiro Mundo ou culturas primárias — refletem um conceito inerente do eu, no qual a pessoa identifica seu bem-estar com o de outras pessoas em sua comunidade. Naturalmente, isso não quer dizer que o egoísmo e os conflitos de interesse não existam. É dizer, no entanto, que as concepções epistemológicas apóiam a identificação e não a separação, e o utamaroho (força vital; personalidade coletiva) é muito menos agressivo e mais dependente de cuidar das relações comunitárias. Portanto, os mecanismos que apóiam o comunalismo são bem desenvolvidos.

O sucesso do capitalismo requer uma separação cada vez maior entre o eu e o interesse comunitário e de outros indivíduos. O capitalismo, então, é inteira e completamente Ocidental, na medida em que se baseia no utamaroho e na concepção de eu Europeus — que ele gera. E é somente dentro do contexto do capitalismo como sistema econômico que o conceito Europeu peculiar de “liberdade individual” assume significado. *

[ * — Ver Kovel, pp. 114-115, para uma discussão prolongada deste ponto.]

Um dos aspectos mais valiosos do trabalho de Kovel é a maneira como ele inter-relaciona o caráter das instituições Européias com as formas de pensamento Européias, um objetivo primário de nosso estudo. Ele diz:

Abstraindo e quantificando tudo ao seu alcance, o âmbito do mercado poderia ser ampliado para incluir o mundo inteiro. As coisas abstraídas podem receber um número e os números podem ser equiparados entre si; portanto, o valor mágico das coisas materiais poderia ser amplamente difundido para elementos do mundo que nunca haviam sido bem considerados. O mundo inteiro tornou-se materializado em conseqüência dessa abstração. O processo mental básico do Ocidente deu seu estranho fruto. E foi uma operação potente, pois agora toda a energia direcionada para a simples aquisição de riqueza poderia ser direcionada para a geração de riqueza. Com essa nova mística, o processo de ganho pode ser contínuo. A produção entrou no mundo através dessa redução de tudo à sua qualidade abstrata e através da união dessas abstrações em relacionamentos racionalizados. O que foi racionalizado, no entanto, foi o puro desejo de obter matéria sem vida, sem prazer, e abstraída.*

[ * — Ibid, p. 116.]

O capitalismo forneceu uma estrutura ideológica na qual o Europeu podia dar vazão total ao seu desejo de poder. Seu valor era que era ilimitado — oferecendo objetivos infinitos. Ele acelerou a desespiritualização do mundo dos Europeus na medida em que o “materializava” para eles. O modo de abstração do qual a empresa capitalista depende — este próprio a negação do significado existencial da humanidade — já estava lá, um tema que surgira nos primórdios do desenvolvimento Ocidental: o desdobramento de sua asili.

Em termos concretos, os padrões característicos do comportamento intracultural Europeu e sancionados pelo sistema capitalista foram aqueles ditados por um relacionamento hostil. Na sociedade Ocidental Européia, cada indivíduo considera seu interesse como definido distintamente de e em oposição ao de todos os outros. As associações humanas são frequentemente apenas compromissos políticos e estratégicos. Eles são de natureza transitória e servem a algum fim específico. Agrupamentos humanos “naturais” e atemporais (por exemplo, a família e outros) tendem à desintegração, enquanto a máquina política se fortalece. O sucesso no capitalismo é auxiliado pela desconfiança dos outros; maior ganho é possível graças à hipocrisia e ao engano, ao controle emocional e ao distanciamento [detachment]. O empresário de sucesso é competitivo, agressivo, aquisitivo e explorador. Nenhum objeto isolado simboliza o valor Europeu de maneira tão poderosa quanto a abstração que é o dinheiro; assim o sistema que o controla e gera se torna o aspecto dominante da cultura.

O materialismo, a negação ideológica da espiritualidade e sua significância, é apoiado pelo capitalismo, mas está enraizado nos primórdios do impulso racionalista Europeu em direção ao desenvolvimento tecnológico, que talvez se origine nos primórdios mutantes do caucasiano, na luta pela sobrevivência nas cavernas da Europa (Diop) e nas concepções ontológicas iniciais do Europeu. O objetivo do ser humano é controlar a natureza. Natureza é matéria; a quantidade de matéria (objetos materiais) que se controla (possui) indica a quantidade de poder (valor) que se possui. Mais uma vez, a caracterização de Robin Williams desse tema na vida Européia tenta mitigar a extensão e o efeito desse mal-estar na cultura.

Certamente, um tipo de “materialismo” pode emergir em uma sociedade, mesmo que este não seja inicialmente um critério primário de conveniência — no sentido de que a simples disponibilidade de confortos e a publicidade incessante usada para vendê-los criam uma pressão social para se concentrar esforço e atenção sobre eles. É dessa maneira derivada que uma economia de riqueza pode drenar energia e comprometimento de valores que estão mais altos na hierarquia nominal de preferências.*

[ * — Williams, p. 471.]

Williams “explica” a falta de valores espirituais na vida Americana, como se esta não estivesse intimamente ligada às tendências dominantes da tradição cultural Européia; como se o materialismo não fosse de fato uma característica da ideologia Européia. Ele não usa o conceito de asili e, portanto, nunca atinge o núcleo ideológico.

Willie Abraham apresenta uma visão muito diferente do assunto. Sua visão se aproxima do significado ideológico do “materialismo” na cultura. Abraham diz que “a síntese do homem que o torna um animal econômico é acompanhada por uma cultura que marcou tropismos em direção ao consumo e ao materialismo.”*

[ * — Willie Abraham, The Mind of Africa, University of Chicago Press, Chicago, 1962, p. 34.]

Na sua opinião, o “materialismo” afeta até a teoria social Ocidental: “A pesquisa social na Europa (…) teve uma base materialista intransiente; isso ocorre porque a mente Européia é materialista.” * Talvez isso explique a incapacidade de Williams de reconhecer a verdadeira significância ideológica do materialismo na vida Americana.

[ * — Ibid, 193.]

Abraham discute a cultura em termos do que ele chama de suas três “facetas:” a material, que inclui sistemas e tecnologia de propriedade; o institucional; e isso se refere ao valor. A cultura material, diz ele, tende a ter um efeito corrosivo no aspecto do valor da cultura. Na África, o aspecto do valor é dominante e enfatiza o que ele chama de “função integradora da cultura.” Ele adverte que os Africanos devem evitar os “excessos que foram associados a uma expansão da cultura material na Europa.” * É a esse processo da cultura que o materialismo na vida Americana Européia contemporânea está vinculado.

[ * — Ibid, 31.]

Em termos concretos, mais uma vez, o comportamento Europeu é caracterizado pela luta aberta por bens materiais, que simbolizam valor. A posse desejada desses objetos atua para motivar o indivíduo na cultura de uma maneira que objetivos não materiais não. O ganho material é um fator mais poderoso na determinação do comportamento do que realizações como realização espiritual e amor. O que é irônico e trágico para os Europeus é que sua preocupação final (não racional) é de fato com a realização espiritual, mas eles foram iludidos pelos pressupostos de sua tradição cultural em procurá-la nos “lugares errados.” Eles foram ensinados a “resolver” de maneira errônea e superficial o conflito básico entre a vontade de poder e a vontade de amar em uma vontade de poder fanática e desordenadamente destrutiva. Nesta visão distorcida, ter poder significa que o amor não é necessário. E, é claro, é precisamente o amor que eles precisam e realmente procuram. O ciclo é interminável, e eles são colocados na esteira, lutando pelo que nunca podem alcançar — pela conclusão do eu: Yurugu [ser incompleto]. E a única coisa que “progride” em uma direção linear, e não resolve, é a destruição do espírito humano causada por essa ideologia. Como Kovel diz,

Vemos um sistema sempre acelerado de esforço e desejo, que se enche de prazeres materiais que evaporam dentro do eu abstraído . . . . A abstração e a divisão ganham poder sem consciência e, portanto, atendem às necessidades da repressão. Mas eles também diminuem o eu e progressivamente o cortam externamente do que é feito ao mundo.*

[ * — Kovel, p. 158.]

Williams fala sobre o valor da “eficiência” e “praticidade” na cultura Ocidental. * Esse tema, que é uma determinante tão forte do comportamento individual e um critério importante pelo qual o valor e a apreciação são julgados, está relacionado à ideologia do evolucionismo e à idéia de progresso. Esse compromisso ideológico vai além do comportamento intracultural e afeta as atitudes dos Europeus em relação a outras culturas que não compartilham sua ênfase na “cultura material.”

[ * — Williams, p. 465.]

“Eficiência” é um valor não humano; é uma afirmação da relação meio-fim característica da “racionalidade” Weberiana. Esse tipo de “racionalidade” dá forma a todas as instituições da cultura Européia, pois elas são racionalmente organizadas para fins tecnológicos e materiais; objetivos não humanos.

Williams nos apresenta uma caracterização não crítica e não sintética do lugar da ciência e do racionalismo na cultura americana Européia. Seus comentários eufemísticos são representativos dos tipos de obras que ajudaram a prender a mente Européia na prisão do “cientificismo.”

Em termos gerais, a ênfase sobre a ciência na América refletiu os valores da tradição racionalista-individualista. A ciência é disciplinada, racional, funcional, ativa; requer diligência sistemática e honestidade; é congruente com a ênfase dos “meios” da cultura — o foco de interesse no pragmatismo e eficiência e a tendência de minimizar os absolutos e os ultimatos. As aplicações da ciência consideram profusamente os esforços para o domínio auto-externalizante do meio ambiente. Achamos justo dizer que a ciência é totalmente compatível com uma orientação cultural que tenta negar frustração e se recusa a aceitar a idéia de um mundo fundamentalmente desarrazoado e caprichoso.*

[ * — Ibid, p. 488.]

(Nota: o leitor deve comparar os comentários acima com os de Arthur O. Lovejoy e William James citados no Capítulo 1, “Supremacia do Absoluto, o Abstrato e o Analítico”)

 

Epistemologia e Comportamento
A concepção Européia-Americana do eu como separado dos outros e, portanto, em oposição aos outros, é uma extensão da concepção ontológica Européia do ser humano como sendo contra ou em oposição à natureza. Ao se isolar da natureza, ele consegue construir a ilusão de um mundo desespiritualizado, do qual ele tem controle total, porque ele pode controlar e manipular o material nele com sua ciência e tecnologia. Ao se isolar dos outros, ele se furta de uma fonte de definição emocional e segurança que vem com a identificação comunitária. No entanto, dentro de si, ele isola a parte do eu que considera “apropriada” para ele (porque a associa ao controle e ao poder) daquilo que é “impróprio” (porque representa “passividade” e, portanto, fraqueza). Ele se treina para eliminar a emoção e substituí-la por “razão,” alcançando assim a ilusão de superioridade sobre aqueles que fazem parte da natureza e cuja fonte de poder é o espírito. Esse tema e processo consistente na cultura determina as possibilidades do comportamento Europeu, tanto em relação a “não europeus” (outros) quanto em relação um ao outro.

Começando com a “abstração Platônica,” o modo abstrato passou a dominar e moldar cada vez mais o mundo cognitivo do Europeu. Havelock elogia essa “revolução” — afinal, permitiu que o Europeu realizasse grandes feitos intelectuais. Mas o que é culturalmente significativo são os efeitos negativos de longo alcance desse hábito mental no comportamento Europeu e a inter-relação dessa propensão à abstração com as características da personalidade cultural Européia. Grande parte da teoria psicocultural de Kovel sobre a natureza da cultura Européia preocupa-se com a atividade de “abstratificação” [“abstractification”], e ele vincula a busca Européia pelo puro com a personalidade anal Ocidental. A cultura Européia funciona de maneira consistente para remover o concreto, o emocional e o existencial da consciência do indivíduo e, portanto, de sua realidade vivida. Uma abstração é desprovida de todas as possibilidades humanas e emocionais; desafia a identificação emocional genuína. *

[ * — Kovel, p. 156.]

A “abstratificação,” portanto, como Kovel aponta, contribui para a desumanização e desespiritualização da cultura. Os indivíduos dentro dela podem evitar as implicações concretas e existenciais dos eventos através dos vários mecanismos de abstração, e um subproduto dessa atmosfera criada artificialmente é que ela se torna cada vez mais desprovida de significado. É irônica e tragicamente o caso de que o “eu moderno” (não “moderno” em termos Africanos) que Kovel descreve tenha suas origens culturais no que Havelock chama de “modo Platônico” e uma epistemologia baseada no mecanismo de “objetificação.” “Autonomia moral” (termo usado por Havelock) é uma contradição em termos fora do discurso Europeu. Esta gera a ética de “moralidade” destrutiva, competitiva e agressiva que atinge seu auge no Ocidente. Uma ética racionalista, acompanhada de conceito isolador do eu, é, no contexto das filosofias culturais majoritárias, diametralmente opostas àquilo que é moral, já que “moralidade” — a atitude e o comportamento adequados para com os outros — se baseia no amor ou na identificação, o que exige uma “união com outro.” Essa “união” é um fenômeno espiritual, e não racional, e não pode ser alcançada por um ato de “razão” (concebido como abstraído da “emoção”). É um repúdio à idéia de “objetificação.”

Kovel diz que o resultado do “eu abstraído” é um “mundo interior, que é preenchido sinteticamente. . . .” *

[ * — Ibid, pp. 158-159.]

À medida que nos envolvemos mais na exploração das formas Européias, a “organicidade” da cultura (como Kovel coloca) se torna cada vez mais aparente. Em nossos termos, é o desdobramento da asili que é revelado. A natureza da estética é influenciada pela concepção Européia do eu e pelo substrato materialista e racionalista da cultura. O comportamento e as respostas que caracterizam o indivíduo na sociedade Européia estão causalmente relacionados às concepções epistemológicas e escolhas ideológicas nas quais sua cultura se baseia; assim como em qualquer cultura. A solidão sintomática e severa característica dos Europeus é um efeito da falta de função comunitária de sua cultura. Os Europeus estão ligados entre si em virtude de um utamaroho compartilhado de poder, dominação, supremacia mundial e expansão. A dinâmica cultural interna de agressividade, competição e desconfiança mútua é toda separativa, e não vinculativa. Os impulsos direcionados para o exterior os ligam a uma máquina de agressão tremendamente eficiente. A cultura é extremamente bem-sucedida nesse sentido. A cultura Européia não se baseia em uma visão essencialmente humana. Não atende às necessidades humanas porque não foi “projetada” para isso.

Na visão de Kovel do pensamento Europeu, “se algo no mundo pode ser limpo e puro, e se também pode ser frio e não-sensório [unsensuous], atenderá ao critério da bondade. O que é bom no mundo é identificado com o que é bom na pessoa — não seu corpo, mas sua mente.” *

[ * — Ibid, p. 132.]

As abstrações são “limpas e puras” e também “frias e não-sensórias;” e assim é uma sociedade racionalmente construída; torna-se mais e mais racionalmente construída. À medida que Kovel continua com sua caracterização da vida Ocidental, a relação entre o que descrevemos como o utamawazo Europeu (capítulo 1) e o comportamento cultural Europeu se torna mais aparente.

Uma qualidade primordial determina o que é bom e o que é ruim no mundo analisado: pureza. E dentro de todo o espectro da realidade, um aspecto do conhecimento preenche essa qualidade: abstração. Uma idéia abstrata é uma idéia purificada, livre de informações irritantemente concretas e sensórias. As próprias palavras são abstrações. Os sentidos não sensoriais, visão e audição, são os mediadores da atividade abstrata. O olfato, o paladar e o tato são concretos, sincréticos, incapazes de fazer as distinções sutis necessárias para distinguir o que é abstrato do que é sensório. Abstração significa distância da experiência imediata, a substituição de uma dada realidade sensória por um símbolo relativamente remoto. A visão e a audição são, portanto, os sentidos que melhor atendem à possibilidade de um relacionamento remoto com o mundo. A civilização Ocidental iniciou sua expansão com a descoberta de perspectivas e a perfeição de atividades abstratas, visualmente organizadas e remotas — seja na navegação ou no desenvolvimento de armas de fogo que poderiam matar à distância*

[ * — Ibid, p. 133.]

A cultura Européia começou sua história como uma entidade definível de forma única, não com a “descoberta” desse tipo de perspectiva, mas quando se tornou o mecanismo cognitivo dominante e começou a invalidar outros sistemas de cognição. Eventualmente, tornou-se, de fato, normativa em função, determinando valor e significância. De fato, foi a “perspectiva” (ou o que os Dogon na África chamam de “palavra do lado,” Benne so) que se perdeu, pois os Europeus excluíram a possibilidade de outras metodologias epistemológicas e, portanto, uma grande variedade de experiências. A objetificação tornou-se uma formulação ideológica, que (em combinação com o “desequilibrado” utamaroho Europeu) teve muitos efeitos infelizes. Kovel também é limitado em sua compreensão do significado de “audição”/”som.” Ele não faz a importante distinção entre o auditivo e o visual. A cultura Européia realmente tem uma tendência a rejeitar o ouvido (receber) em favor do olho (controlar). É por isso que a palavra escrita é mais valorizada do que a palavra falada.

Uma ideologia científica era inevitavelmente atraente para a mente Européia. O que eles chamavam de “verdade científica” — uma verdade desprovida de suas implicações humanas — poderia ser transmitida e absorvida fria e racionalmente (“cientificamente”). A extensão do método científico em todos os aspectos da contemplação e experiência humanas foi ditada pelo medo Europeu do emocional-espiritual, que não se presta prontamente à manipulação e controle. A objetificação e o método científico dão a ilusão do tipo de controle e poder que o utamaroho Europeu exige. Na relação circular dos fenômenos culturais, o racionalismo científico passa a moldar o comportamento Europeu, assim como é modelado por ele. O sucesso da cultura vem do fato de que poder é a capacidade de moldar a realidade (Amos Wilson). Portanto, a ilusão de controle se torna uma realidade — onde parece ser mais significativa: política e materialmente.

Kovel diz que a “atividade central” da cultura Ocidental é a “criação, produção, abstração e aquisição racional de propriedade, e a paixão sem alegria que busca cada vez mais avidamente aquilo que retrocede à distância através do processo de busca.” *

[ * — Ibid, 130.]

Através da atividade de “abstratificação,” Kovel vincula o capitalismo, cientificismo, racionalismo, “racismo branco” e o impulso imperialista Europeu. Em seu estudo, Kovel demonstra, através dos termos da experiência cotidiana comum na vida Americana contemporânea, como o método de “abstração” afeta a vida e a percepção dos participantes da sociedade Americana.

São os teóricos que ultrapassaram a impressão do avassalador sucesso material do racionalismo Europeu, cujas obras são mais úteis para classificar as inúmeras implicações e efeitos que esse “racionalismo” teve na totalidade da experiência Européia. A ideologia racionalista Européia “criou” um tipo específico de pessoa que pode se comportar de certas maneiras características. Se a singularidade da cultura não for entendida, as possibilidades positivas de outras culturas serão perdidas e, conscientemente ou não, esse é um objetivo completamente Eurocêntrico. Por esse motivo, assumimos a particularidade da forma Européia e, portanto, a necessidade de explicar seu desenvolvimento, não como resultado de algum processo “universal,” mas pela compreensão de sua asili — uma combinação única de fatores que, em relação circular, gera as personalidades e compromissos ideológicos que formam a matriz de influência.

Essa explicação é ainda mais convincente, pois os Europeus representam uma cultura minoritária extrema. É a percepção de que a Europa é de fato uma cultura na qual a dominação imperial de outros se torna realmente uma “abrangente visão-de-mundo” que é importante. Isso é único no mundo e as características (temas) da cultura Européia — seu “racionalismo,” violência e falta de espiritualidade — não são meras patologias isoladas; antes, essas características estão ligadas entre si em uma matriz de desenvolvimento (asili) que é ela mesma “patológica” no contexto das sociedades humanas. É esse reconhecimento que é para o crédito de Kovel. Ele usa um modelo Freudiano:

Observamos que o poder se acumulou no Ocidente através da junção de energia e razão dentro de um ego cultural. Outras culturas tinham energia, outras ainda tinham o controle, e algumas até combinavam os dois; mas nenhuma cultura levou a combinação a tais extremos. A própria paixão expressa pelo impulso Ocidental ao poder é representativa, em nível cultural, do toque de profundos desejos infantis. Essa cultura, ao mesmo tempo a mais avançada, também é a mais infantil. . . . Quanto mais profundo se retorna à infância, mais profundo e ilimitado se torna o desejo. *

[ *— Ibid, p. 130.]

Nas descrições de Robin Williams, é impossível reconhecer a patologia da cultura Européia, para que obras Eurocêntricas como essa perpetuem sua patologia e contribuam para sua expansão global. Ele ajuda a erigir uma bateria de declarações aparentemente “moralmente neutras” que inibem ideologicamente a compreensão da cultura. Mas seu trabalho American Society, não é uma anomalia. Usei-o como dados culturais, porque é característico do retrato do Ocidente que foi coletivamente pintado pelos mais respeitados teóricos sociais ocidentais — que escrevem sob uma perspectiva Eurocêntrica.

O “Eu” Europeu e o Problema do Amor
Há vários fatores culturais que se combinam e se complementam de tal forma a reforçar e dirigir um estilo particular de comportamento nos participantes da cultura Européia com sucesso. É impreciso dizer que um deles seja “primário” ou generativo na cadeia que eventualmente torna-se a configuração Européia de traços culturais. O que é generativo é a própria asili, o germe/logos da cultura. Joel Kovel, cujos compromissos são a explicação psicanalítica, parece apresentar a etiologia do comportamento Europeu em uma elaboração excessiva da “fantasia anal.” (Veja Capítulo 8 para uma discussão mais aprofundada.) No entanto, não é tão importante se pode-se ou não “provar” rigorosamente que uma determinada teoria da causalidade comportamental seja precisa, mas sim que a abordagem utilizada permita isolar e ligar as características do comportamento Europeu à matriz da cultura Européia. Nós temos tentado uma explicação das características comportamentais Européias que lhes coloca diante de nós, de tal modo que a sua interligação é sentida e a inevitabilidade etnológica do estilo de comportamento Europeu é demonstrada.

Nesta discussão, temos focado na concepção Européia do eu. Da importância da “concepção do eu” gerada por uma cultura para determinar ou influenciar o comportamento de seus membros. A. Irving Hollowell disse,

. . . auto-identificação e noções culturalmente constituídas da natureza do eu são essenciais para o funcionamento de todas as sociedades humanas e . . .  um corolário funcional é a orientação cognitiva do eu a um mundo de objetos que não sejam o eu. Uma vez que a natureza desses objetos é também culturalmente constituída, um campo fenomenal unificado de pensamento, valores, e ação que é integral com o tipo de visão de mundo que caracteriza uma sociedade é fornecido para os seus membros. O ambiente comportamental do eu, assim, torna-se estruturado em termos de um mundo diversificado de objetos  outros que o não o eu. *

[ * — A. I. Hallowell, “Ojibwa Ontology, Behavior, and World View,” in Primitive Views of the World, Stanley Diamond (ed.) Columbia University Press, New York, 1966, p. 50.]

Portanto nossa discussão sobre o comportamento Europeu fundamenta-se na discussão anterior sobre o utamawazo Europeu (Capítulo 1).

Os comentários a seguir por Norman O. Brown sobre “o eu e o outro,” ilustram ainda mais a maneira em que a concepção Européia do eu influencia o comportamento cultural Europeu. Ao discutir pontos de vista de Freud, Brown diz,

Um exame mais aprofundado das próprias premissas e argumentos de Freud sugere que há apenas uma relação de amor aos objetos no mundo, uma relação do ser-um-com-o-mundo, que, embora mais perto da relação (identificação) narcísica de Freud, também está na raiz de sua outra categoria de amor possessivo (objeto-escolha). *

[ * — Brown, Life Against Death, p. 42.]

Da experiência humana do “amor,” ele diz: “Se o amor visa apenas a identificação com os objetos no mundo, então possessividade não é uma característica essencial do amor.” * Ele continua: “O objetivo de Eros é a união com objetos fora do eu; e, ao mesmo tempo, Eros é fundamentalmente narcisista, auto-amoroso.” Ele fala da “expansão do eu,” e de “unificar o nosso corpo com outros corpos no mundo.” Brown, então, como os teóricos Europeus invariavelmente fazem, prossegue para “universalizar” o que é essencialmente a psicologia Européia. *2

[ * — Brown, Life Against Death, p. 42.]
[ *2 — Ibid, pp. 45, 48, 52-53.]

Enquanto a concepção de amor como o desejo e a capacidade de fundir-se ou unir-se com “outro” pode ser precisa, “expansão” do eu não é o mesmo que a unificação do eu e do outro. E isso é crucial para entender as problemas que afligem, não a “humanidade,” mas o Europeu especificamente. Se a capacidade de amar baseia-se na capacidade de identificar o “eu” com “outro,” então está claro nessa discussão que a cultura Européia não fornece uma base para a experiência-amorosa; Em vez disso, ela impõe um utamawazo que inibe (desvaloriza) a identificação e participação emocional e uma ética que complementa e é consistente com esta estrutura cognitiva. Voltamos ao ponto de partida, a Platão. Para ele,  “conhecer” era mais importante do que “amar” e “conhecer” significava conhecer como “objeto,” algo separado e distinto do eu. Europeus, talvez, não amem a si mesmos e não têm nenhuma base a partir da qual amar “outros,” Norman Brown diz,

Os escritos posteriores de Freud atribuem ao ego humano uma tendência básica a “reconciliar,” “sintetizar,” “unificar” os dualismos e conflitos com os quais o ser humano é assolado; Abraham estabelece o objetivo de atingir um estágio “pós-ambivalente”: Ferenczi pede uma “fusão instintiva fresca.” Mas a possibilidade de refusão instintiva pós-ambivalente deve permanecer hipotética até que tenhamos examinado a causa da ambivalência e a natureza do antagonista de Eros. *

[ * — Ibid, p. 54.]

A mente Européia se esforça para encontrar meios racionais para a síntese, mas é o gênio do Africano e culturas majoritárias que seu(s) utamawazo(s) implicitamente “reconciliam” dicotomias que, para o Europeu, são inevitavelmente irreconciliáveis. Através das modalidades espiritualistas de comunhão ritual e ancestral, por meio da sacralização da vida, eles alcançam o que teorias racionalistas não podem oferecer. É empregando os modos de participação e identificação, ao conceber o eu como corretamente junto a outros, de fato, tal como definido em termos de outro, e valorizando resposta emocional que a unidade e a harmonia são alcançadas. Ambivalência e ambigüidade só se tornam assustadoras e culturalmente destrutivas no contexto Europeu, que não pode lidar com o paradoxo. Culturas majoritárias contêm mecanismos sofisticados que transformam estas dimensões da experiência humana em uma outra forma de unir as pessoas espiritualmente.

Tenho dito que o princípio subjacente que explica e une os vários aspectos da vida e do comportamento Europeus é a necessidade de controlar; esta está diretamente relacionada com e facilmente explica o problema Europeu com amar. Enquanto o “controle” representa um valor, o “amor” não. Em termos de concepção Européia da emoção humana, eles são opostos. Nesta visão, se ama na medida em que se desiste do controle das emoções; controla-se por não deixar-se amar. A experiência de controle baseia-se na rígida separação e distinção entre o eu e o outro; amor é a experiência do eu como sendo fundido com outro. A falta de controle é repugnante para o senso de eu Europeu; concebido apenas como adequadamente distinto do outro.

Mas esta não é uma concepção universal de amor. É romantizada (irreal), e se origina da inadequação do eu Europeu. O conceito Africano de amor, enquanto mais generalizado (isto é, inclui relações mutuamente respeitosas e recíprocas de muitos tipos), é apoiado pelas estruturas dentro da cultura e é, ao mesmo tempo, não obsessivo. Nós não arriscamos a perda do eu nas relações amorosas, porque o amor é o estado natural de ser: oferecido antes do nascimento, garantido por naturezas de base de parentesco da cultura e, portanto, tido como certo. Não é produtor de ansiedade. É natural. Michael Bradley diz que a concepção Européia do amor romântico é necessário para superar a intensa hostilidade entre os sexos entre os Caucasianos. Ele se refere a isso como a “trégua de amor.” *

[ * — Michael Bradley, The Iceman Inheritance, Warner Books, New York, 1978, p. 130-131.]

Ironicamente, obsessão com o ego resulta na perda do eu através de uma perda de contato significativo com os outros. A fanática autonomia do eu torna-se alienação dolorosa. Em 1988, a solidão crônica e alienação atingiram um novo patamar conforme pessoas na América começaram a gastar dinheiro para falar com estranhos ao telefone. Forçadas ao isolamento das suas casas, elas se “comunicam” com outras pessoas que, a partir de suas próprias células de “privacidade” auto-impostas, clamam por contato humano. Números de telefone são agora anunciados na televisão para que indivíduos intensamente isolados possam chamar a fim de “conhecer” pessoas, ouvir outras vozes humanas (em um esforço para afirmar a sua própria existência humana), fazer “confissões,” tentar se comunicar em um mundo que tem obviamente lhes roubado as fontes naturais de interação e calor humanos que nós de culturas majoritárias temos como certas. (Nessa visão, encontros sexuais anônimos nos parques das cidades da América tornaram-se uma patologia cultural — não individual.) De alguma forma o simbolismo destas máquinas (televisão e telefone) que mecanizam a comunicação como substitutos para a inter-relação interpessoal orgânica humana, é a declaração penúltima da falha (e “sucesso”) da Europa.

Esta condição alienante não é universal. “Objetificação”, o determinante do isolamento da concepção do eu Européia, é dominante apenas dentro do utamawazo Europeu e na ideologia Européia. Ela não tem a mesma influência sobre outras ideologias culturais. E a busca de uma sociedade verdadeiramente revolucionária deve ser a de atribuir e limitar o método epistemológico da objetificação para o seu devido lugar na lista de prioridades culturais. Enquanto os modos conceituais de outras culturas podem encorajar a “identificação com o outro,” aqueles da cultura Européia são baseados na separação do eu.

O Estado Ocidental Europeu (Euro-Americano) é a República de Platão. Ele depende de “objetificação” e abstração. É uma tentativa em curso para criar o perfeitamente racional; é teoria e método. É um ideal com base em concepções equivocadas do “humano racionalizado” e da “autonomia moral,” e sobre o caro erro de identificação do bom com o cientificamente demonstrável. Todos os problemas morais (humanos) são considerados resolvidos (inerentemente) na estrutura do Estado, de modo que não há nenhuma base para um sistema de moralidade na República. Moralidade pressupõe interação humana. Pressupõe também ambiguidade e falibilidade. A questão da moralidade surge da necessidade de sentido, de resposta emocional a outros seres humanos, e de consideração por eles em relação ao eu. Procura-se continuamente responder às questões éticas de “ação” na forma correta. Ser imoral é não se preocupar com esta questão. A questão da moralidade humana requer uma base espiritual. A República elimina espírito, emoção e identificação com o outro, e, portanto, elimina o significado humano. A cultura Européia (Euro-Emericana), na outra extremidade do espectro cronológico, acaba deficiente em sensibilidade moral; isto é, sem um guia para a conduta humana.

O “amor” que Platão fala é sem significado humano. É um “ideal” abstrato, filosófico. No Banquete, o amor homossexual masculino entre um filósofo (mentor) e um “jovem” (estudante) é o relacionamento humano mais próximo do “amor” ideal, uma vez que mais se aproxima do amor da “verdade” (O Banquete: 184). O amor é do “belo” e do ”bom.” (O Banquete: 206). E Diotima diz a Sócrates que os mistérios do amor envolvem movimento do concreto para o abstrato, do particular ao universal e, finalmente, ao reino das “Formas”:

sendo não como um servo apaixonado com a beleza de um homem ou de uma instituição, como um escravo medíocre de mente estreita, mas voltando-se e contemplando o vasto mar de beleza, ele vai criar muitos pensamentos e noções justas e nobres em amor de sabedoria sem limites; até que nessa terra ele cresça e se torne forte e, finalmente, a visão seja revelada a ele de uma única ciência, que é a ciência da beleza em toda parte. *

[ * — Platão, Symposium (Banquete), Os Diálogos de Platão, Vol. I, trans., Benjamin Jowett, Random House, New York, 1937, p. 334.]

Amor ordinário é problemático na cultura Européia. O que isto significa é que, para que um indivíduo que tenha sido socializado na tradição Européia aja com amor, ele deve superar suas tradições (que são poderosas). Ele deve superar os pressupostos ontológicos-epistemológicos com os quais ele foi incutido e as restrições das instituições sociais que o rodeiam. Ele, então, se arriscará ser “mal sucedido” (como o sucesso na cultura Européia dependa de competitividade e agressividade, e não amor) e vai encontrar-se rodeado por indivíduos que não podem (não ousam) retribuir seu amor.

Quando o amor é traduzido em termos da realidade fenomênica humana para o Europeu, sua interpretação emana de uma base de doença, medo e agressão crônicos. Estas emoções (experiências) ancestrais herdadas geram uma obsessiva possessividade; uma concepção “romântica” pegajosa abafadora, narcisista e compulsivamente irrealista do que o amor deva ser.

Edward T. Hall, psicólogo e antropólogo, fala sobre a “síndrome de identificação” em relação ao amor. Ele usa o termo “identificação” não no sentido positivo de unir-se com outro, mas no sentido da “projeção” do eu que a pessoa não gosta em um outro “objeto” humano. Esta síndrome ocorre como resultado de um processo anterior de “dissociação,” no qual a pessoa tem inconscientemente dissociado (mas não mudado/resolvido) o comportamento dela mesma que seus pais ou outros adultos significativos julgaram ser objetáveis. Hall apresenta a conceituação psicológica de Sullivan. O “mau” comportamento continua, mas é dissociado do eu de modo que o eu possa ser respeitado. *

[ * — Edward T. Hall, Beyond Culture, Anchor Press, Garden City, N.J., 1977, p. 234.]

O que acontece posteriormente é que a pessoa vai se “identificar” com alguém (muitas vezes sua filha), que tem os traços com os quais ela não quer identificar-se. Ela então tem sentimentos negativos e problemáticos sobre a pessoa, assim como ela tem sobre os aspectos de sua personalidade que ela não gosta e têm reprimido. *
[ * — Ibid, 235.]

Hall leva esse conceito para além da identificação pessoal e diz que ele também opera em um nível cultural. Suponha que os Europeus estejam carregando a bagagem de séculos de comportamento anti-humano, de um utamaroho patológico. Para Hall esta síndrome tem uma relação direta com a capacidade de amar,

A parte paradoxal da síndrome de identificação é que, até que tenha sido resolvida, não pode haver amizade e nem amor — só ódio. Até que possamos permitir que outros sejam eles mesmos, e a nós mesmos sermos livres, é impossível amar verdadeiramente outro ser humano; amor neurótico e dependente seja talvez possível, mas não amor genuíno, que pode ser gerado apenas no eu. *2

[ *2 — Ibid, p. 238.]

Mais uma vez, o que está evidente é a descrição da patologia Européia, proveniente de um profundo sentimento de inadequação; uma infelicidade com o eu, e portanto, a incapacidade de dar amor como uma força saudável, energizante.

O comportamento Europeu, então, não é nem mesmo “idealmente” caracterizado pela relação do amor, mas pela separação, alienação, hostilidade, competitividade e agressão. A cultura é uma máquina esmagadoramente eficaz, concebida para consumir o universo. O padrão de comportamento que esta “máquina” tem gerado tem como principal preocupação, a eficiência continuada da máquina. Se o “humano” fosse contérmino com o “material,” a cultura Européia, então, seria, de fato, a mais bem sucedida das construções humanas. Mas os seres humanos não são máquinas, e a cultura está, em vez disso, perdendo rapidamente a sua eficácia (racionalidade), mesmo em termos de seus próprios fins racionais. Watergate e o “Iranian Contra Deal” são evidências de sua falha “mecânica” e da incapacidade da máquina para se regenerar.
Pura e simplesmente, uma cultura completamente materialista deve eventualmente falhar na sua capacidade de motivar uma operativa ética. Ela se esgota. Na cultura Européia não existe uma base espiritual residual que sobrevive para dar inspiração quando o espírito humano tenha se tornado entediado com as possibilidades do materialismo. Valores materiais só podem ser temporários; eles nunca podem ser “definitivos.” Amor, espírito, empatia têm todos, mas escapam aos Europeus, e seu comportamento é etnologicamente explicável ​​no contexto desta “deficiência” cultural.

Intracultural vs. Intercultural

É importante reconhecer a diferença entre o “outro” na cultura Européia e o “outro cultural” em termos do comportamento Europeu: A discussão da religião Européia (Capítulo 2) demonstra a importante função da dicotomia “nós/eles” para a ideologia Européia. O outro cultural é o “não humano” ou o “não propriamente humano.” Os antropólogos Europeus, com demasiada frequência, descreveram as concepções culturais majoritárias de pessoas fora de sua cultura nesses termos, mas é o comportamento dos Europeus que é mais caracterizado pela desumanização daqueles que estão fora de sua cultura. É a base conceitual ideológica do comportamento imperialista Europeu que o “outro cultural” deve ser considerado “não humano.” Essa concepção é imposta pela asili, que busca poder.

Por outro lado, por mais negativamente e agressivamente que os Europeus possam se comportar em relação àqueles dentro de sua cultura, eles são considerados “irmãos culturais,” e isso tem consequências muito significativas para o comportamento em relação a eles. Cada pessoa dentro da cultura tem espaço para fazer o que puder para se proteger e ficar fora do caminho da outra. isso é realmente o que “liberdade individual” significa no contexto Europeu. Outros Europeus não são “forragens” a serem usadas, suas terras não podem ser roubadas, eles não podem ser escravizados, não precisam ser missionados. Se você é participante de uma cultura Européia, eles têm os mesmos direitos que você. Eles têm o direito de ser seu “inimigo,” isto é, de tratá-lo com suspeita e agressão; eles têm “eus.” Aqueles fora da cultura não têm esse direito: eles não são “eus” no sentido Europeu. A ética Protestante e a ética capitalista pretendem abranger o comportamento Europeu em relação aos indivíduos Europeus. Claramente, os não Europeus que vivem em sociedades Européias são tratados como “outros culturais.” (Por exemplo, toda a comunidade de Africanos na América: os meninos de Scottsboro [1931]; as vítimas do experimento da Sífilis de Tuskegee [1932-1972]; Michael Stewart [1983]; Eleanor Bumpers [1984]; Michael Griffith [1986]; Edmond Perry, 1986; Ashanti Barlett, 1987. Sabemos que a lista de atrocidades é muito maior que essa.)

Idealmente e historicamente, a existência do empreendimento imperialista Europeu permite que sejam colocados limites à agressão do comportamento intracultural. A cultura Européia é uma arena na qual seres separados concordam em competir sem destruir o sistema e concordam em cooperar na destruição e consumo de outros sistemas (por exemplo, culturas). Um dos sinais do colapso do sistema Europeu é que cada vez mais Europeus começam a se tratar como, até então, tratavam “eticamente” apenas o “outro cultural.” Foi isso que assustou o público Americano enquanto assistia às audições de Watergate. Como William Strickland diz,

O governo começou a empregar em casa a política de imoralidade usada para construir o Império Americano no exterior. Certamente não foi um grande passo a subversão de eleições no Vietnã para subvertê-las em New Hampshire, Flórida e Wisconsin. No final, então, a exploração do Negro e do Terceiro Mundo, dentro e fora da América, proporcionou a experiência essencial da qual a Casa Branca, secreta mas sistematicamente, afundou o último vestígio da democracia Americana (mesmo em suas manifestações apenas para brancos). *

[ * — Strickland, p. 9.]

Os povos majoritários, que também são Africanos/pretos e de cor, são considerados qualitativamente diferentes dos Europeus e, portanto, são tratados de maneira diferente. É o “outro cultural” ou alguém de fora que se torna o objeto completo ou total. Outros Europeus não são totalmente objetificados nem que seja apenas por causa dos limites impostos à sua destruição. É o nacionalismo cultural Europeu que fornece a distinção entre o comportamento do Europeu em relação aos “outros” e seu comportamento em relação aos outros Europeus. Para que a asili permaneça intacta, essa distinção é de importância primordial. A asili é complementada por um utamaroho (fonte de energia) agressivo por natureza: a busca interminável por poder sobre os outros. Deve haver um “outro” para subjugar; ao mesmo tempo, deve haver um “outro” sobre o qual deslocar a agressão inerente ao utamaroho, para que exista um eu cultural bem-sucedido. A distinção entre o eu e o outro é a distinção fundamental da asili Européia, e gera duas distintas, embora relacionadas, “éticas” e padrões de comportamento.

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Yurugu - Marimba Ani - Cabeçalho capitulo 8

Asili como Matriz

A concepção e atitude Européias em relação àqueles que não pertencem à cultura constituem juntas uma das características mais significativas e definitivas da cultura Européia. É a maneira pela qual o Europeu trata aqueles que estão fora de sua cultura que é mais indicativa da natureza da própria cultura. E para entender a natureza do imperialismo Europeu, precisamos entender as concepções culturais que fornecem o suporte ideológico para esse tipo de comportamento; o sistema de crenças que a torna possível e a reforça.

Não documentaremos os horrores que acumularam mais de vinte séculos de imperialismo Europeu. Existem tais obras a que o leitor será encaminhado (por exemplo, o Registro do Congresso dos EUA contém uma lista impressionante de atos de “intervenção” dos Estados Unidos de apenas 1798 a 1845, que por si só são suficientes para desconcertar a imaginação; imagine o que poderia ser compilado desde o início do Império Romano!), e embora haja necessidade de muito mais obras dessa natureza, o número de obras adicionais parece crescer constantemente. Para um excelente registro histórico de agressão Européia, escrito sob a vantagem de uma perspectiva Africano-centrada, veja The West and the Rest of Us [O Ocidente e o Resto de Nós], de Chinweizu, o trabalho de Chinweizu pode ser destacado como uma das acusações mais prejudiciais do comportamento Europeu em relação aos outros.

Não basta, no entanto, documentar o fenômeno do imperialismo Europeu. o que é imperativo é a tentativa de oferecer uma explicação que etnologicamente o relacione com a cultura que o produziu: Explicá-lo em termos do núcleo ideológico da cultura, a asili. Os teóricos e historiadores Eurocêntricos listam as histórias de atrocidades como se fossem meros atos patológicos de uma cultura saudável. E, com muita frequência, o fato do imperialismo Europeu é apresentado na tradição liberal, como uma tendência destrutiva da cultura Européia, que pode ser efetivamente contrabalançada pelos aspectos “humanitários” de sua ideologia. (“Tudo o que precisamos fazer é nos livrar dos bandidos.”)*

[ * — Ver Norman Cantor, Western Civilization: Its Genesis and Destiny, Vol. I, Scott, Foresman, Atlanta, 1969, Part II, Ch. 12, Sect. VII for an example of this argument.]

A interpretação oferecida aqui leva a conclusões bem diferentes. O conceito de asili ajuda-nos a demonstrar como o impulso imperialista-expansionista e explorador é inerente e, portanto, “natural” no contexto da cultura Européia: É logicamente gerado pela asili da cultura. Essa atividade e empreendimento não são de forma alguma periféricos ao impulso principal da cultura; não é apenas um aspecto entre muitas características não relacionadas. É, em vez disso, um tema central no comportamento Europeu com origem no âmago da ideologia Européia. O nacionalismo e a agressão brancos, tanto culturais quanto econômicos, são endêmicos da cultura Européia: embutidos em sua matriz ideológica. Inverter a tendência da qual o imperialismo Europeu é uma manifestação seria mudar radicalmente a base, a natureza essencial da própria cultura. Em outras palavras, estaríamos lidando com uma asili diferente, que por sua vez geraria um utamawazo e utamaroho diferentes.

Kovel levanta estas questões sobre o padrão de comportamento Europeu:

Que tipos de concepções do mundo são necessárias para isso, e que estilos de ação devem ser engendrados nos habitantes do Ocidente para torná-los tão motivados e controlados?

… Vamos procurar os aspectos cruciais da nossa cultura para obter uma resposta?

É com a resposta para essas perguntas que estamos preocupados neste capítulo.

O Conceito do “Outro Cultural”

Um aspecto crucial da cultura Européia para a compreensão de sua postura imperialista é o que chamo de concepção Européia do “outro cultural.” Essa concepção ajuda a tornar possível o comportamento Europeu em relação aos outros. Ela está intimamente relacionada à imagem Européia dos outros, mas não é exatamente o mesmo. Quero dizer que ela é mais uma construto conceitual — uma categoria mental — que se torna o receptáculo “adequado” para o que de outra forma seria considerado um comportamento não suportável e não sancionado. A imagem Européia dos outros, é claro, reforça esse conceito e garante sua continuidade como parte da visão de mundo Européia. O conceito de outro cultural permite ainda a existência continuada da imagem extremamente negativa de outros que é uma parte dialeticamente necessária da auto-imagem Européia. Vejamos, portanto, essa concepção e o estilo de comportamento que ela implica.

O outro cultural é uma criação da cultura Européia, construída, em parte, para atender às necessidades do utamaroho Europeu. O utamaroho é expansionista. Isso, como uma característica cultural, é muito importante para se entender. O ego procura se expandir infinitamente. Esse tipo de expansão do eu não deve ser confundida com o desejo de “dar a si mesmo” — “fundir o eu com o outro” ou “tornar-se um com o mundo.” Tudo isso é identificado com a experiência espiritual do amor. Expansionismo é o oposto psicológico, emocional e ideológico disso. Expansionismo é a projeção e imposição do ego cultural ao mundo. (É possível interpretar todas as manifestações do “universalismo” dessa maneira.) É a expressão de arrogância, ganância e obsessão de consumir tudo o que se distingue do eu. Nesse cenário, os fenômenos “descobertos” se tornam automaticamente áreas a serem conquistadas — a serem transformadas em nossas. O expansionismo Europeu é a delimitação e redefinição do mundo em termos do eu Europeu; em oposição à “perda do eu” no mundo ou no “outro,” que é a obliteração dos limites isolantes do eu.

Na ideologia Européia, o outro cultural é como um território ou espaço no qual os países se expandem. O outro cultural existe para os Europeus definirem, “refazerem” [” to make over”]. É por isso que eles podem descrever sua nova consciência de objetos, povos e territórios como sua “descoberta.” Essa idéia é coerente para eles, porque, de acordo com sua visão de mundo, é seu papel dar definição para o mundo. Pessoas de outras “persuasões” e tradições culturais fazem parte do mundo a ser definido; é um mundo Europeu. E, nesse sentido, o conceito do outro cultural é o do não humano. Os Europeus definem “humanidade” em termos de sua própria auto-imagem e com tanta intensidade que a ética e as regras de comportamento que se aplicam aos que são como eles não se aplicam aos que não são. O outro cultural é, portanto, uma pessoa (objeto) que pode ser tratado de qualquer maneira — com um grau ilimitado de hostilidade e brutalidade, como é evidente quando se revisa a história das relações da Europa com outras culturas. É apenas o comportamento não agressivo e não explorador para o outro cultural que é sancionado negativamente na cultura Européia.

O essência do meu argumento é que (1) a ética que guia o comportamento dos Europeus dentro de sua cultura é quantitativa e qualitativamente diferente daquela que é um comportamento aceitável e sancionado em relação aos que estão fora da cultura; e que (2) o comportamento característico dos Europeus em relação aos que estão fora de sua cultura é tornado possível culturalmente (isto é, a cultura pode apoiá-lo e sustentá-lo) pela existência na ideologia Européia da concepção do outro cultural. Essa concepção, juntamente com o utamaroho que a apóia, possibilita um grau de agressão e comportamento imperialista bem-sucedido, único na história da humanidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[em construção]

 

 

 

 

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37 respostas para Marimba Ani — Yurugu — Uma Crítica Africano-Centrada do Pensamento e Comportamento Cultural Europeus

  1. passa esse livro traduzido mano!!

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  2. wemerson prazeres disse:

    Gostaria muito de poder ler/ter este livro completo e traduzido, é possível q haja o compartilhamento desse conhecimento, seja em pdf ou qualquer outra forma?

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  3. lerton disse:

    esse trabalho de tradução é fundamental para nós que estamos segregados linguisticamente! espero que continue

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  4. Jade disse:

    Nossa amei muito! Onde comprou este livro?

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  5. Lucas Nonato disse:

    Esse livro está em PDF?

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  6. oi, será que poderiam me encaminhar o pdf? meu e-mail: cjrsantos18@gmail.com , muito obrigada!

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  7. André Dantas disse:

    Eu gostaria dele em pdf e traduzido andredantaslibras@gmail.com

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  8. erica portilho disse:

    traduzimos outros capítulo, como podemos inserir?

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  9. brumadiniz disse:

    vocês têm esse livro disponível em pdf? se sim, podem me enviar pelo email: broobzz@gmail.com?

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  10. Thiago Riber disse:

    Olá irmã(o)s, esse texto é estarrecedoramente necessário para entendermos todo o processo de subalternização histórica ao qual passamos. Alguém poderia me enviar por email, por favor: thizion7@gmail.com

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  11. Cyro Macedo disse:

    Olá, gostaria de receber o texto traduzido e em pdf. Meu email: macedocyro@gmail.com

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  12. Iara de Moura disse:

    Maravilhoso. Muito obrigada.

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  13. José Filipe disse:

    Posso ter o PDF em inglês? Meu mail: jose.flipe@gmail.com Obrigado.

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  14. Olá, podem me enviar o texto traduzido e em pdf? Obrigado. Meu email: marques.parede@gmail.com

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  15. Brisa Castro disse:

    Olá. Muito obrigada pela tradução. Preciso dessa tradução em pdf. brisacastrogeo@gmail.com

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  16. Rafael Luiz disse:

    Olá, gostaria de ler esse livro maravilhoso em pdf traduzido. Tem como enviar para meu e-mail?
    rafaelluiz_oliveira@outlook.com

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  17. Ana Beatriz disse:

    Olá. Muito obrigada pela tradução!!! gostaria muito dessa tradução em pdf… é possivel?
    meu e-mail é anabeatrizsantos1999@outlook.com

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  18. Angela Oyagbemi Lewe disse:

    Agradeço a postagem. Seria possível enviar por email?

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  19. Gabriela Muniz disse:

    OBRIGADA por disponibilizar! Poderia me enviar por e-mail um PDF?
    gabrielamuniz40@gmail.com

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  20. Atos disse:

    Hotep! Poderia encaminhar para o e-mail: atospdfcrew@gmail.com

    Curtido por 1 pessoa

  21. Carolina Barros disse:

    Olá! Vocês podem me enviar por e-mail a tradução? carolinab.25@hotmail.com

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